De tudo a nada



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Você  suportaria e assumiria a indizibilidade, a inapreensividade, a inexpressividade, a insuficiência da linguagem (do que entendemos por linguagem)? Você resistiria ao claustrofóbico e pulsante espaço do nada? É diante desse desafio que se encontra o leitor de Z a Zero.

Permitir penetrar-se pelo impacto da capa que arfa em vermelho e fere com seu contrastante “Z” e arriscar abrir as dúbias páginas é adentrar uma experiência de leitura convulsionada e sangrenta, é imergir um vazio assombrosamente pleno e ofegante; um nada que nos impõe a atitude frenética e desnorteada de buscar a saída e o signo; um vão que nos afoga, nos sufoca e, ainda que sem ar, nos sentimos tão apavoradamente atraídos por ele que nele permanecemos em busca de uma fagulha sígnica. A ambivalente pulsão de vida e de morte grita nesse espaço oco que nos impele sincronicamente a fugir e a ficar nele. Se sairmos, o nada deixa o espaço exterior para habitar-nos interiormente, habitar-nos da inquietante, estranha (unheimlich) e insanável sensação de fracasso. Se ficarmos, permanecemos sem ar até a morte, em busca de lampejos de obscuridade, diante de uma luminosidade completamente ludibriosa e opaca. Fora do nada de Z a Zero, somos vivos-mortos. Dentro dele, somos mortos-vivos. Não há saída.

Do poeta, emerge o sangue empurrado por uma prensa de chumbo. À sua pele, não resta caminho ou força impermeável, há que deixar-se verter a vida, em vida. Do leitor-esponja, clama-se a coragem de absorver o sangue, de degusta-lo gota a gota em seu amargor.

Uma vez aprisionados nessa experiência de leitura, sentimos o horror de não poder fugir dela e, ao mesmo tempo, o delicado e sensível toque do poeta que libertou a palavra da escravidão da comunicação. Não há significados! A angústia que nos habita, agora nos transcende, salta de nossos poros para os (in)signos de Z a Zero. Somos lógicos, impulsionados à sistematização, à racionalização do mundo e de nós; somos seduzidos pelo intelecto a esmagar nossos sentimentalismos e ingenuidades em nome da conquista de um modo de vida (ilusoriamente) harmônico e seguro. Nós nos esmagamos em nossa sensibilidade e, ao nos depararmos com uma poesia tão vertiginosamente sistemática e organizada, tão progressista e linear (ao partir de “Z” a “A”, de “0” a “9” e concomitantemente de “A” a “Z” e de “9” a “0”), nos assombramos pelo que ali é falta e é exatamente aquilo que de nós lançamos fora.

Mas o que fazer agora ante essa falta que explode?!  Essa sensibilidade que não resistiu ao recalque?! Numa tentativa desesperada de elaborar e lidar com essa falta, nos damos conta de que o mundo insigne de Z a Zero guarda toda e qualquer possibilidade de construção de sentido. O livro é uma explosão semântica inesgotável, ele contém todas as letras e todos os números com os quais podemos fazer infinitas combinações. Nós, leitores-esponja, percebemos agora que o mesmo sufocante espaço do nada é o salvador relampejo de notar que a inquietante e perturbadora leitura do livro e de nós mesmos nos oferece possibilidades de (re)construção. Já temos o tudo de que nos cercamos, já temos a luz tão brilhante que acabou por nos cegar, precisamos agora de rastros de vazio, pois só a partir do ponto zero podemos construir algo. Sair da leitura do livro com esse lampejo de esperança nos dá a sensação de que valeu a pena engolir o amargor do sangue. Sentimos que esse absinto indigesto está pulsando em vida e assim nos esforçamos para segurá-lo em nosso estômago, para não vomitá-lo e deixar que sua vida se emaranhe em nossa racionalidade alienada e desencantada.

Z a Zero é nosso quartinho de bagunça e estamos ali ante a perturbadora porta enquanto nosso mundinho pequeno-burguês, minuciosamente organizado, nos cerca. Abrir essa porta é nos afundar da avalanche que nos amontoará. Z a Zero nos coloca ante o pavor de nós mesmos, nos faz perceber que nossa conduta racionalista e fria levou-nos a possuir um tudo que nos esvai e esvazia. Passado o assombro e o pavor, somos acometidos pelo alento de encontrar em Z a Zero muito mais que a sufocante avalanche que nos invade. Após termos sido revoltos e desorganizados pela experiência de leitura, sentimos a esperança de que podemos combinar novas possibilidades, podemos nos perder do tudo insosso que edificamos e nos entregar à tarefa de recombinar (ordenadamente ou não) os estilhaços de nossa ruína. Assim, indo infinitamente de z a zero e de zero a z, notamos que o sangue do poeta não é vazio e não foi em vão.

 

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[SILVA, Wilmar. Z a zero. Belo Horizonte: Anome Livros, 2010.]

 

 

 

 

 

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Bianka de Andrade é natural de Desterro de Entre Rios e vive em Belo Horizonte desde 2004. É graduada em Letras pela UFMG. E-mail: biankandrade@gmail.com

 




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