Em caso de emergência pare o tempo


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Conheci a Gabriela Marcondes no festival de poesia Artimanhas Poéticas de 2016, organizado pelo Claudio Daniel e por mim. Durante o evento, a Gabriela participava de uma mesa redonda com dois amigos meus, o Elson Froes e o E. M. de Melo e Castro; o tema do debate foi a poesia experimental.

Como abordar a poesia da Gab Marcondes? Sem dúvida, ela esteve em pleno acordo com o tema da mesa redonda; isso se confirma em seus três livros já publicados: videoverso, 2006; Depois do vértice da noite, 2010; Em caso de emergência pare o tempo, 2014.

Para prosseguir, vale a pena indagar qual o significado da poesia experimental.

Curiosamente, apesar da criatividade de todas as vanguardas poéticas surgidas desde o início do século XX, poucos leitores de poesia se lembram delas; muitos chegam a desconhecê-las completamente; alguns – e escrevo isso com surpresa – sequer reconhecem como arte as poesias visual, concreta, sonora, performática, etc. Ao que tudo indica, a maioria dos poetas ainda prefere ficar presa a moldes convencionais, ignorando e até mesmo negando as liberdades formais e as decorrentes ampliações dos campos literários promovidas pelas vanguardas.

Nenhuma vanguarda expulsou o verso, a palavra ou o sujeito da poesia, apenas ampliou essas noções para além do que elas assumem nas literaturas neoclássicas e românticas: (1) a poesia visual expande os horizontes semióticos da poesia verbal por meio de relações entre palavras e imagens; (2) o concretismo desenvolve a poesia verbivocovisual insistindo nos discursivos sintético-ideogramáticos e nas divisões prismáticas das ideias; (3) a poesia sonora explora as dimensões sonoras das semióticas verbais em níveis prosódicos e fonológicos jamais imaginados antes dela, permitindo diálogos com músicos eruditos da envergadura de Luciano Berio, György Ligeti e Flo Menezes; (4) a poesia performática inseriu o corpo do poeta definitivamente na poesia contemporânea; (5) o poema objeto liberta a poesia da palavra, fazendo com que sua práxis, ao permear as “coisas do mundo”,  vá mais longe do que a voz.

Paralelamente a todas essas liberdades semióticas, há ainda as vanguardas que se detiveram com ênfase na semiótica verbal, propondo: (1) a poesia contínua – o poeta compõe um único poema, que ele modifica, aumenta, transforma durante toda sua vida –; (2) o drama em gente, levado a cabo por Fernando Pessoa com suas 136 personagens fictícias, entre elas, os heterônimos – solução genial para crise do sujeito na pós-modernidade –; (3) o Neobarroco.

Relegadas erroneamente a arte cerebral – erro grosseiro, uma vez que nas vanguardas, em busca de ampliar as “portas da percepção”, fala-se de tudo e com todos os sentimentos humanos –, as poéticas experimentais são expulsas da poesia porque seriam incompreensíveis ou elitistas. Ora, é necessário, antes de tudo, resistir à mesmice e às burrices do mundo burguês e seu sentimentalismo egocêntrico. Portanto, é do ponto de vista de alguém que sempre aprecia quem se vale das conquistas das poéticas experimentais para fazer sua própria poesia, que eu gosto de ler/ver/ouvir/pegar com as mãos a poesia da Gabriela Marcondes.

Em videoverso, seu diálogo com as vanguardas já está presente desde a diagramação. O livro tem dois começos possíveis; dependendo do lado pelo qual se começa a ler, lê-se um livro de poemas verbais – a capa preta –, ou visuais – a capa branca –.

Vou comentar dois poemas verbais, Papiro e Azul:

 

Papiro
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No impenetrável palimpsesto

Dorme o verso que procuro.

No revés do que vejo

A ideia que salta através do muro

Oferece aos olhos um caleidoscópio.

O dédalo das entrelinhas

O sentido que ilumina o escuro

Que perambula pela poesia bêbada

Adormecida na inaptidão do poeta

 

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Azul
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Menina de maiô azul

Ou será o mar atrás dela?

Nublada aquarela.

 

Em Papiro, Gabriela tematiza seus modos de composição, isso fica claro já nos primeiros versos “No impenetrável palimpsesto / Dorme o verso que procuro”. Não se trata de frases de efeito, com leve inspiração poética; trata-se de mostrar um ponto de vista diante do texto. Enquanto trama de significações, todo texto é palimpsesto, entendido no poema como metáfora das numerosas leituras em que os textos são definidos; nessa concepção de poesia, o verso procurado não vem da inspiração, mas da intertextualidade.

Já em Azul, embora a autora encontre seus versos na semiótica verbal, a visualidade domina a cena descrita, sendo seu fundamento poético.

Em meio à intertextualidade e sinestesias, sua poesia verbal se encaminha para poesia visual. Também de videoverso, escolhi o poema visual Ampulheta, que parece expressar, em linguagem propriamente visual, tema semelhante ao do poema Papiro.
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Na primeira ampulheta, Gabriela articula, no mínimo, seis sintagmas nominais, pois outros podem ser encontrados, já que os limites entre as frases não são claros, gerando novas combinações: “olho no olho do interminável” e “mãos dadas com o esquecimento”; ou “olho no olho do interminável mãos dadas com o esquecimento”.

Contudo, não se trata de fazer frases soltas; ainda na primeira ampulheta, as possíveis sequências são coordenadas entre si por meio da frase final “fazendo acrobacias de tempo”, com a qual Gab, ao mesmo tempo que dá um elo sintático forte ao poema, explicita, via língua, o que as imagens das letras encenam entre as duas imagens das ampulhetas. Em outras palavras, todas as frases possíveis fazem “acrobacias de tempo”. Entre as ampulhetas, instrumentos de medir o tempo, as letras formando as frases são signos dessas acrobacias.

Entre “a poesia e a profecia”, a poesia procurada “dorme” na ampulheta, símbolo do tempo, e, nesse poema visual, também símbolo da probabilidade, tema de tantos artistas como John Cage ou Hans Arp.

No segundo livro, Depois do vértice da noite, poemas visuais convivem com poemas verbais, sem a separação em dois livros quase distintos, como ocorre em videoverso. Dele, escolhi para comentar subways e poema diluído:

 

subways

 

sublinho a palavra

tempo

ainda que não diga nada

é uma ênfase da tua falta

 

sublimo cada palavra

tempo

ainda que não passe nada

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Subways, entre outros temas possíveis, é um poema que tematiza a latência. Em meio ao silêncio, ainda que não se diga nada, há ênfase nessa ausência, em sua duração, como se esse transcorrer do tempo tornasse presente todas as possibilidades das palavras ainda por dizer. O tempo é o próprio discurso; o silêncio em sua superfície esconde veios submersos – sob os caminhos –, prontos para gerar mundos possíveis a todo momento.

Se subways é uma teoria poética em forma de poesia, poema diluído é a práxis; a meu ver, trata-se de um poema em que os veios submersos se realizam no corpo do próprio texto.

Vou reproduzir o poema tal como ele aparece nas páginas do livro:

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página 1

 

página 2

 

página 3

 

página 4

 

página 5

 

página 6

página em branco

 

página 7

 

Trata-se de um poema formado a partir de versos de outros escritores da língua portuguesa; Gabriela articula a estrofe de seis versos como se fosse colagem, em que os versos originais são ressignificados em um novo poema. Na colagem, tudo se passa como se os versos alheios assomassem de discursos submersos – a própria poesia em língua portuguesa –, mas não apenas isso. Há, pelo menos, dois encaminhamentos nesse poema: (1) os versos vão se diluindo e, até que façam novos silêncios, novos poemas são formados no percurso; (2) o poema diluído não é apenas uma ocorrência desse processo, ele é mais uma ocorrência, já que, a qualquer momento, outro poeta pode se valer da mesma técnica e trazer à tona novos poemas.

Por fim, o terceiro livro da Gabriela: Em caso de emergência pare o tempo. Nesse terceiro livro, há mudanças significativas quanto às relações entre as semióticas verbais e visuais: (1) em videoverso os poemas visuais e verbais estão separados em partes distintas; (2) em Depois do vértice da noite, os poemas visuais aparecem, na sequência das páginas, depois dos poemas verbais; (3) no terceiro livro, todos os poemas são verbovisuais, como se a fusão entre as duas semióticas se desse por completo.

Nessa articulação entre verso e imagem, Gabriela segue por dois processos: (1) o poema está articulado a imagens visuais; (2) o poema também é imagem visual. Para exemplificar, do primeiro processo cito centopeia e, do segundo processo, cito desvendo.
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centopeia


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O poema, isolado da imagem, é este:

 

centopeia
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devagar aprender a ver

observar o que isso provoca

as coisas assumem distâncias

até nada mais ficar no mesmo lugar

 

absorver cada coisa e ir mais fundo

ter a paciência de esperar

um mundo pequeno por ser maior

uma sátira embrulhada a mão

 

nem todas as realidades são lentas

o tempo se precipita

em um abismo com asas

 

nem viaduto nem centopeia

uma gargalhada do tempo

tudo dentro do inacabado

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Não vou me perder fazendo análises minuciosas do poema, mas quero, pelo menos, sugerir uma leitura possível. Na fotografia, há alguns efeitos semióticos bastante interessantes: (1) não se sabe, com certeza, qual é o referente dessa fotografia, ou seja, não se sabe qual objeto ela enfoca; (2) disso decorre uma transformação da imagem figurativa para a abstração; (3) devido à bidimensionalidade da fotografia, o objeto branco pode ser entrelaçado com sua sombra, fazendo com que, na ilusão tridimensional, haja o objeto e sua sombra e, no espaço bidimensional, o efeito de linhas entrelaçadas.

Ora, essa semiótica parece perfeitamente encadeada com a poesia em mutação, tematizada antes; tudo se passa na fotografia como se suas imagens vistas seguissem pelos mesmo caminhos do projeto poético explicitado em subways e desenvolvido em poema diluído. Valendo-se disso, o poema verbal centopeia segue, em seus conceitos, as mesmas voltas da imagem, que, uma vez ancorada pelos versos, transforma-se em centopeia. Centopeia, com suas muitas voltas e pés, como no poema que, por sua vez, tematiza tudo isso: (1) trata-se de soneto, cujo tema é a mutação semiótica – “as coisas assumem distâncias / até nada mais ficar no mesmo lugar” –; (2) seus versos estão expressos em métricas distintas, cada verso é composto por pés diferentes – pé significando medida prosódica –.

Em desvendo, o ato de “desvendar” se confunde com “des-ver”, mas não “desvendo” de “não ver”; creio que a Gabriela se refere a “desver” significando “ver” entre o “desvendar” e o “ver de muitos outros modos o tempo todo”. Enquanto as cores escondem/revelam novos versos, tudo indica que desvendo tematiza “devagar aprender a ver / observar o que isso provoca”. Eis o poema:
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desvendo

 

 

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Na próxima postagem, vou falar de Matula, o livro novo do Moacir Amâncio.

 

 

 

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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olharAnálise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicaçõesAnálise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SMIrmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto fogePalavra quase muroConcretos e delirantesOs tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com




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