Entre a véspera e a coreografia do momento


O sofrimento ignorado de um torcedor feliz: entre a véspera e a coreografia do momento

 

Empilhando bonés. Liga beisebol. Futebol americano. Hockey. Soccer. Porque aqui é o país do futebol. Cabeças. Bolas. Bandeiras, tacos, batalha. Rojão, júbilo, estouro. Onde acabam as torturas da cabeça? Sinalizadores para iluminarem os anos chumbo em movimento. O peso na cabeça, e empilhando bonés. Quase tudo pode ser escrito e reescrito. Alguma coisa sempre se expande além da história. O momento que precede a batalha. Certeza ninguém tem, por isso é que não se deve confiar apenas na própria sorte. Na sorte que não seja ação. Daqui a pouco estarão eles entrando em cena. Carregando a insígnia do arremesso. Tudo o mais que não seja o desejo do embate visceral ficará do lado de fora. Quando estarão todos então irmanados na diferença, compartilhando um mesmo universo fora do mundo. Impulso que adensa o corpo na fome sanguínea do olho. O tempo à beira de outro início pelos leves espasmos borrando as fronteiras que escondem outro texto.

Empilhando bonés no subsolo sem janela. Vasco, Santos, Flamengo, São Paulo. Entre um boné e outro, o dia longo que não acaba. Olho para o relógio, o peso na cabeça. Cruzeiro, Grêmio, Corinthians, Bahia, Náutico, Criciúma. Entre os dedos ágeis sempre a mesma hora.  Fechado na prisão, e a alguns metros do céu aberto. A história que se escreve e precisa ser reescrita. Inter, Ceará, Coritiba, Fluminense, Goiás.   Como continuar a arquejar a existência se bonés e bandeiras se estendem contra o ar livre lá fora? Estou aqui empilhando bonés. Um monumento a uma busca qualquer. Poderia trabalhar em uma gaiola de vidro medindo o ferro do sangue ou a bílis negra da melancolia naquelas balanças de precisão que mais parecem o teatro global dos reality shows. Certo?! Também poderia comercializar bálsamos de euforia e pés de coelho para as feridas do espírito. Mas estou exatamente aqui: empilhando bonés. Este aqui cobre a semântica da pátria escolhida. Tudo o mais deixo de lado. Sempre fui Palmeiras colecionando bonés, bandeiras, figurinhas, como um serviço sacro. Pouco me importo com tudo o mais.

Empilhando bonés, a palavra discorda da ideia. O dia da noite. Uma cabeça de outra. Aliás, uma cabeça pode divergir de si mesma? O torcedor caminha cegamente, a cabeça girando. O momento da batalha. O enredo alargando-se a cada lance. A dividida além das lentes da câmera. Certeza que é pouco confiar na própria sorte. Bola viva na área, e eu aqui retendo os músculos. Aqui neste subsolo os gestos se alongam miúdos. A cada lance tudo se imprime no metal do momento. Perdendo a cabeça neste misturador de momentos. Acompanhando a linha mágica que descreve a bola. Presente que se faz no mesmo instante passado e véspera de um presente eterno. Atravessando o campo e a imensidão do fato. O passo de uma dança. O olhar nervoso que se mede entre o erro e o acerto. Deslizando na trajetória da bola quando a massa de músculos a arremessa. A bola alçada à linha de fundo. O cruzamento alargando-se nos olhos tensos explode no goleiro. Vejo tudo daqui. Agora são os pênaltis. Arquejo difícil, turvam-se os nervos, sonho, suores, expectativa, lágrimas. Trave, e um estado de luz à beira do precipício. A visibilidade agora é franca. Revejo-me então nas imagens que se movem nos olhos e nas águas dele: de frente e por dentro do torcedor, sua face radiosa desassombrando-me.

 

 

 

 

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Marco Aqueiva, poeta, autor de Neste embrulho de nós (Scortecci, 2005) e de Sóis, outono, sou? (Dulcineia Catadora, 2009) e O azul versus o cinza (Patuá, 2013), é professor de literaturas brasileira e portuguesa no ensino superior. É o idealizador, editor e administrador do Projeto Valise 2008 no endereçohttp://aqueiva.wordpress.com E-mail: marco.aqueiva@gmail.com

 

 

 




Comentários (1 comentário)

  1. Aqueiva, Bola na rede é aqui, no Musa rara! Outro tento para a acolhida!! Valeu, Edson!!
    30 julho, 2013 as 2:35

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