Deus está dirigindo bêbado


Editora Urutau lança livro de poemas do professor de filosofia do Direito, Andityas Soares de Moura Costa Matos, Deus está dirigindo bêbado e nós estamos presos no porta-malas. Confira comentários sobre a escrita de Andityas, trechos de seu novo livro e o convite para lançamento em Belo Horizonte.

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Onde se pode, ainda, garimpar a mineiridade poética, neste alvorecer de milênio? Se a mineiridade está alicerçada na arquitetura colonial, a poesia é máquina do tempo e pode, num quebrar de linha, passar da coluna jônica ao arcobotante, da rosácea à mansarda, da marquise ao vão livre. Conciliar o ancestral ao virtual é o eterno desafio do poeta mineiro, que já gonzagou arcádico, já alphonsou simbólico, já murilou surreal e já drummondou social. Em mãos temos um que encara o desafio.

Andityas Soares de Moura, um atípico goliardo hodierno, debate-se entre a medievalidade e a modernidade, recolhendo os cacos de filosofia, pintura ou música entre as pedras do caminho barroco desbarrancado. Este feixe de versos não costura: descose o discurso arquivado na estante estática. Quando estamos diante do molde tradicional, como o dos trovadores, glosadores e sonetistas, temos parâmetros cômodos de aquilatação da pedra lapidada, mas quando a pepita é bruta ou esfarelada, só nos resta peneirar conceitos, coisa que a multifacetada poesia de Andityas nos incita a fazer. Aqui há muita informação pulverizada, mas a leitura recupera um pó de estrada levantado pelo vento da inventividade: pot-pourri de alaúde e bandolim. Como diz o próprio poeta, em Tiradentes não se procuram bundas. Num poeta, se as acham. Bundas intelectuais, entenda-se, cuja ventosidade varre os derradeiros ciscos de preciosismo empedrado. As cantigas de Andityas são galático-amaneiradas, digo, amineiradas.

Glauco Mattoso, 2004

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 “Poeta gnóstico”, assim se declara Andityas Soares de Moura. Não está só nessa condição. Harold Bloom, em Genius, identifica gnosticismo à própria criação poética: “Os mais ambiciosos poetas na tradição romântica ocidental, aqueles que fizeram uma religião de sua própria poesia, foram gnósticos, de Shelley e Victor Hugo até William Butler Yeats e Rainer Maria Rilke”.[1] William Blake e Gérard de Nerval também receberam influência direta de ideias e temas do gnosticismo. Fernando Pessoa declarava-se gnóstico. Allen Ginsberg, o poeta da geração beat, apresentava-se como adepto do budismo tibetano e como gnóstico. André Breton proclamou o surrealismo como herdeiro do gnosticismo.

Religião dualista, porém heterodoxa, não-normativa e não-institucional, dispersa em comunidades, o gnosticismo competiu diretamente com o cristianismo nos primeiros séculos d.C. Por identificar salvação ao conhecimento absoluto, intransitivo, é uma das matrizes do misticismo e esoterismo na tradição ocidental. Temas gnósticos reaparecem em movimentos heréticos medievais e em ocultismos modernos. Esquecido por séculos, o gnosticismo passou a ser objeto de interesse a partir do século XVIII e, especialmente, de alguns anos para cá, após a descoberta em 1945 do enorme acervo de “escrituras” em Nag Hammadi. De sua complexa mitologia, destaco o mito do demiurgo; ou melhor, sua versão do mito platônico do demiurgo, da criação do mundo por um “pequeno deus”.[2] No gnosticismo, esse demiurgo – Ialdabaoth ou Saclas ou Samael – é obtuso, arrogante, cruel. Houve demonização do Jeová bíblico, oferecendo uma evidente metáfora anti-autoritária. Daí o individualismo gnóstico, associado por Hans Jonas, seu importante estudioso, ao inconformismo: “Não-conformismo era quase um princípio da mente gnóstica, intimamente ligado à doutrina do ‘espírito’ soberano como fonte de conhecimento direto e iluminação”.[3]Outro especialista, Layton,[4] caracteriza gnose como “entendimento não-discursivo”; portanto, como revelação ou iluminação, experiência mística afim à expressão poética.

Esse traço gnóstico, ou do qual o gnosticismo é metáfora, o inconformismo, é evidente na poesia de Andityas Soares de Moura. Expressa-se, nesta e em obras anteriores, como crítico contundente da sociedade em que vivemos, do mundo regido pela lógica da mercadoria, em Língua de fogo do não, que comenta a pergunta de Hölderlin sobre o lugar do poeta em tempos de carência; em As palavras são só palavras, no Canto ao senhor das moscas, em Sozinho e no Poema para ser lido na ceia de Natal. São poemas extensos, detalhados em sua dissecção do presente estado de coisas, que se sustentam pela eloquência e veemência.

Mas essa é uma das múltiplas faces da sua poesia. A propósito, Frances A. Yates abre seu importante Giordano Bruno e a Tradição Hermética com esta observação: “Todos os grandes movimentos de vanguarda da Renascença tiraram vigor e impulso emocional do olhar que lançavam ao passado”.[5] Isso, pelo impacto da difusão de obras do hermetismo, neoplatonismo e gnosticismo da Antiguidade tardia sobre a cultura renascentista. Da frase de Yates poderia ser retirada a expressão “da Renascença”. Ficaria assim: “Todos os grandes movimentos de vanguarda tiraram vigor do olhar que lançavam ao passado”. Andityas Soares de Moura, poeta culto, conhece a intrincada rede de relações entre o antigo e o novo, tradição e modernidade. Declara-se de outras épocas em Eu estive no deserto, alguém que “Sonha uma vida outra”. Reescreve o arcaico, inclusive hinos órficos: algo difícil, que requer talento e sensibilidade para não reduzir-se ao decalque. Faz sua a voz de um cátaro; alude aos textos do gnosticismo; por exemplo, O Evangelho de Judas. Especialmente, em A canção do Mestre Celestial, um de seus poemas de antinomias, oxímoros e paradoxos – expressão por excelência de místicos –, reproduz uma antiga “escritura” gnóstica[6] e ao mesmo tempo cria algo novo, original, por estender e personalizar o campo abrangido pelas antinomias, confundindo transcendência e imanência, o “eu” do poeta e o princípio supremo. Neste e em outros poemas, está no mundo mítico; ao mesmo tempo, celebra o aqui e o agora, fonte de iluminações ou epifanias. Registra uma sucessão de experiências de maravilhamento, como em Clara jóia: “por um instante/ estamos lá”; nas Cenas belo-horizontinas; em Cerimônia: “Bem-vindo ao teu dia”; em Noite: “Teu corpo nasceu para o amor,/ para estar aqui e agora”; na proclamação final, celebrando a carne. Interessante como os poemas da negação e crítica são extensos; os do êxtase e registro do sublime são concisos, sintéticos, como cabe às iluminações, flashes dos quais o hai-kai é exemplo.

Mas os gnósticos não foram dualistas que negaram o mundo? Sim e não: já foi dito que todo dualismo tem um monismo de fundo; que as doutrinas mais dualistas são aquelas dos que aspiram mais intensamente à unidade, à superação das contradições e antinomias. Poetas não são doutrinadores; poesia é paradoxo, encarnado à perfeição por William Blake, homenageado em Auroras Consurgem, inclusive com uma paráfrase de seu “Tudo o quer vive é sagrado”, de O casamento do Céu e do Inferno, e alusão a seus famosos versos celebrando a unidade essencial de todas as coisas: “Num grão de areia ver um mundo/ Na flor silvestre a celeste amplidão/ Segura o infinito em sua mão/ E a eternidade num segundo”. Em comum a Blake e Andityas Soares de Moura, e a uma estirpe de místicos, a capacidade visionária de enxergar o macrocosmo, o Universo, no microcosmo: em Blake, no grão de areia; em Andityas Soares de Moura, em uma sucessão de experiências de maravilhamento.

O poeta, equivalente a Prometeu, captura, não o fogo, porém o tempo verdadeiro, subtraindo-o ao domínio de deuses despóticos e de seus representantes na imanência. Gnoses poéticas: mas a libertação não é – como o foi entre místicos medievais e da Antiguidade tardia – através do ascetismo, da negação do mundo, porém da realização do desejo. Reproduzindo heréticos radicais e místicos da transgressão, a superação do tempo cronológico pelo encontro amoroso corresponde à união absoluta, às núpcias alquímicas às quais se refere o título deste livro: à superação da contradição entre sujeito e objeto, sonho e realidade, o desejo e sua realização.

Poesia gnóstica? Não: poesia total.

Claudio Willer, 2010


[1] BLOOM, Harold. Genius: a mosaic of one hundred exemplary creative minds. New York: Warner Books, 2002.
[2] Mais sobre gnosticismo em minha Tese de Doutorado (USP): Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna, a sair em livro pela Civilização Brasileira.
[3] JONAS, Hans. The gnostic religion: the message of the alien god & the beginnings of christianity. Boston: Beacon Press, 1963.
[4] LAYTON, Bentley (organização, introdução e notas). As escrituras gnósticas. Trad. Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2002.
[5] YATES, Frances A. Giordano Bruno e a tradição hermética. Trad. Yolanda Steidel de Toledo. São Paulo: Cultrix, 1995.
[6] O Trovão – Intelecto Perfeito, que faz parte do acervo de Nag Hammadi.

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Talvez

Às vezes alguém me surpreende na rua
e com o bigode meio cômico me pergunta:
– você ainda escreve poesia?
E repete, gozoso do paradoxo,
salivando de prazer,
o que se percebe pelas gotículas
que lhe decoram o bigodinho:
– mas você ainda escreve mesmo poesia?

Nessas horas eu nego.
Admito estar sem inspiração,
digo que na Sérvia ou na Síria
existem hoje poetas,
talvez em mais nenhum lugar,
certamente não aqui, não em mim.

O meu amigo vai-se embora
com a doce sensação do dever cumprido.

(em casa, às escuras, poupo
papel e digito este poema
no campo CONTATOS do meu celular)

***

Direitos autorais

Eu sinto a vontade de PRODUZIR um poema
que vai ser lido por toda a gente
e vai estar no coração dos amantes
vai ser aquele poema da infância
quando nem se conhecia a língua
quando se pensava que língua é
só essa gravata vermelha de sangue
pendurada entre os dentes.

Nele talvez alguns veriam alívio
outros o motivo para lutar contra a morte
e uns ainda o recitariam – o meu poema! –
dentro das prisões, dentro de tudo
que dá essa sensação estranha
de ferrar e ser ferrado.

Eu queria que cavalgassem esse poema
e o usassem como flor pra namorada
ou bomba pro Planalto
e nessa última hipótese eu exigiria
como único direito de autor,
que todos os que fazem leis para si mesmos
que riem sob seus paletós
que contratam marqueteiros
que discutem a alíquota do imposto de renda
(enquanto comem deduzíveis ninfetas)
que constroem impérios no Maranhão
em BH SP RJ e em todo canto
que sempre estiveram lá
e que pensam sempre estar lá
que navegam nos jatinhos da FAB
e que cheios de gravidade nos suaves rostos
bocas retorcidas
expressões indignadas – mas honrosas –
defendem a democracia representativa
porque sem ela só há
totalitarismo autoritarismo nazismo burrismo,

que todos fossem mortos com requintada crueldade.

Nessa segunda – e última – hipótese, como eu disse,
poderiam REPRODUZIR meu poema
sem pagar direitos autorais.

***

Fim do horário de verão

Do que me adianta uma hora a mais?
Eu queria mesmo era um minuto
pra enfiar uma faca na cara
de todos vocês.

Será que ninguém vê que o mundo
é pura insanidade, cascos de cavalo
pisando fundo na fragilidade de
tudo que é frágil?

Eu vi na TV agora que gente morreu
de tiro e fome, de avião que cai,
que uns ainda se preocupam em esconder
notas de dólar na cueca – e isso
sem se sentir patético, pífio, pequeno abutre –
e tantas outras sujeições que ninguém
quer para seu filho ou filha querido/a
(então, por que fazem a si mesmos?).

Eu estou alarmado com o mistério que
me mantém vivo, carente de toda
essa ajuda de um bairro melhor
onde não se roubassem carteiras

porque não precisaríamos de carteiras.

***

Deus sabe
que votei feliz na última eleição
Deus sabe
que meu lixo é divido em recicláveis e lixo de verdade
Deus sabe
que minha mulher está saciada
Deus sabe
que não importa o que me incomoda na rua
Deus sabe
que o clima de hoje é igual ao de ontem
(com uma leve frente quente)
Deus sabe
que a propina que me deram é merecida
Deus sabe
que nunca quis cuspir na cara daquele viado
Deus sabe
que não estuprei essa menina
(ela queria)

Deus sabe
que eu acredito em Deus

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Andityas Soares de Moura Costa Matos é poeta e professor associado de Filosofia do Direito da UFMG. Tem doutorado em Filosofia pela Universidade de Coimbra; em Direito e Justição pela UFMG e pós-doutorado pela Universitat de Barcelona. Blogue: http://fomeforte.blogspot.com/. E-mail: vergiliopublius@hotmail.com




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