Engenhosos engenheiros do engenho


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[1] Quando, em 2008, compuz o sonnetto catalogado como #2280 e superei a marca dos 2.279 attribuidos ao italiano Giuseppe Belli (1791-1863), alardeei que battia um recorde mundial, como si Belli ja fosse detentor do maximo premio quantitativo. A pilheria fazia parte duma estrategia de rehabilitação do tradicional molde tetrastrophico, a qual architectei durante a primeira decada do novo seculo e na qual se incluia uma anthologia virtual intitulada SONNETTARIO BRAZILEIRO (formatada pelos dedos do poeta Elson Fróes) e um sitio pessoal intitulado THE GUINNESS BOOK OF SONNETS. O presupposto era a provavel occorrencia de proezas semelhantes, ainda mais volumosas, contadas aos milhares, assignadas por outros poetas que – a exemplo dos 3.500 sonnettos eventualmente compostos pelo catharinense Luiz Delphino (1834-1910) e que, em sua obra completa, não passavam de 1.300 – não tivessem reunido tudo em livro e permanescessem na obscuridade, à espera da porta internautica que os legitimaria no pantheão dos expoentes do genero. Verbetei para o SONNETTARIO auctores vivos e mortos, fui ampliando meu proprio sitio com mais milhares… e nada de apparescerem os prodigiosos sonnettistas inveterados como eu! Consultei confrades de differentes gerações, dei buscas na rede virtual (antes e depois do advento do google)… em vão! Pensei commigo: “Esses sonnettistas millesimaes, si existirem e forem vivos… ou não são da era digital, ou são tão caretas que só divulgam seu trabalho entre seus collegas de dilettantismo, talvez presos a pudores formaes e thematicos, ou temerosos das críticas e accusações de anachronismo, provincianismo, mediocridade ou pieguice.” No fundo, era um pouco de tudo isso.

[2] Em outras etapas da estrategia, elaborei um TRACTADO DE VERSIFICAÇÃO e digitalizei (annotada e rebaptizada) a monographia do cearense Cruz Filho (1884-1974), HISTORIA E THEORIA DO SONNETTO, empreitadas que me fornesceram maiores subsidios e ampliaram meu campo de pesquisa. Ainda assim, nem signal dos millesimaes, tão discretos que estavam em sua clausura, ou tão secretos em sua confraria.

[3] Annos antes, emquanto ainda enxergava e não dependia do computador fallante, troquei correspondencia (manuscripta e dactylographica) com um desses laboriosos e silenciosos poetas, o paranaense Eno Theodoro Wanke (1929-2001), que, si não se destaccou pela quantidade, foi incansável auctor e pesquisador, tanto da trova quanto do sonnetto. Sua obra mais curiosa é o livro intitulado APPELLO, no qual o sonnetto homonymo, de cunho pacifista, figura em todas as paginas, vertido para 95 idiomas. Eis o poema original:

APPELLO [Eno Theodoro Wanke]

Eu venho da lição dos tempos idos
e vejo a guerra no horizonte armada.
Será que os homens bons não fazem nada?
Será que não me prestarão ouvidos?

Eu vejo a Humanidade manejada
em prol dos interesses corrompidos.
É mester accabar com esta espada
suspensa sobre os lares opprimidos!

É preciso ganhar maturidade
no fomento da paz e da verdade,
na suppressão do mal e da loucura…

Que a estructura economica da guerra
se faça em pó! E que reinem sobre a terra
os fructos do trabalho e da fartura!

[4] Wanke era engenheiro de formação e sua vocação poetica foi tida por uns e outros como hobby de apposentado, coisa de vovô fazendo versos para a netinha. Na bitolada visão de taes criticos, uma carreira litteraria “maior” teria que passar pelo crivo academico, teria que furar o bloqueio dos patrulheiros ideologicos e methodologicos, esses pedantes obstaculos à diffusão, no patamar mais intellectualizado, de toda producção superficialmente rotulada de “maneirista” e “simploria”. Indifferente aos commentarios de que o sonnetto accyma seria “rhymaticamente pobre, syntacticamente primario e tematicamente ingenuo”, considero-o estichologicamente correcto e literariamente meritorio, no sentido de reflectir o pensamento do auctor e, portanto, ser fiel a uma biographia – o que, do poncto de vista existencialista, lhe confere a mesma authenticidade que reivindico para a minha própria obra em relação ao dicto “eu lyrico” ou à dicta “voz poetica”. De resto, a erudição de Wanke nada deixava a desejar, comparada à de qualquer cathedratico em lettras, o que desarma as levianas accusações de amadorismo feitas por este ou aquelle desadvisado. Em summa, si quero para mim o reconhescimento da pornographia como legitima expressão da biographia e a acceitação da escatologia como legitima expressão da mythologia pessoal, coherentemente quero para Wanke a consagração do truismo como legitima expressão do altruismo.

[5] Si vivo fosse, Wanke seria necessariamente a fonte a quem eu recorreria para appurar e mensurar a obra de outro engenheiro subestimado como sonnettista mas digno da maior attenção como fenômeno creativo. Fallo de Jorge Tannuri (1939-?), sobre quem ja postei os paragraphos abbaixo em meu blog de annotações e sobre quem tenho outros commentarios a adduzir mais addeante.

{Os maiores sonnettistas occidentaes (portanto mundiaes, ja que o sonnetto, ao contrario do macarrão ou do futebol, é uma typica invenção occidental) não são maiores pelo volume da obra, certamente, pois que a contam pelas centenas, não pelos milhares de sonnettos, a começar dos paes da creança: Petrarcha com trez centenas, Camões com duas. No Brazil, mesmo durante o apogeu parnasiano, a conta não inflaciona além do excedido milhar que se attribue a Luiz Delphino, a julgar pelo balanço do tambem parnasiano Cruz Filho, cuja HISTORIA E THEORIA DO SONNETTO (que assim rebaptizei apoz annotar criticamente) credita mais de oito centenas ao arcadico José Maria do Amaral e evita maiores comparações numericas.

Como ninguem aqui está fallando dos gols de Pelé nem de Friedenreich, a preoccupação quantitativa só faria sentido si o sonnettista fosse candidato a uma vaga, não na Academia Brazileira de Lettras, mas no Guinness Book. Pessoalmente, pilheriei bastante sobre um hypothetico recorde do genero emquanto, entre 1999 e 2012, compuz alem do quincto milhar e, mais acintosamente, quando superei os 2.279 sonnettos compostos pelo italiano Giuseppe Belli no seculo XIX, embora sciente de que, dentro ou fora do meu proprio paiz, haveria algum maluco que, anonymo ou não, se fixasse nesse molde ainda mais obsessivamente do que me fixei.

Ja na epocha (2008) em que eu andava pelos dois milhares, alguem me fofocou que um certo Jorge Tannuri passava dos quattro. Quando, finalmente, me “limpei” do vicio, em 2012, elle teria chegado aos seis milhares e, a menos que battesse as botas, estaria hoje pelos dez. O mais inaccreditavel nessa historia é que alguem com tamanha bagagem, si não entrasse para a ABL, teria de ser ao menos commentadissimo na rede virtual, como eu mesmo fui, ainda que pouquissimo lido… mas Tannuri não era encontradiço no cyberespaço. Seria um personagem da ficção internerdica? Só recentemente as buscas deram algum resultado, para meu allivio, pois eu temia que os boatos fossem alimentados apenas pela lenda dum auctor quantitativamente productivo mas qualitativamente inconsistente. Ainda bem que sua versificação se me revelou inteiriça e, o mais importante de tudo, não era assim tão oca. Não sei por que a midia especializada, os organizadores de anthologias ou os zineiros e blogueiros não ventilavam o nome de Tannuri. Publicar, elle publicava, fosse no formato livro ou folheto. Participar de encontros e debates poeticos, que eu saiba, elle participava. Paresce que até fundou uma Sociedade Litteraria do Sonnetto, que seria a SOLIS, mas a sigla sugere um isolamento que não sei si chega às proporções do Gremio Recreativo e Eschola de Samba Eu Sou Mais Eu. Espero que não, mesmo sem ter sido convidado a me associar, pois sempre achei que o sonnetto precisava de mais defensores, ja que detractores não lhe faltam.

Agora que me livrei do TOS (transtorno obsessivo sonnettomaniaco), posso allegar, entre amigos, que isso de recorde é bobagem, ainda que o proprio Tannuri, ao que me relatam, fizesse questão de superar metas. Minhas allusões ao assumpto, alem de ironicas, serviam mais para emphatizar a compulsão sonnettistica como alternativa (no caso do cego emputescido e puteador) ao suicidio, ao alcoholismo, às drogas, ao jogo ou, simplesmente, à insomnia e à masturbação. Si eu realmente estivesse obcecado pelo recorde e dependente dessa insomne addicção, não teria parado de sonnettar em 2012 nem teria interrompido a producção tantas vezes para escrever romance, conto, chronica, motte glosado, pelleja ou tractados estichologicos e orthographicos. Peor, si eu de facto ambicionasse um logar no pantheão dos campeões de produtividade sonnetifera, minha insomnia não seria causada pela cegueira, mas pela paranoia de que, em qualquer poncto do paiz, uma Emily Dickinson da vida, quem sabe la em Florianopolis, em Paraisopolis ou em Petropolis, tivesse deixado, manuscriptos em calhamaços, mais de dez ou vinte mil sonnettinhos psychographados, fossem assucarados ou amargurados, para desbancar Amaral, Delphino, Mattoso ou Tannuri sommados… Credo em Cruz, Filho!

Voltando ao Jorge, que felizmente não é tão aguado nem mellado quanto o J. G. de Araujo Jorge, achei delle, si não seus livretos, alguns exemplos que em nada desmerescem a reputação desse paulistano de 1939 que, radicado no Rio, formou-se pela Eschola Nacional de Engenharia da Universidade do Brazil (hoje UFRJ) em 1961, especializou-se na França em 1964 e, desde 1976, habituou-se a compor sonnettos, timidamente a principio e, depois de apposentar-se em 1997, capitulou à mania. Sei bem como é isso. Mas não é intrigante? Mesmo registrando seus livros na Bibliotheca Nacional e, ja em 2008, chegando aos cinco mil (emquanto eu ainda estava nos trez), seus sonnettos não eram divulgados siquer a poncto de chegarem-me às mãos… O caso de Tannuri me lembra o de outro profissional da area, Eno Theodoro Wanke, incansavel pesquisador da trova e tambem sonnettista, que só era bem conhescido em círculos alternativos, embora tivesse até suas connexões internacionaes.

A que se deve (perguntariam os adeptos da theoria da conspiração) tal ommissão, ou tal indifferença, ao caso de Tannuri? Seria por causa da thematica? Mas si até a minha, pornographica em grande parte, não permanesceu silenciada pelos puristas e puritanos! Ou seria por algum viez politico, ideologico ou sectario, vale dizer, as inexoráveis panellinhas e egrejinhas, que vivem a nos patrulhar? Quanto às egrejinhas, talvez uma pista para o hypothetico boycotte ao Tannuri fosse sua solidariedade ethnica e ethica ao povo palestino, ao qual tambem me solidarizei, como no caso do sonnetto “Damnações Unidas” que offeresci à anthologia POEMAS PARA A PALESTINA, organizada por Claudio Daniel e Khaled Mahassen. Não sei. Só sei que Tannuri maneja sem pejo a grammatica, a metrica, a rhyma e, principalmente, a thematica. Si não é desbragadamente debochado nem despudoradamente fetichista, isso até deveria ser tido na conta de virtude, por opposição ao vicio que me estigmatizou como pornographo. Algum mestrando ou doutorando provavelmente theorizará a respeito, ainda que tarde.

Examinemos, entretanto, o que temos à mão, attendo-nos aos contextos palestino e brazileiro. Intercalo sonnettos meus aos de Tannuri a fim de propiciar ao leitor uma base de parallelismo. Depois commentamos.

A HEROICA SAPATADA [Sonnetto 4630 de Jorge Tannuri, em 19/12/2008]

Ao fim dos seus ruinosos dois mandatos,
Resolve o abutre-mor inconsequente,
Chegar até Baghdad, onde seus actos
Deixaram morticinio deprimente…

Um jornalista adverso dos maus tractos
Impostos pelo biltre prepotente
No Irak, direcciona dois sapatos
E o chama de cachorro delinquente…

Na offensa contra o norte-americano,
Mostrou-se bem heroico o mussulmano,
Embora fosse amarga a recompensa

Da sapatada, com prisão, tortura,
Espancamento, abuso de censura
E desrespeito à livre acção da Imprensa.

LANÇAMENTO DE LIVRO [Sonnetto 3886 de Glauco Mattoso, em 17/10/2010]

Sapatos attirar no presidente,
si for americano, é o melhor gesto
de alguem que, revoltado, faz protesto
e, ao vivo, está das cameras na frente.

Mas gesto ainda mais intelligente
é aquelle do escriptor, tão immodesto
a poncto de esperar que o manifesto
lhe renda fama e gloria, de repente:

Seu proprio livro attira (e rente passa
ao rosto do estadista), emquanto a photo
lhe flagra a cappa e a imagem nem embaça.

Em todos os jornaes, depois, eu noto
que ommittem livro e auctor, ja que, de graça,
ninguem faz propaganda nem dá voto.

GAZA [Sonnetto 4635 de Jorge Tannuri, em 31/12/2008].

Que importa democratica victoria
Obtida num pragmatico escrutinio,
Si um povo é dizimado em morticinio
Por manu-militari peremptoria?

Que importa Mahomé, no vaticinio
Da crença mussulmana alcançar gloria,
Si a vida do Hamaz é merencoria
Com Gaza no calvario do exterminio?

Que importa existir ONU quando as guerras
Decretam-se, por ambições de terras
Tramadas pelos credos assassinos?

Que importa haver a Paz, si a humanidade
Condemna à morte e priva a liberdade,
Na patria dos heroicos palestinos?

SEMITA [Sonnetto 854 de Glauco Mattoso, em 28/8/2003]

“Shalom!” traduz “Salam!”: todo opprimido
é primo do oppressor, com quem apprende
a lingua de quem compra e de quem vende
petroleo ou arma, a seita ou o partido.

Mais tempo a guerra aos bancos tem servido,
mais rende, emquanto a morte não se rende
à vida. Quando, emfim, alguem desvende
o enigma, já estará tudo perdido.

Salim e Salomão, Thorah e Corão.
Caim cahiu, e Abel é bellicista.
Javeh propoz, shiitas disporão.

Na areia, cada gotta é uma conquista.
Diluvios racionaram cada grão.
Divisa é linha. A paz, poncto de vista.

O VERO EIXO DO MAL [Sonnetto 4638 de Jorge Tannuri, em 2/1/2009]

Um eixo, para o mal, antes citado
Por Bush, o criminoso costumeiro,
No seu papel de estupido guerreiro,
Não teve seu perjurio comprovado…

Um vinculo deveras destinado
À morte, se appresenta sorrateiro,
Com Tel-aviv e Washington, certeiro
Em dizimar quem seja de outro lado…

Na ONU com o seu poder de veto,
Os norte-americanos dão concreto
Appoio contra a causa palestina

E as armas de Israel vão destroçando
Escholas, hospitaes, gente… em nefando
Terror que desaccapta a lei divina.

DAMNAÇÕES UNIDAS [Sonnetto 4713 de Glauco Mattoso, em 25/9/2011]

Questão controvertida! A Palestina
estado quer tornar-se. Tem direito,
é claro. Um bom accordo estava acceito
entre arabe e judeu, não fosse a mina.

A mina, subterranea, sibyllina,
symbolica, que impede esse perfeito
accordo, é o interesse do subjeito
que está, não la, nem perto, nem na China.

Quem mella qualquer chance de fronteira
commum haver alli, tem seu quartel
num banco americano, é o que me cheira.

Não só: tambem está botando fel
nas aguas, no petroleo, e vae à feira
vender metralhadora ao coronel.

HA… [Sonnetto 3850 de Jorge Tannuri, em 24/5/2006]

Ha récordes de imposto arrecadado
E o povo sobrevive na inquietude…
Ha nullo attendimento na Saude
E o pão de cada dia está minguado…

Ha tempos, o governo nos illude,
Mentindo ser precioso o resultado,
Mas só num raciocinio retardado
Cae bem esta banal similitude…

Ha pantanos nos leitos das estradas,
Ha escholas que estão sendo abandonadas
E o ensigno se degrada por inteiro…

Ha crime organizado e insegurança…
E deante desta homerica lambança,
Pergunta-se onde vae tanto dinheiro.

REDUNDANTE [Sonnetto 190 de Glauco Mattoso, em 1999]

Pediram-me um escandalo, e é p’ra ja.
Malversação de fundos? Nada disso.
O seio da modello, que é postiço,
tambem ja não excita a lingua má.

A droga nas escholas? Ninguem dá
a minima importancia ao desserviço.
Sequestro de empresario? Algum sumiço?
Remedio adulterado? Qua! Qua! Qua!

A fraude eleitoral virou roptina.
As contas no exterior não causam pasmo.
Ninguem extranha o cheiro da latrina.

Até Mathusalem ja tem orgasmo!
Só resta a commentar, em cada esquina,
que o cego é chupa-rola… Um pleonasmo!

Dirão os adeptos do rigor estichologico que, à primeira e superficial leitura, tudo paresce fluir bem nos versos tannurianos. Os decasyllabos, quasi todos heroicos, estão regularmente metrificados, rhymados e rhythmados. Mais attentamente observando, comtudo, verificarão que as rhymas são, por vezes, pauperrimas: no sonnetto 4630 de Tannuri, quatro substantivos dão versos graves em “atos”, quattro adjectivos em “ente”, mais dois adjectivos em “ano”, dois substantivos em “ura” e dois em “ensa”. A syntaxe delle, telegraphica, caresceria de artigos e conjuncções que alliviassem a juxtaposição de tantos substantivos e adjectivos. Emfim, o effeito essencialmente poetico, que deveria ser obtido por meio das figurações metaphoricas ou anastrophicas mais typicas do discurso sonnettistico, deixa, diriam, a desejar, ficando apenas a impressão de obviedade simploria, aggravada pela ordem directa, fria e secca. Isso para não fallarem na sisudez casmurra, na ausência total de ironia, sarcasmo, emfim, senso de humor. Quanto a mim, que nunca estou livre de criticas, dirão que tambem no sonnetto 190 as rhymas dos tercettos são pobres, que tambem commetto elipses asyndeticas, e tal. Mas são os leitores que vão dizer si meus versos teem a cara do Mattoso e si os de Tannuri teem cara só delle.

Technicamente considerando, segundo os mais zelosos, os sonnettos de Tannuri seriam correctos. Poeticamente, porem, nem tanto. Ahi alguém poderá dizer que quaesquer sonnettos, de todos os auctores (inclusive os meus) incorreriam nos mesmos lapsos, uns mais, outros menos relapsos. De certo modo, sim. Em milhares de versos, por exemplo, fatalmente algumas rhymas mais recorrentes accabam por banalizar-se. Uns tantos logares communs, à força de reiteradamente empregados, desgastam o estylo e causam aquella monotona e tediosa impressão de autoplagio ao fim da leitura de poucas centenas de estrophes. Até Camões padesce de taes vicios durante a extensa jornada dos LUSIADAS. Mas cada poeta acha seu trunfo num estylema especial, numa “assignatura” discursiva pessoal, numa “tara” verbal particular, propria ou figuradamente fallando, que lhe “salva” a originalidade da composição, e Tannuri paresce resentir-se da falta dessa marca registrada. Um sonnetto seu poderia ser impessoalmente attribuido a qualquer outro auctor do genero, desses que pullulam obscuramente pelas anthologias, sem que ninguem desse pela coisa. Por essas e outras é que, alem do meu linguajar promiscuamente chulo e prophanamente castiço, faço questão de orthographar meus versos, tal como reorthographei os de Tannuri aqui exemplificados. E você, leitor, seria capaz de confundir um deca delle com um meu? Peor que sim, alguem dirá que confundiu. E agora, Pedro José?

Si serve de consolo, não morri da sonnettomania que accompanharia ao sepulchro a mediunica senhorinha de Petropolis ou o hyperactivo engenheiro apposentado, pois o cego puto, debattendo-se entre a insomnia, o pesadelo e a phantasia masturbatoria, appegar-se-a desesperadamente ao motte glosado, ao madrigal, ao conto, ao romance ou ao ensaio, quando não ao buddhismo, ao fakirismo ou à automassagem linguopedal contorcionistica, a fim de preencher seus ultimos estertores antes do derradeiro suspiro… Ufa!}

[6] Feita a transcripção, convido os confrades e demais leitores a uma analyse retrospectiva do sonnettismo tannuriano, que, embora negligenciado no cyberespaço, circulou menos clandestinamente em livros auctoraes, graphicamente modestos mas valiosos pelo papel recyclado e pela faceta vintageira. Em varios volumes, a obra intitulada SONNETTOS DO ULTIMO QUARTO DO SECULO XX interessa particularmente em seus volumes segundo e decimo, respectivamente AMOR, EROTISMO E PAIXÃO (Rio de Janeiro: Editora do Poeta [J. P. Jornalismo e Promoções Ltda.], 2001) e SONNETTOS SATYRICOS (Rio de Janeiro: Editora do Poeta, 2003), dos quaes pincei os exemplos seguintes, passiveis das mesmas objecções feitas pelos detractores da obra wankeana, refutadas que foram e serão por minha vez.

[7] Como observou o prefaciador do segundo volume, Romildes de Meirelles (então presidente duma Academia Brazileira do Sonnetto, ABRASSO), Tannuri dominava os diversos modellos do genero (petrarchiano, parnasiano, shakespeareano) e os metros mais variados (hendecasyllabo, alexandrino, decasyllabo; heroico, sapphico), nos usuaes eschemas rhymaticos. Vejamos como elle se sahia no alexandrino tetrametro, por este exemplo de 2006:

LARANJA SELECTA [Jorge Tannuri]

Quando eras ‘inda flor no laranjal, sedento
Olores presenti de perfumosa sanja,
Mas impetos frenei na frustração do nanja
E a planta proseguiu seu desenvolvimento…

Estás madura, egual dulcissima laranja
Selecta, com sabor de effluvio sumarento,
E fazes-me accender fogoso attrevimento
Na busca de emoções em que o prazer se esbanja…

Selecta seducção de exuberante viço,
Laranja, flor-mulher, entranhas que cobiço
Nas doces libações de ha tempos esperadas…

Feliz maturação de mutuas gostosuras,
Nos gommos de ambrosia e gozos sem mesuras,
Em cada provação das ansias rebuscadas.

[8] Quanto ao metro e ao rhythmo, a factura é irretocavel, os pés jambicos (inicial e final) entremeados por dois peonicos (tetrasyllabos) em 2/4/4/2, mantendo o exacto hemistichio na sexta syllaba. Nenhum reparo a fazer, tampouco, quanto ao parnasiano eschema rhymatico em ABBA / BAAB / CCD / EED, nem quanto à riqueza das rhymas graves. Os problemas, si dessemos razão à critica mais inflexivel, começariam na excolha de rhymas forçadas em “anja”, gerando o inevitavel efeito hermetico, e recahiriam na metaphorica sexualidade da fructa madura e comestivel, mal solucionada numa chave-de-ouro brochantemente remediada. Comtudo, ninguem poderá dizer que o poeta commetteu algum escorregão por despreparo: seu lapso seria meramente semantico, pela fraqueza das imagens evocadas e pela banalidade figurativa, simplesmente. E nenhum auctor de sonnettos aos milhares excappa duma solução insatisfactoria, aqui ou alli.

[9] Vejamos agora outro exemplo de alexandrino, desta feita um trimetro seleccionado do volume SONNETTOS SATYRICOS:

EUTHANASIA [Jorge Tannuri]

Num hospital se realiza um enfermeiro
Ao receber a commissão extraordinaria,
Dos seus comparsas de uma agencia funeraria
Para mactar a quem lhes rende algum dinheiro;

Architectaram negociata temeraria,
Onde o hediondo refulgia por inteiro
Num sentimento deshumano e corriqueiro
Exterminando em quantidade centenaria.

Ao ser detido, o practicante de enfermagem
Diz que a euthanasia se practica com coragem
P’ra amenizar o soffrimento dos pacientes;

Que as injecções do tal chloreto de potassio
Nada mais valem que um insolito prefacio
De um inventario para as mortes mais urgentes.

[10] Tambem aqui o poeta está correcto no rhythmo accentuado em 4/4/4, mantendo a tonicidade na quarta e na oitava syllabas, bem como no mesmo eschema rhymatico em ABBA / BAAB / CCD / EED, grave e rico nas consoantes. De novo as objecções incidiriam na propria solução semantica, figurativamente pobre deante daquillo que se esperaria, em termos de sarcasmo e de mordacidade, dum sonnetto inscripto sob o titulo de “satyrico”. E de novo respondo em favor do auctor, para allegar que a chronica de costumes não precisa ser rasgadamente humoristica para cutucar com efficiencia as mazellas sociaes, pois todo poeta satyrico tem seus rompantes malhumorados e a indignação faz parte da postura irreverente de todo menestrel engajado.

[11] Agora tomemos estoutro caso de alexandrino trimetro que encontrei no livro SONNETTOS SATYRICOS mas que podia estar no volume dos eroticos. Valem para este as mesmas observações do paragrapho anterior, com a resalva de que, aqui, o poeta abre mão masturbatoria de seu habitual pudor para empregar alguns chulismos que, apesar de envergonhados, valem como signal de progresso ante a minha perspectiva abertamente despudorada:

AUTOSATYRA IV [Jorge Tannuri]

Não tenho culpa desta vara estar adunca,
Por isto insisto em practicar libidinagens,
Coisas que outrora não imaginava, nunca,
Que lingua e dedos fossem organs de abbordagens.

Hoje esta vara é como o vime que se trunca
Que se seccou pela raiz nas estiagens,
Não serve a nada, sendo apenas uma funca
Para urinar, pois não se presta a sacanagens.

Sempre pergunto pelas causas da atrophia
Desta piroca sem valor, pois não se enfia
Nos orificios onde geram-se os orgasmos;

Mas mesmo assim eu vou à lucta, não me entrego,
De esfregações ou fellações que não mais nego
Serem as vias de eu gozar os meus espasmos.

[12] Resalvo apenas que, aqui, o eschema rhymatico dos quartettos passa a ser ABAB e que, em termos de incorrecções, no primeiro verso o certo seria “de esta”, sem prejuizo para a synerese, e, no terceiro, ocorre dysrhythmia na palavra “imaginava” (que teria de soar como “imá/ginava”), alem do que eu substituiria logo “urinar” por “mijar”, sem quebrar o pé, nem molhal-o…

[13] Quanto ao hendecasyllabo, menos usual em sonnetto mas commum na cantoria (como no typo tetrametro em 2/3/3/3 do “galope à beira-mar”), Tannuri o emprega com desenvoltura, a julgar por este exemplo trimetro em 3/4/4 onde occorre apenas uma ou outra dysrhythmia:

NUDEZ [Jorge Tannuri]

Vejo o verde dos teus olhos na floresta,
Sinto o gosto dos teus labios na champanha,
Nos teus ares gozo o clima da montanha,
Do frescor da natureza sempre em festa…

A attracção que me inspiras é uma artimanha
Destroçando a compostura que me resta
E imagino ver-te nua pela fresta
Da janella do teu quarto, o que me assanha.

A visão imaginaria em plenitude
Dos encantos do teu corpo ao natural,
Me desperta em emoções que não teem freio.

Resisti ao teu fascinio emquanto pude,
Quero nua ver-te na vida real,
E beijar os dois pimpolhos do teu seio.

[14] No exemplo seguinte, Tannuri utiliza o hendeca tetrametro, à moda aggalopada:

VINTE E UM DE ABRIL [Jorge Tannuri]

Na data festiva dos Inconfidentes,
Na qual se relembram os dois Joaquins,
Reunem-se em Minas com sordidos fins
Alguns esquerdistas bancando valentes;

Procuram scentelhas nos seus estoppins,
Affirmam-se victimas qual Tiradentes,
Accusam os nossos actuaes dirigentes,
Chamando trahidores antigos affins;

Ao outro Joaquim, o Sylverio dos Reis,
Comparam Fernando, o que disse que fez
Deter a inflação com seu plano real;

São todos pilantras de vinte e um de abril,
Que nada professam de amor ao Brazil
E julgam-se os donos do bem e do mal.

[15] No tocante à thematica deste ultimo, vale o que ja commentei, no decimo topico, accerca do justificavel mau humor do poeta satyrico que desabbafa contra a conjunctura politica e as hypocrisias ideologicas.

[16] Emfim, no decasyllabo e suas innumeras possibilidades rhythmicas é que Tannuri mais exercita a sua habilidade, embora commettendo um que outro cochilo. Consideremos estes exemplos, septe tirados do livro erotico e o oitavo do satyrico:

[16.1] ESCRAVIDÃO DE AMOR [Jorge Tannuri]

Perguntas por que estou tão pensativo,
Que embora perto sentes-me distante
Respondo que não sei levar avante
E completar um sonho fugitivo.

Escravo de um romance inebriante
Dos teus olhares sinto-me captivo
Pelo teu corpo seguirei lascivo
Quer seja ou quer não seja teu amante.

Vejo o prazer intenso em teu sorriso,
Envolvem-se em teu corpo e no teu jeito
Razões da minha perda de juizo.

Si meu desejo fosse satisfeito
Alcançaria em vida o paraiso
Occulto nas delicias do teu peito.

[16.2] PAIXÃO DESENFREADA [Jorge Tannuri]

Prefiro que me tractes com desprezo
Do que com esfuziante sympathia
Não quero nunca mais sentir-me preso
Aos vinculos da tua phantasia.

Sonhando com teus labios fico teso
Pensando que beijal-os possa um dia,
A luz do teu olhar mantem acceso
Um sol na minha vida tão sombria.

De tanto cobiçar-te estou doente,
Outras mulheres não despertam nada
No meu desejo que é teu dependente,

Mantendo-me a garganta suffocada,
Quero voltar comtigo a ser potente
Curando esta paixão desenfreada.

[16.3] RADIAÇÕES [Jorge Tannuri]

Preciso me livrar do teu feitiço
Que ja tornou-me um louco attormentado;
Das outras temptações fiquei remisso,
Perdido unicamente em teu peccado.

Amorpho como a arvore sem viço,
Prosigo no teu corpo appaixonado;
Meu cerebro em constante rebulliço
Mantem-me em teu desejo escravizado.

Effeitos se succedem com tal furia
Que lembram cesio cento e trinta e septe
Em radiações que me provocam tedio;

Sem teu calor a vida é uma lamuria,
Uma illusão que sempre se repete:
Para curar meu mal, só teu remedio.

[16.4] CARA DE PECCADO [Jorge Tannuri]

Essa mulher tem cara de peccado,
Tem olhos que diffundem brilho intenso
E me seduz de amor, mantendo tenso
O meu viver sem tel-a approveitado.

Essa mulher tem corpo de peccado,
Suas curvas desmoronam meu bom senso,
Quero deixar de amal-a e sempre penso
Nos gozos permanentes ao seu lado.

Essa mulher tem labios de malicia,
Rubis que enfeitam perolas dos dentes,
Cerejas que me aguçam o appetite,

Quizera me affogar nessa delicia,
Nas aguas dos prazeres envolventes
Desse oceano que não tem limite.

[16.5] SALADA DE FRUCTAS [Jorge Tannuri]

Quero me deleitar numa salada
Das fructas que perfumam minha vida:
Figo dos labios da moçoila amada,
Uva dos olhos da mulher querida,

Pelle de pessego da namorada,
Canna de assucar da emoção sentida,
Coco dos dentes da musa adorada,
Manga do corpo da joven garrida,

Pera dos peitos duros da beldade,
Jambo que adviva as cores da morena,
Ouro de nespera arrectando as louras,

Fructos silvestres causando ansiedades,
Gostos e gozos das sensações plenas
Que peço aos deuses das messes vindouras.

[16.6] PARODIANDO BOCAGE II [Jorge Tannuri]

Bem triste se appresenta a desadvença,
Que em nós estabelesce um grau supremo
Paixão requer paixão, fervor extremo
Para alcançar no amor a recompensa.

Existe entre nós dois a differença:
Eu soffro, eu me declaro, eu ardo, eu gemo,
Eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo,
Quando usufruo o dom da tua presença…

Tu és a imprevisivel, a formosura
Que tem o coração pouco ardoroso
Para quem se desmancha de ternura;

Mas este aspecto teu lindo e mimoso
Mantem teu peito teso e sempre dura
O meu tesão por teu olhar gostoso.

[16.7] O CUME DO PRAZER [Jorge Tannuri]

Renascem emoções no meu anseio
No estimulo febril dos teus encantos
Mulheres foram musas dos meus cantos
Mas quero ser artista no teu seio.

Ja tive amores mil, ja não sei quantos,
Hoje porem te olhando de permeio,
Redescobri tesão e devaneio
No corpo seductor sob teus mantos,

Onde diviso hallucinante trilha
Das pernas, da bundinha, da cinctura.
Teus olhos são convite para o gozo,

Teus labios teem desenho de lascivia,
Quero te amar e no auge da loucura
Galgar o cume do prazer gostoso.

[16.8] PALACIO DA INJUSTIÇA [Jorge Tannuri]

Um predio de opulencia e inaccabado,
No qual quasi um bilhão foi consumido
Do erario, por um luxo descabido,
A um mau objectivo dedicado,

Hoje não diz a que foi construido,
Pois segue a sós seu curso, abandonado
Até por um famoso magistrado
Que commissões houvera recebido.

Este é o proprio palacio da justiça,
Edificado em nome da Justiça,
Em leria que nos deixa estupefactos:

Milhões que se gastaram neste templo
E o juiz que dissemina o mau exemplo
São tristes expressões de peculato!

[17] Cabe assignalar alguns ponctos formaes e thematicos quanto aos sonnettos expostos. No primeiro, o titulo apenas suggere uma relação sadomasochista que não se concretiza, mas o vicio de Tannuri é análogo ao de innumeros outros romanticos que empregam termos como “escravo”, “submisso” ou “captivo” em sentido meramente appaixonado, junctamente com outros clichês do genero. No segundo sonnetto, nota-se que Tannuri emprega o termo “teso” mais por força da rhyma que da erecção, pois, como no septimo, a allusão a varias mulheres soa battida e funciona como rrecurso mechanico do amante que “elege” uma musa entre muitas outras, ou seja, o typico conquistador romantico que, na vida real, comporta-se menos fogosa e mais discretamente. No terceiro e no quarto, palavras como “peccado”, “escravizado” ou “calor” são as mesmas recorrentes em muitos poetas e lettristas que abusam de chavões romanticos, mas criticar quaesquer recorrencias é excusado quando se tracta dum auctor millesimal, ja que eu mesmo tenho as minhas, ainda que em termos outros e mais chulos. No quincto, às metáforas hortifructigranjeiras vale o que ja commentei no topico 8: uma chave-de-ouro mais emphatica e orgastica compensaria a saccola de feira. No sexto, a fonte bocageana abbonaria imagens mais fortes que o mero emprego de chulismos como “tesão” ou teclas battidas typo “ternura” ou “formosura”, mas devemos lembrar que até o proprio Bocage tinha a sua faceta careta e burocratica. No septimo, ao lado dos clichês habituaes, ao menos a palavra “bundinha” ganha destaque. No oitavo, a verve que faltou meresce o que ja commentei nos topicos 10 e 15.

[18] Ainda versejando em decasyllabo, Tannuri experimenta às vezes o formato inglez, rhymaticamente eschematizado em ABAB / CDCD / EFEF / GG, como neste caso:

CHUPADORA [Jorge Tannuri]

Gastou-se um bom dinheiro com frescura
Tentando se occupar da vida alheia;
A Monica Lewinsky era obscura
E agora vae encher seu pé de meia.

Chupar era attemptado à castidade
Que um promotor impoz a um presidente,
Agora é relação de impropriedade
E só interessa ao gosto de quem sente.

A chupadora do salão oval
Deixou a Casa Branca em polvorosa
Na practica subtil do coito oral
Que trouxe-lhe fortuna valorosa.

Chupando com seus labios juvenis
A joven alcançou final feliz.

[19] Um dedo mais critico apponctaria aqui diversos deslises, como no terceiro verso, onde uma anaptyxe provocaria a quebra do pé devido à catalexe (“obscura” como “oscura” ou como “obiscura”), ou no segundo quartetto, onde a falta de clareza gera effeito amphibologico, ou no duodecimo verso, onde o “que” deveria attrahir o pronome (o certo seria “que lhe trouxe”), mas todas essas suppostas falhas são defensaveis, seja porque muitos sonnettistas as commettem deliberadamente (inclusive este cego), seja porque a licença poetica admitte uma anastrophe que validaria um erro de collocação pronominal em nome da tonicidade. Ainda nesse aspecto, o nono verso nada tem de dystonico, ja que um único sapphico (rhythmado em 4/4/2) pode perfeitamente ser intercalado em meio aos heroicos (rhythmados em 2/4/4), como ja Camões fazia, com cacófato e tudo…

[20] No que tange à figuração thematica, uma das allegorias tannurianas me é particularmente interessante: aquella do chupim cegado para que melhor cante, como na canção gonzaguiana. Naturalmente, Tannuri comenta a pigmenta em olho alheio, por isso tracta superficialmente do thema, sem explorar as ultimas consequencias sadomasochistas e pornográficas que eu exploro com conhescimento de causa. Ainda assim, o sonnetto cumpre seu papel symbolico no jogo amoroso entre o poeta e sua musa:

O CANTO DO PASSARO CEGO [Jorge Tannuri]

Como o assum preto cego pelo dono
Para melhor cantar seu sentimento,
Tambem perdi visão neste abandono
E solitario canto meu lamento.

E escutas, soberana no teu throno,
Zombando dos meus versos cujo intento
É musicar o sonho do teu somno
Para gozar a fundo teu portento.

Não vejo outras imagens na cegueira
Que apoz te desejar me enclausurei
Qual passaro captivo na gaiola.

E sigo te cantando a vida inteira
Sonhando que algum dia vou ser rei
Quando me deres tudo como esmola.

[21] Concluindo, Tannuri não teria motivos para se esconder nem para ser escondido, ja que, como venho affirmando, a quantidade não é incompativel com a qualidade. Entretanto, talvez por incompatibilidade com a informatica e a internet, o poeta não documentou virtualmente a sua vasta producção e, tal como Paula Blumenthal e tantos outros obsessivos sonnettistas, deixou de divulgar aquillo que poderia ser seu maior trunfo, a propria compulsão de sonnettar. Comquanto registrasse a obra na Bibliotheca Nacional e ambicionasse a serio um registro no GUINNESS BOOK, o poeta passou despercebido à propria Academia Brazileira de Lettras, na qual pleiteou uma cadeira. Quanto a mim, intrigado com as infructiferas buscas na rede virtual, recorri a uma fonte na ABL, pela qual fiquei sabendo que Evanildo Bechara, consultado, teria respondido que Tannuri não lhe era extranho. Mas cabe citar a fonte para termos noção de como os academicos encaram taes poetas: “Nada consegui saber sobre Jorge Tannuri. Elle não consta da ENCYCLOPEDIA DE LITTERATURA BRAZILEIRA e aqui na ABL ninguem guarda a memoria dos candidatos sem relevo. O Prof. Bechara lembra-se delle como um auctor de milhares de sonnettos e que frequentava as palestras da casa.” Frustrei-me, pois, em todas as tentativas de confirmar a morte de Tannuri, de appurar a data do fallescimento e a quantidade exacta dos sonnettos que deixou. Fiquei com a vaga noticia funebre passada por meus correspondentes e com a certeza de que, como Tannuri, muitos ainda mais anonymos permanescem no ostracismo e, quando lembrados, o são como “menores” ou “irrelevantes”, mesmo que sua producção justificasse ao menos um estudo psychologico. Pergunto-me quem seriam os auctores considerados “relevantes” pelos immortaes. Sarney? Fernando Henrique? Ora, antes empossassem Tannuri, cujos milhares, si devidamente garimpados, renderiam ao menos um volume mais meritorio que toda a obra desses malfardados medalhões junctos!

/// [12/8/2015]

 

 

 

 

 

 

 

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Glauco Mattoso (paulistano de 1951) é poeta, ficcionista e ensaísta, autor de mais de trinta títulos, entre os quais as antologias “VÍCIOS PERVERSOS: CONTOS ACONTECIDOS” e “POESIA DIGESTA: 1974-2004″, além dos romances “MANUAL DO PODÓLATRA AMADOR: AVENTURAS & LEITURAS DE UM TARADO POR PÉS” e “A PLANTA DA DONZELA”. E-mail:mattosog@gmail.com




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