Diálogos de dois suicidados


Iessiênin e Maiakóvski: diálogos de dois suicidados pela sociedade


Perdemos Essenin, esse admirável poeta, tão vigoroso, tão verdadeiro. E que fim trágico! Ele partiu de si mesmo, dizendo adeus com seu sangue a um amigo desconhecido, talvez a nós todos. Suas últimas linhas contêm extraordinária ternura e placidez. Essenin deixou a vida sem ofensas, sem protestos, sem bater a porta. Fechou-a docemente, com a mão sangrando. A imagem poética e humana de Essenin, com esse gesto, brotou numa inesquecível luz de adeus (Leon Trotsky, Literatura e Revolução, capítulo IX, “Em memória de Serge Essenin”, Zahar Editores, p.217).

O aviso oficial, colocado pelo Secretariado numa linguagem de protocolo jurídico, apressa-se em informar que esse suicídio “não tem nenhuma relação com as atividades sociais e literárias do poeta”. O que vale dizer que a morte voluntária de Maiakovsky não se relaciona com a sua vida ou, ainda, que a sua vida nada tinha em comum com a sua criação revolucionária e poética. É transformar sua morte num fato fortuito (Leon Trotsky, Literatura e Revolução, capítulo X, “O suicídio de Maiakovsky”, Zahar Editores, p.223).

Em 28 de dezembro de 1925, o poeta russo Siérguei Iessiênin, desiludido com os seus amores e com os rumos da revolução, deixou a vida para entrar na história trágica da literatura soviética. Após romper os laços da tumultuada relação com a bailarina Isadora Duncan, e negando-se a fazer de sua poesia uma arma de propaganda política, suicidou-se no Hotel Inglaterra, em Leningrado. Na parede do quarto, escreveu com sangue os versos derradeiros:

Até logo, até logo, companheiro
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.

Adeus amigo, sem mãos nem palavras
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo!

(Maiakóvski Poemas, Boris Schnaiderman, Augusto e Haroldo de Campos, Perspectiva, 2017, p.178).

Em 1926, Vladimir Maiakóvski respondeu em versos ao amigo:

Para o júbilo
o planeta
está imaturo.
É preciso
arrancar alegria
ao futuro.
Nesta vida
morrer não é difícil.
O difícil
é a vida e seu ofício.
(Idem, p.187).

A morte não é democrática, não dá direito à réplica: a palavra final, monológica, é sempre a do suicida. Não adiantava mais, portanto, insistir que “primeiro/ [era] preciso/ transformar a vida,/ para cantá-la/ em seguida”. Maiakóvski sabia que “os tempos [estavam] duros/ para o artista”, e que Iessiênin havia sucumbido exatamente porque não conseguia mais “arrancar alegria ao futuro”.

Se pudesse falar como “Brás Cubas”, aliás, replicaria de “além-túmulo” encarnando o “Werther” de Goethe, de “aquém-túmulo”: é inútil exortar um moribundo a levantar da cama e correr uma maratona. Siérguei, como a personagem suicida do bardo alemão, pediria a Vladimir a arma emprestada, como se a profetizar irônico, que seria com ela que o poeta “otimista” também iria se matar, cinco anos depois.

Enfim, em 14 de abril de 1930, com o revólver que não emprestara a Iessiênin na mão e a opressão na cabeça, não bastou a vodca que receitava como antídoto aos céticos para que ele mesmo não morresse de tédio. Quem sabe até, no concerto terminal das vozes que reverberavam em sua consciência atormentada, não tivesse mesmo ouvido Siérguei atirando-lhe na cara as palavras com que já cavava a própria cova:

Do meu ponto de vista, a melhor obra poética será a escrita segunda um mandato social do Komintern, tendo por finalidade a vitória do proletariado, transmitido por palavras novas e compreensível por todo mundo (Maiakóvski, Poética: como fazer versos, Global, 1991, p.23)

Iessiênin certamente acusaria que o poeta “militante”, como um burocrata do partido, apontara a arma para si mesmo, dando um tiro fatal no coração da própria poesia. Prosseguiria incisivo, confrontando Vladimir consigo no tribunal da autocrítica, para lembrar-lhe a Conversa sobre poesia com o fiscal de rendas:

Para que fazer
da rima, mira
e do ritmo, chibata?
(…) Porém
se vocês pensam
que se trata apenas
de copiar
palavras a esmo,
eis aqui, camaradas,
minha pena,
podem
escrever
vocês mesmos!

(Idem, p.200).

O mesmo Maiakóvski que parecia legitimar o poder do partido sobre todas as instâncias da existência, reconhecendo-lhe autoridade, inclusive, para definir as regras da poesia e as tarefas do poeta, não cabia naquele “uniforme” do soldado-escritor: afinal, ele sabia que era “uma nuvem de calças”. Suas medidas, na arte e na vida, eram muito maiores: o figurino oficial jamais serviria em alguém do porte de Vladimir.

Em suas palavras, em Incompreensível para as massas, o “crítico” burocrata não entende nada da arte poética:

Entre escritor
e leitor
posta-se o intermediário,
e o gosto
do intermediário
é bastante intermédio.

(Idem, p.201)

Definitivamente, “a melhor obra poética” não poderia jamais ser a “escrita segunda um mandato social do Komintern”. É o próprio Maiakóvski quem desautoriza a bobagem que dissera, ironizando o dirigente:

Továrich Maiakóvski,
por que não escreve iambos?
Vinte copeques
por linha
eu lhe garanto, a mais.
E narra
não sei quantas
lendas medievais,
e fala quatro horas
longas como anos.
O mestre lamentável
repete
um só refrão:
– Camponês
e operário
não o compreenderão.
O peso da consciência
pulveriza
o autor.

(Idem, p.203)

Iessiênin rompeu com a vida um ano depois da morte de Lênin: não teve, portanto, o dissabor de assistir à degeneração do Estado operário que ajudou a construir. Maiakóvski, que fora tão crédulo, já não conseguia mais “arrancar alegria ao futuro”, suicidando-se um ano após a expulsão de Trotsky da URSS, marco da consolidação do stalinismo: “Menos amor,/ cada vez menos ações,/ e o tempo/ na corrida/ minhas têmporas esmaga” (p.195).

O triunfo da contrarrevolução, enfim, implicaria o extermínio de toda uma geração de grandes poetas, cientistas e militantes bolcheviques. Um dos sobreviventes do terrível campo de trabalhos forçados de Kolimá, na inóspita Sibéria, foi o escritor Varlam Chalámov, preso político por vinte anos. Convivendo com os “blatares” (a casta mafiosa da bandidagem), que não apreciavam poesia, notou que Maiakóvski era desconhecido entre eles. O que Vladimir pretendia, que era escrever poemas “compreensíveis por todo mundo”, parece ter sido conquistado por Iessiênin, conforme o depoimento de Chalámov:

Era o único poeta reconhecido e consagrado pelos bandidos, os quais, via de regra, não apreciam a poesia. Posteriormente a bandidagem fez dele um ‘clássico’. (…) Os bandidos sabem de cor os poemas de Iessiênin sobre prostitutas embriagadas e há muito os têm como parte de seu ‘arsenal’. (…) Esforçando-se por frisar de algum modo sua intimidade com Iessiênin, por demonstrar ao mundo inteiro a sua ligação com os versos do poeta, os bandidos (…) tatuam no corpo citações de Iessiênin. Tatuados num grande número de jovens blatares, entre figuras sexuais, cartas de baralho e lápides tumulares, os versos mais populares são:

Foi tão pouco o caminho percorrido,
Foram tantos os erros cometidos.

Ou:

Se for para arder em chamas, que arda até o fim,
Quem se consumiu em fogo não provoca incêndio.

Eu joguei na dama de espadas
E só me veio o às de ouros.

Penso que nenhum outro poeta no mundo tenha sido divulgado dessa forma” (Varlam Chalámov, Ensaios sobre o mundo do crime“, Editora 34, 2016, p.132-137).

Enfim, falando a distintos segmentos da sociedade, ambos entraram para a história da grande poesia russa moderna. Em seu nome e de Iessiênin, Maiakóvski brada aos estúpidos ouvidos entupidos dos autoritários maus leitores de plantão:

E quando
este sol
cevado como um porco
se erguer
sobre um porvir
sem mutilados nem mendigos

estarei
podre e morto,
de bordo,
junto
de uma dezena
de colegas.
Façam
o meu balanço
a posteriori!

 

 

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[Dedico estas reflexões ao meu primo Irineu Franco Perpétuo, cujas traduções de escritores russos ampliam meus horizontes literários; à minha camarada Ana Maria Marchiori, com quem divido inquietações políticas e estéticas; ao amigo e mestre Boris Vargaftig, a quem presenteei Ensaios do mundo do crime, e de quem ganhei Contos de Kolimá, do nosso Varlam Chalámov.] [Dedico também ao meu parceiro musical Gustavo Galo, cujo disco Sol, inspirado em Maiakóvski, ilumina meus ouvidos.]

 

 

 

 

 

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Paulo César de Carvalho é militante da RESISTÊNCIA-PSOL.




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