Desfamiliares


 

Em 1984, a editora Codecri lançava o livro Antolorgia / Arte Pornô, o primeiro volume da coleção ARTESetCETERA. Além de Glauco Mattoso, Paulo Leminski e Bráulio Tavares, a seleção de poetas incluía a Leila Míccolis, foi quando a li pela primeira vez.

Segundo Leila, “viva a puta merda, a puta velha, a putaria, a filha da puta, e toda a puta que pariu”. Entre tantas putas e nas páginas da Antolorgia, há este poema seu:
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Dos males, o menor

Se eu te chamo de putinha
sou machista e indecorosa!
No entanto, se não chamo,
você não goza…

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Uma arte pornô talvez não se faça sem o uso dos palavrões – é um dos modos dela ser indecorosa –; a poesia pornô, certamente, aprecia a palavra censurada, mas não apenas nos sustos que ela, porventura, provoca. Uma vez poesia, palavras e palavrões prestam contas a grandezas textuais que vão além do vocabulário; no poema de Leila, sem dúvida, nota-se a musicalidade prosódica encadeando as frases e palavras, contudo, sua engenhosidade poética não se resume nisso – seria melhor apreciar como se dá, nos versos, o encadeamento entre o que se diz e como se faz para dizê-lo.

O poema é uma quase quadra, e é justamente nesse “quase” que o poema se mostra engenhoso. Nas quadras, os quatro versos costumam ter métricas regulares, geralmente são redondilhas maiores ou menores – versos de sete ou de cinco sílabas –. A quadra de Leila sugere que ela seria formada por redondilhas maiores, como são os três primeiros versos, todavia, o último tem apenas quatro sílabas, destoando do ritmo dos demais. Assim, a estabilidade prosódica gerada pela recorrência da mesma métrica nos três versos anteriores – todos com sete sílabas, acentuadas na terceira e última sílabas – é quebrada por um verso de quatro sílabas, com acentuação apenas na última sílaba, modificando-se sensivelmente o compasso rítmico estabelecido entre as acentuações tônicas e átonas do início. Uma escansão do poema permite visualizar isso melhor:
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Se eu te chamo de putinha     ..u u – u u u –
sou machista e indecorosa!     u u – u u u –
No entanto, se não chamo,     u u – u u u –
você não goza…                     u u u –

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Enquanto isso, na narrativa do texto, duas amantes se encontram; uma delas resiste aos assédios verbais da outra, mas precisa deles para gozar. Se o assédio flui por meio dos palavrões, flui também o gozo, nas dimensões prosódicas fluem as redondilhas maiores e o ritmo estabelecido por elas; entretanto, se o assédio para, enquanto a palavra “putinha” some do poema, interrompendo-se o gozo, rompe-se o ritmo. A fluência narrativa está correlacionada à fluência prosódica, o que se passa em uma, passa-se na outra; a simplicidade do texto é apenas aparente.

Como ler Leila Míccolis? Em princípio, bastaria uma instrumentalização básica em língua portuguesa, contudo, entre a língua e as inúmeras falas que ela pode gerar, há uma dimensão discursiva, que encaminha modos de ler determinados tipos de discursos. Em outras palavras, das potencialidades da língua e suas realizações em fala, há gêneros discursivos, que, entre outras funções, permitem distinguir, em nossa cultura, por exemplo, discursos religiosos, políticos, jornalísticos, literários, etc.

Tais formações discursivas, uma vez estabilizadas, constituem-se polemicamente; no discurso literário, há critérios para se dizer o que pertence ou não a seu campo – o que é literário e o que não é –. Tais critérios, porque sempre são relativos a determinada postura crítica, traduzem justamente os embates ideológicos que dão forma aos muitos modos de se fazer literatura. A pergunta inicial, portanto, poderia ser assim reformulada: em termos literários, como Leila Míccolis encaminha sua poética?

Gostar de poesia, longe de ser algo centrado unicamente na subjetividade, demanda, dos leitores mais sensíveis – por isso mesmo, mais atentos –, reflexões centradas na objetividade da língua e de seus discursos. Valendo-se dessa objetividade, quando me perguntam de qual poeta gosto mais, costumo afirmar que depende do regime discursivo convocado no poema. Com isso, quero dizer que, além de prestar contas à poesia de modo geral, o poeta escolhe determinados encaminhamentos poéticos e deles se vale tanto para compor, quanto para se justificar esteticamente. Justificado o poema no regime poético em que está composto, ao escolher algumas formas discursivas e, consequentemente, excluindo outras, são sugeridos modos diferentes de apreciação.

Pressupondo que a poesia se faz mediante o trabalho com as linguagens verbais, seria conveniente procurar, nessa engenharia poética, propostas de sistematização daqueles regimes discursivos. Para isso, vale a pena comparar Augusto de Campos com Roberto Piva.

Augusto de Campos, em muitos poemas, faz a desconstrução do sistema linguístico. O poeta investe:

(1) na segmentação da frase em seus constituintes lexicais – no poema “Coração – Cabeça”, a frase “minha cabeça começa em meu coração” aparece escrita cor ( em ( come ( ca ( minha ) beça ) ça ) meu ) ação, enquanto a frase “meu coração não cabe em minha cabeça” aparece escrita cabe ( em ( não ( cor ( meu ) ação ) cabe ) minha ) ça –;

(2) na segmentação da palavra em seus constituintes morfológicos – o poema “Cidade” é construído a partir do morfema -idade, sufixo que expressa uma qualidade subjetiva em forma de substantivo, sua acomodação fonológica em [sidade], e de uma série de adjetivos em que a palavra “cidade” ressoa no substantivo formado a partir dele, como capaz-capacidade, loquaz-loquacidade etc.;

(3) na segmentação do morfema em seus constituintes fonológicos – no “Poetamenos”, aparecem versos como semen(t)emventre, em que frases inteiras são encaminhadas em possíveis combinações de palavras por meio de fonemas comuns, como nas possíveis frases “sêmen em ventre” e “semente em ventre”, que surgem do verso citado –.

Roberto Piva, contrariamente, investe antes no fluxo entoativo do que em segmentações dos níveis análise da língua. O poema “Os anjos de Sodoma” é um bom exemplo de como, a partir do mote “Eu vi os anjos de Sodoma”, o poeta desenvolve seus versos:

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Eu vi os anos de Sodoma escalando
………..um monte até o céu
………..e suas asas destruídas pelo fogo
………..abanavam o ar da tarde
Eu vi os anjos de Sodoma semeando
………..prodígios para a criação não
………..perder seu ritmo de harpas
Eu vi os anjos de Sodoma lambendo
………..as feridas dos que morreram sem
………..alarde, dos suplicantes, dos suicidas
………..e dos jovens mortos
Eu vi os anjos de Sodoma crescendo
……….com o fogo e de suas bocas saltavam
……….medusas cegas
Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e
……….violentos aniquilando os mercadores,
……….roubando o sono das virgens,
……….criando palavras turbulentas
Eu vi os anjos de Sodoma inventando
……….a loucura e o arrependimento de Deus

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Em linhas gerais, enquanto Augusto de Campos afirma a descontinuidade da palavra, Roberto Piva afirma sua continuidade – um recorta a língua em seus constituintes formais, o outro garante seu fluxo discursivo inserindo a palavra no fluxo da entonação –. No último caso, o fluxo não é apenas entoativo; há um fluxo semântico na medida em que o enunciador, relacionando significados comumente díspares, dá forma a delírios figurativos. Desse modo, a partir da definição da categoria formal descontinuidade vs. continuidade, aplicada às linguagens verbais, é possível propor uma sistematização dos regimes de engenharia poética, uma vez que eles pretendem descrever os modos de fazer poesia. Portanto, dois regimes podem ser definidos: (1) o regime do poeta que afirma a continuidade, o poeta linguista – esse poeta recorta a língua em seus constituintes como fazem os linguistas em suas análises –; (2) e o regime do poeta que afirma a descontinuidade, o poeta pregador – esse poeta verseja de modo semelhante aos pregadores religiosos, imbuídos de inspiração mística em seus delírios figurativos –.

A partir desses dois regimes contrários, mais dois regimes podem ser derivados. Há poetas que preferem negar a descontinuidade verbal; aproximando-se da fala coloquial, esses poetas não dividem o discurso em seus constituintes linguísticos, mas também não investem em fluxos entoativos e conteúdos delirantes. Em seus versos, tais poetas dão forma a conversas, não a pregações. Isso ocorre em alguns poemas de Ferreira Gullar, por exemplo, “O anjo”, como se pode verificar em sua segunda estrofe:
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Antes que o olhar, detendo o pássaro
no vôo, do céu descesse
até o ombro sólido
do anjo,
…………criando-o
– que tempo mágico
ele habitava?

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A palavra não está segmentada, nem há fluxos entoativos; os versos livres e a concentração semântica nas figuras do pássaro, do anjo e do tempo aproximam a poesia da fala. O poeta parece conversar com seus leitores, trata-se do poeta conversador. Tudo se passa, portanto, como se houvesse gradações entre os dois termos contrários descontinuidade vs. continuidade, delineando zonas de atuação poética:
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descontinuidade / linguista
não-descontinuidade / conversador
continuidade / pregador

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Por fim, há poetas que preferem negar a continuidade, em percurso contrário ao do poeta conversador. Esses poetas lançam mão de versos metrificados – as métricas, com suas regras, impõem limites às continuidades prosódicas e semânticas do pregador sem, no entanto, segmentar a palavra, como o linguista –. Por fazer poesia mediante regras de composição bem definidas, trata-se do poeta arquiteto.

Dois bons exemplos de poetas arquitetos são Glauco Mattoso, com seus 5555, todos em decassílabos heróicos ou sáficos, e Pedro Xisto, com seus milhares de haikais, todos em versos de cinco, sete e cinco sílabas, com rimas nos finais das redondilhas menores e com o acento da redondilha maior rimando com o final do verso. Eis alguns haikais de Pedro Xisto, em que essas regras são respeitadas, apesar das inovações do poeta na mesma estrutura:
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atabaques batem
atabaques atabaques
atabaques:
baques

iaiá iaiá ia
aí: ôi ioiô: aí
ai ai iaiá ia

mar santo (a chamar
a bela) espelha e revela
já: mãe iemanjá

olinda: ó linda
filha d’algo glauco infindo
marim a marinha

LÁJEA LÁJEA LÁJEA
………..LÁJEA LÁJEA LÁJEA LÁJEA
……………………………………..LÁJEA LÁJEA lágrima

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Retomando o raciocínio anterior, há novas gradações entre os dois termos descontinuidade vs. continuidade, mas, dessa vez, em sentido contrário:
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continuidade / pregador
não-descontinuidade / arquiteto
descontinuidade / linguista

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Desse ponto de vista – um ponto de vista semiótico –, Leila Míccolis é poeta conversadora; seus poemas, mesmo com rimas, estão mais próximos da poesia coloquial, próxima da fala, que das estruturas prosódico-fonológicas enfatizadas por Glauco Mattoso ou Pedro Xisto. Cabe indagar, em seguida, como Leila desenvolve sua conversação, ou seja, buscar entender sua temática, seus os modos de dizê-la, as relações entre o dizer e o dito.

Embora a poesia de Leila enfatize a temática erótico-pornográfica – o que já seria relevante o bastante, visto o caráter pudico de boa parte de poesia brasileira canonizada –, a leitura de sua obra mostra liberdade em abarcar outros temas. Sua conversação, assim como a arquitetura de Glauco Mattoco, não se presta apenas ao erótico, mas fala de quase tudo, mesmo no erotismo há gradações, do fescenino ao suave. Apenas para ilustrar isso:
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Dose

Queres saber o que ocorre?
O nosso amor, de tão sóbrio,
virou um porre.

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Câmera Baixa

Vendo o aparador de grama,
formiga protesta e berra;
— Desliguem essa motosserra!
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A Geometria do Mar

Tirar zero em Matemática
eu considero uma afronta:
e acertar os ângulos das ondas…
não conta?
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Circo

Rir por obrigação
ou pra fazer média
é uma tragédia.
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Rinha de Gatos

Viver como os gatos,
que se aninham
um em cima do outro,
e dormem numa intimidade amiga,
até a próxima briga.
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Autodidata

Sofri
a influência de muitos poetas
que nunca li.

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Nomes Trocados
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A natureza é sábia,
mas às vezes se atrapalha.
Um exemplo desta falha
léxico-gramatical,
vemos no reino animal:
quem devia se chamar Viuvinha
não era a abelha-rainha?

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Prova

Da cola escreve o conteúdo
na perna bem torneada;
e o colega, vendo tudo,
não consegue colar nada.

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Radar

Em geral,
o meu normal
é acorda analógica
e ir dormi digital.

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Leila Míccolis, semelhantemente a Glauco Mattoso, vale-se de sua engenharia poética para falar de tudo. Assim como Glauco, Leila vê o mundo
mediado pelo erotismo; todavia, enquanto ele escolhe o soneto para se expressar, ela se define por meio de um tipo específico de conversação, caracterizado pela concisão da palavra. Portanto, para lê-la com acuidade, pode ser produtivo procurar por Leila antes em seus modos de dizer que, propriamente, em seus temas preferidos.

Os poetas conversadores, em geral, optam por longos discursos. Como esse regime é apto para desviar a atenção do aparato prosódico-fonológico – enfatizado pelos poetas arquitetos – para os conteúdos semânticos formados na poesia, o regime do conversador se presta com bastante eficiência para os discursos engajados, já que o regime, por si só, cuida de enfatizar a tematização, tão importante para justificar e afirmar quaisquer ideologias. Para exemplificar isso, basta recorrer a poetas afinados com causas políticas, como Ferreira Gullar, ou ações afirmativas, como Cuti ou Horácio Costa – envolvidos, respectivamente, com os movimentos negro e homoerótico –, poetas que, com recorrência, valeram-se da poesia dita coloquial. Leila Míccolis, todavia, embora converse bastante – sua obra é numerosa –, ela é concisa, distanciando-se da prolixidade dos três poetas anteriores. Portanto, se as longas conversas de Ferreira Gullar, Cuti e Horácio Costa garantem a explanação minuciosa das causas defendidas, caberia perguntar quais os efeitos de sentido gerados pela concisão de Leila.

Há, certamente, correlações imediatas entre a concisão e a prolixidade das formas poéticas e os quatro regimes poéticos determinados. Poetas linguistas e arquitetos tendem à concisão, enquanto os poetas pregadores e conversadores tendem à prolixidade – conversas e pregações sugerem poemas mais extensos que sonetos, haicais ou a maioria dos poemas concretos –. Para observar os longos textos gerados pelo desenvolvimento dos motes dos pregadores, basta recorrer ao mote “Eu vi os anjos de Sodoma” e como Roberto Piva o elabora em “Os anjos de Sodoma”, ou, ainda, aos motes “Eu vi os expoentes de minha geração (…) que (…)”, “Moloch” e “Eu estou com você em Rockland”, utilizados por Allen Ginsberg para compor seu extenso poema “Uivo”. Quanto aos conversadores, o fragmento que segue do poema “Torpedo”, de Cuti, cujo um dos temas é a ação afirmativa das identidades afro-brasileiras, é bom exemplo de como, a partir da ênfase em determinado percurso temático, esses poetas geram longas palestras quando, engajados, buscam se justificar:

 

irmão, quantos minutos por dia
a tua identidade negra toma sol
nesta prisão de segurança máxima?

e o racismo em lata
quantas vezes por dia é servido a ela
como hóstia?

irmão, tua identidade negra tem direito
na solitária
a alguma assistência médica?

ouvi rumores de que ela teve febre alta
na última semana
e espasmos
– uma quase overdose de brancura –
e fiquei preocupado.

irmão, diz à tua identidade negra
que eu lhe mando um celular
para comunicar seus gemidos
e seguem também
os melhores votos de pleno restabelecimento
e de muita paciência
para suportar tão prolongada pena
de reclusão.
(…)
.
Todavia, embora tais efeitos de concisão e prolixidade sejam confirmados nos regimes de encaminhamentos poéticos, confirmam-se, também, outras correlações – como, por exemplo, a conversação concisa de Leila Míccolis –, que, antes de invalidarem as correlações anteriores, terminam por trazer à tona as potencialidades de cada regime, encaminhado novos efeitos de sentido.

Ainda em termos gerais, os pregadores chegam a se apresentar como poetas místicos, evocando anjos, demônios e outras entidades religiosas, já os conversadores, em seus versos coloquiais, quase prosas, tendem a ser bem mais humanos. Se o pregador, do púlpito de onde fala, coloca-se acima do enunciatário do poema, para o conversador bastam encontros casuais para ele começar a falar. Entretanto, nessas conversas casuais, muitas vezes extensas e carregadas de seriedade, como são inseridas as rápidas e agudas intervenções de Leila?

Inserida na conversação, a poesia de Leila remete às formas ditas breves, como os chistes ou os trocadilhos. O conhecido estudo de Freud, O chiste e sua relação com o inconsciente, vem ao encontro da eficácia dessas escolhas. Grosso modo, Freud aproxima os mecanismos do chiste aos do inconsciente; para ele, o chiste seria um modo de expressar conteúdos reprimidos e, por meio dele, dizer algo que não poderia ser dito.

Conta-se que dois homens públicos, enriquecidos desonestamente, encomendaram retratos a renomado pintor. Na festa da exposição das telas, ambos perguntaram a certo crítico, entre os convidados, sua opinião, quando ele, surpreendentemente, reclama pela figura do Cristo, ausente entre as duas molduras. Conta-se também que, ao ser indagado sobre a visita feita ao primo rico, o primo pobre respondera: “foi uma visita familionária”. Os exemplos são do próprio Freud: no primeiro, na impossibilidade de ofender diretamente aos homens públicos, chamando-os ladrões, o crítico aponta a ausência do Cristo, crucificado entre dois ladrões; no segundo chiste, o neologismo “familinária” surge na combinação das palavras “família” e “milionária”, confundindo os significados na fusão entre os significantes, o que aponta para relações pessoais definidas entre distinções sociais, distinções supostamente superadas, mas que transparecem no seio dos ambientes familiares.

Colocados em contextos conversacionais e construídos por meio de frases e palavras, os chistes envolvem trabalhos com o discurso. Há neles uma deriva semântica que vai de encontro aos conteúdos afirmados nos fluxos conversacionais nos quais aparecem: no exemplo dos quadros, o chiste converte ilustres anfitriões em bandidos; no dos primos, as relações familiares sucumbem diante das diferenças sociais. Para reorientar esses fluxos, os chistes devem ter encaminhamentos narrativos capazes de fazer crer que os pontos de vista neles justificados são mais fortes que os afirmados na conversação fluente. Todavia, em sua eficácia, o chiste não se presta a longas réplicas, buscando contrariar o fluxo corrente com outro fluxo, mas o faz pontualmente, investindo na parada – o chiste age como susto no curso do esperado –. A parada da conversação é o silêncio, hora da reflexão ou do constrangimento.

Semelhantemente, a poesia concisa de Leila é um acento tônico na fluência dos poetas conversadores, um acento tônico e agudo. A poesia de Leila lembra os poemas concisos de E. M. de Melo e Castro, suas “Agudezas”. Inventando gêneros discursivos nos campos da poesia, Melo e Castro, em seu livro Neo-Poemas-Pagãos, compõe setenta agudezas, das quais selecionamos as três primeiras:

 

1.

área mínima
ponto máximo
………areia
………líquida
………………conto
………………labirinto

2.
corpo fálico
mar raso
……….única
……………..sereia
…………………….aérea

3.
semeia som
entre ar
e          areia
…………..cimo de onda
…………cheia

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Melo e Castro, porém, ao se dedicar à descontinuidade da palavra em seus poemas concretos e experimentais, ou às formas fixas, como nos sonetos, oscila entre os regimes dos poetas linguistas e arquitetos, o que faz de suas agudezas novas formas fixas, cujos versos dos poemas números um e três podem muito bem servir de definição do gênero. Leila não se coloca depurando formas preestabelecidas; seus versos, embora concisos e agudos, orientam sua poesia, como está dito antes, de modo contrário.

Para compreender melhor a engenharia poética de Leila Míccolis e como ela faz de seus chistes, poesia, vale a pena comparar, no que diz respeito ao papel das rimas, seus versos com os de Pedro Xisto, que, como Melo e Castro, também oscila entre os regimes dos poetas linguistas e arquitetos. Retomando os cinco haikais citados anteriormente, por mais inovadores e engenhosos, as rimas são uma constante – ocorrem sempre nos finais das redondilhas menores e com o acento da redondilha maior rimando com o final do verso, vale lembrar –, pois elas garantem a estrutura prosódica imposta pelo gênero convocado pelo poeta. Além da métrica – outra constante –, as rimas, nos haicais de Pedro Xisto, estão em função das coerções do gênero; apreciá-las envolve, antes de tudo, valorizar as soluções encontradas não apenas no seio do poema, mas em relação à forma canônica escolhida. Em Leila Míccolis isso não ocorre; como não há regras rígidas a seguir, suas rimas, assim como as métricas, surgem ao longo do poema sem condições pré-estabelecidas, gerando efeitos de sentido de espontaneidade, que desvinculam os versos de tradições bem mais formais.

As rimas, talvez por soarem com maior evidência que as demais propriedades prosódicas do poema, parecem, para os leitores menos acostumados com a poesia, a única característica desse tipo de discurso. Isso se verifica em poetas jovens e inexperientes, quando quase não cuidam da métrica, ou em visões conservadoras, que não reconhecem a poesia moderna quando ela se faz em versos não rimados. Aproveitando-se disso, Leila Míccolis cria, com rimas, uma poesia despretensiosa, mas não mal elaborada; a breve análise da eficácia textual do poema Dos males, o menor, feita no início, ratifica nossas observações. Nesse poema – Se eu te chamo de putinha / sou machista e indecorosa! / No entanto, se não chamo, / você não goza… –, a palavra “goza”, que rima com “indecorosa”, não aparece aleatoriamente, apenas para fazer com que o texto soe como poesia por meio da rima – como se rimas fossem as únicas soluções dos poemas –; ela está articulada à quebra da métrica e suas correlações com a narrativa. A quebra da métrica, em relação à métrica estabilizada nos três versos anteriores, faz com que o último verso soe como verso livre; a rima, articulada à quebra, termina por soar livre também.

Sem se afirmar aparentemente em arquiteturas linguísticas complexas, a poesia chistosa de Leila, soando espontânea e despretensiosamente, calçada em suas “rimas livres”, vem de encontro, no seio das conversações sérias e extensas, aos poetas conversadores; todavia, devido a sua coloquialidade, sem deixar de se realizar nesse regime poético. Resta, ainda, verificar a atitude performática gerada nesses modos de fazer poesia.

No modelo teórico dos regimes poéticos, além de uma sistematização dos modos de fazer poesia, é possível inferir derivas de sua realização enquanto performance, ou seja, enquanto modo de atuação do poeta diante de sua obra e de seus coenunciadores. Os poetas linguistas, na medida em que afirmam a descontinuidade das unidades linguísticas, necessitam da escrita como recurso para segmentar a palavra, que, manifestada oralmente, devido ao fluxo entoativo, surge sempre encadeada às demais palavras – apenas na análise, as unidades linguísticas se dão a conhecer enquanto unidades discretas –. Isso faz com que esses poetas sejam mais visuais, criando vínculos estreitos com os suportes utilizados para a escrita, sejam eles quais forem. Contrariamente, os poetas pregadores, quando afirmam a continuidade prosódica em seus motes e variações, derivam para a oralidade – geralmente são poetas antes dos palcos que dos livros –. O poeta, ao declamar, torna-se performer, indo ao encontro mais da práxis teatral que das artes plásticas e tipográficas. Essas tendências se fazem notar nos regimes intermediários dos poetas arquitetos e conversadores; o arquiteto se vale constantemente da escrita para organizar as formas poéticas escolhidas – a ordenação tipográfica de sonetos ou haicais pode exemplificar essa prática –; o conversador pratica seu gênero de performance construindo cenas enunciativas aptas ao desenrolar da oralidade, tranquilamente partilhada entre os coenunciadores e menos efusiva e centrada no enunciador poeta, como é a oralidade dos poetas pregadores, bem mais enfática.

Em estudos a respeito da poesia de Ana Cristina Cesar, que muitas vezes é concisa como Leila Míccolis, Viviana Bosi faz algumas observações a respeito das relações entre a atitude performática e o estilo breve e sucinto. Em linhas gerais, de acordo com Viviana Bosi, Ana Cristina Cesar, em confluência com artistas performáticos, faria com que algumas de suas poesias soassem como performances orais. O poema é um happening; poemas como estes, de Ana Cristina, soariam como happenings no seio da oralidade, assim como o happening se insere na vida cotidiana:

 

Estou vivendo de hora em hora, com muito temor.
Um dia me safarei – aos poucos me safarei, começarei um safari.

sou uma mulher do sec XIX
disfarçada em sec XX

Por que essa falta de concentração?
Se você me ama, por que não se concentra?

Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma
Tão distraidamente

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A inserção poética de Leila Míccolis é semelhante – recorrendo às conclusões de Viviana Bosi, é possível fazer as mesmas observações sobre sua práxis –. Em seus poemas-happenings, entre os poetas da literatura brasileira, Leila coloca-se como se conversasse conosco; nas conversas, muitas vezes sérias, seus versos são réplicas agudas e pontuais, fortes o suficiente para ressignificar a ordem fluente das coisas e da própria poesia.

 

*          *          *

 

Nos últimos meses do ano de 2010, o José Roberto Barreto, editor chefe da Annablume, convidou a mim, ao Gustavo Krause e ao Moacir Amâncio para compormos o conselho editorial do selo Annablume Literária, e definimos que um dos objetivos da coleção seria o de contribuir para a divulgação e preservação da memória literária brasileira. Naquele momento, vi a oportunidade ideal para editar a obra completa de Leila Míccolis, projeto que já vinha alimentando fazia algum tempo. Entramos em contato, ela me enviou prontamente todo o material, do qual, depois de uma organização prévia feita por mim, Leila cuidou atentamente, revendo e modificando conforme sua vontade. O fruto desse trabalho, o livro “Desfamiliares”, temos o prazer de apresentar ao público leitor.

 

 

Desfamiliares pode ser encontrado no site da Annablume neste endereço:
http://www.annablume.com.br/loja/busca_avancada_resulta.php?keywords=desfamiliares&osCsid=3nfujbsktprqjhphi71ep74pv7&x=31&y=15


Visite meu site
http://seraphimpietroforte.com.br/

Se você gosta de histórias em quadrinhos,
conheça o Pararraios Comics,
visite o site http://pararraioscomics.com.br/
Também escrevo para o portal de esquerda Carta Maior,
confira minha coluna “Leituras de um brasileiro”
http://www.cartamaior.com.br/

 

 

 

 

 

 

 

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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olharAnálise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicaçõesAnálise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SMIrmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto fogePalavra quase muroConcretos e delirantesOs tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com




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