Ernesto na Torre de Babel


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No final de maio de 2016, eu e o Rodrigo Bravo terminamos de compor, junto com E M de Melo e Castro, o livro de poemas Ernesto na Torre de Babel, lançado pela Annablume Literária.

Embora tenha participado da organização da Torre de Babel, não me sinto falando de um livro meu, mas do Ernesto e do Rodrigo. Tudo começou quando morei em Lisboa durante o segundo semestre de 2013; fui para Portugal fazer estágio de pós-doutorado com a supervisão de Eunice Ribeiro, professora da Universidade do Minho e que organizou, juntamente com Carlos Mendes de Sousa, a Antologia da Poesia Experimental Portuguesa – anos 60 anos 80, de 2004, editora Angelus Novus. Contudo, tive no Ernesto outro orientador. Li toda a sua obra morando em Lisboa – isso significa muito! –; nos correspondíamos o tempo todo para falar da Po.Ex.

Conheci Ernesto Manuel de Melo Castro no final do século XX. Assisti a uma palestra sua na USP; nessa época, Ernesto era Professor Visitante. No dia, esperava que Ernesto tratasse de 1960, momento em surge a poesia experimental portuguesa; a palestra, porém, seria sobre outros temas: infopoesia, poesia feita por computador, poesia fractal, poéticas do ciborgue. O futuro no lugar do passado; Ernesto é o Homero do homem robô.

Há muitos modos de fazer poesia… há também muitos modos de descrever isso. Um deles, é imaginar a possibilidade de trabalhar a linguagem de dois pontos de vista, contrários entre si: (1) o poeta segmenta a palavra, enfatizando seus componentes linguísticos, como se faz na poesia concreta; (2) o poeta insiste nos fluxos prosódicos, enfatizando a oralidade, como fazem os poetas beats. Para sentir a diferença entre ambos os processos, basta comparar os poemas de e. e. cummings, baseados na segmentação da palavra, com os de Allen Ginsberg, construídos, contrariamente, com o fluxo prosódico.

Melo e Castro transita com facilidade entre esses dois regimes poéticos:

(1) em poemas como Círculo aberto é enfatizada a descontinuidade da palavra;

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(2) em poemas como Tempo dos tempos, do qual são citadas apenas as três primeiras de suas quinze estrofes, é enfatizada a continuidade prosódica:

 

Se nos tempos da Bíblia houvesse Jazz!
Ah! Se nos tempos da Bíblia houvesse Jazz!
Se nos tempos houvesse Jazz
O ritmo renovado do Jazz
O ritmo sincopado do Jazz
O ritmo sanguíneo do Jazz.

Se nos tempos da Bíblia
e pelas páginas da Bíblia
e pelos versículos da Bíblia
o sincopado, o ragtime
o humano liberto do Jazz
fossem bíblicas parábolas!

Se nos tempos dos tempos
da Bíblia sincopada de gritos
da Bíblia renovada de espantos
da Bíblia dos mistérios do Homem
da Bíblia tal como é
e do Jazz tal como é!
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É possível, ainda, negar a descontinuidade da palavra, aproximando os versos da fala coloquial, como faz Ernesto em poemas como Inutilidade:
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E inútil tentar penetrar
na estrutura molecular do pensamento.

O pensamento é imaterial
embora seja gerado nas células cerebrais.

E inútil tentar penetrar nas células cerebrais
porque o pensamento é gerado
por circuitos eléctricos e reações
químicas já conhecidas
mas ignoradamente relacionáveis com os
pensamentos.
Do cérebro e do pensamento vivo só
conhecemos imagens coloridas
e as imagens são o que está em vez de outras
coisas
que desconhecemos.
Quanto à cor,
ela não existe. É apenas uma brincadeira da luz
com os nossos olhos.

Será inútil tentar penetrar seja no que for?
Ou os pensamentos são acasos fantásticos da
matéria-desejo?
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Também é possível negar a continuidade do fluxo prosódico em poemas que seguem por metrificações, estabelecidas na história da literatura; em poemas como Poligonia do soneto 19, Ernesto faz um soneto com 14 decassílabos heroicos:
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as vozes pela voz por esta voz
arrepio de voz altura e timbre
a voz por esta voz ou pelas vozes
polivoz de polígono sem fim

voz sonora cascata constelar
pó sereno de súbito agitado
poliedro de espuma pulmonar
pé veneno vital vitral de lado

as vozes as volutas as violadas
as vagas violetas sublinguais
lialumes de luz de voz de lago

velozes vi as vozes vezes vezes
chamamentos extintos de ficar
as vozes pela voz pelo lugar
.

Em outros trabalhos – O discurso da poesia concreta / uma abordagem semiótica –, dei nomes a esses quatro regimes de realização poética:

(1) poeta linguista ao poeta que segmenta a palavra;

(2) poeta pregador ao poeta que enfatiza o fluxo prosódico;

(3) poeta conversador, quando é simulada a fala coloquial;

(4) poeta arquiteto, quando se segue por formas literárias fixadas na literatura.

Em geral, os poetas preferem alguns desses regimes, desenvolvendo suas poéticas em função dessas escolhas; Melo e Castro, porém, transita por todas eles, sempre inovando.

Com base nessa classificação, eu e o Rodrigo Bravo selecionamos 18 poemas do Ernesto, que o Rodrigo teve o cuidado e o talento em traduzir para Inglês, Francês, Japonês, Holandês e Grego Antigo.

Conheci o Rodrigo Bravo em 2013, ele foi meu aluno de Elementos de Linguística I, lá na FFLCH-USP. Na ficção científica, se Ernesto pode ser o pai do homem robô, o Rodrigo me lembra o Cifra, personagem da Marvel Comics, membro dos Novos Mutantes. Cifra é um jovem mutante; seu superpoder consiste em aprender línguas conhecendo apenas alguns vocábulos de cada uma delas. Entre físicos, químicos, biólogos e engenheiros, talvez Cifra seja o único super-herói da área de Letras. Cifra decodificava sistemas com facilidade; como as línguas podem ser definidas como sistemas de signos – Cifra é um super-herói saussuriano –, ele decodificava quaisquer línguas. Rodrigo é parecido com Cifra, isso se evidencia em suas traduções.

Vou dar dois exemplos da sua competência linguística:

(1) o poema do Ernesto Poligonia do soneto 21, traduzido para Inglês e Holandês:
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as casas têm quatro paredes
mas há paredes de veneno
a nossa tem mais paredes
para proteção do invento

para este nosso abraço
quatro são poucas paredes
é preciso ocultar o espaço
do amor com verdade dentro

assim por amor pedreiro
desta casa vou tecendo
como bicho a seda do encanto

o teto o chão envolvendo
o espaço maior ficando
os dois libertos lá dentro
.

*         *          *

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houses have four walls
but there are walls made of poison
ours has more walls
for protecting the invention

for this hug of ours
four, for walls, is few
one needs to occult the space
of love with truth inside

thus by masonic love
for this house I weave
as a worm, the silk of charming

above the floor, the ceiling
the space growing wider
us both freed indoors
.

*         *          *


huizen hebben vier wanden
maar er zijn wanden van vergif
die van ons heeft meer wanden
om de uitvinding te beschermen

voor deze omhelzing van ons
is vier wanden te weinig
men moet de ruimte van de liefde
met de waarheid verbergen

dus, door de liefde van een metselaar
weef ik voor dit huis
net als een worm, de zijde van verleiding

boven de vloer, het plafond
de ruimte wordt steeds groter
wij beiden binnen bevrijd

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(2) o poema do Ernesto Os erros de Eros / Máscara, traduzido para Inglês e Francês:
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Porque vou rejeitando
ou
porque me rejeitam
registo sobre o rosto
enormes campos de detritos:
rictus

Porque vou cagando
ou
porque me cagaram
registo sobre a face
enormes rasgos de conflitos
mitos

Porque vou gostando
ou
porque me gostaram
registo sobre o corpo
ou sulcos rastros
de atritos gastos:
gostos

Porque só resisto
ou
porque me resistem
ostento sob o rosto
um secreto registo:
isto
.

*         *          *

.
Because I go on rejecting
or
because they reject me
I register on the front
enormous fields of debris
grins

Because I go on shitting
or
because they shat on me
I register on the face
enormous rips of fits:
myths

Because I go on fancying
or
because they fancied me
I register on the body
or nooks and crannies
of worn frets:
flairs

Because I only resist
or
because they resist me
I bear under the face
a secret meter:
hither
.

*         *          *

 

Parce que je rejette
ou
parce qu’ils me rejettent
J’inscris sur la face
géants champs de débris
sourires

Parce que je me chie
ou
parce qu’ils m’ont chié
J’inscris sur la face
géants déchirures de conflits
mythes

Parce que je m’amuse
ou
parce que j’ai les amusé
J’inscris sur le corps
ou les rainures, ravines
de frictions rongés
veines

Parce que je seulement résiste
ou
parce qu’ils me résistent
Je porte sous la face
un record caché
cela

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Entre duas gerações, coube a mim unir o poeta dos ciborgues com o mutante da linguística; resta recomendar o livro Ernesto na Torre de Babel (2016, edição Annablume) para todos os leitores que gostam de poesia e das suas muitas formas de tradução.

 

Ernesto na Torre de Babel pode ser encontrado no site da Annablume neste endereço:

http://www.annablume.com.br/loja/product_info.php?products_id=2113&osCsid=obfs0f3t4t66iod7giur5a8h57

 

Visite meu site http://seraphimpietroforte.com.br/

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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olharAnálise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicaçõesAnálise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SMIrmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto fogePalavra quase muroConcretos e delirantesOs tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com




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