De poesia, de memória e de balões


 

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

João Cabral de Mello Neto

 

Octavio Paz nos ensina que a “poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro”.1 Equivale pensar que a poesia nos ensina sobre nós mesmos e o mundo que nos cerca, que nos salva da mediocridade, porque nos dá poder, que nos leva ao abandono, porque nos liberta.

É bem assim que nos sentimos ao ler Segue anexa minha sombra, de Laís Chaffe, que contém poemas de temáticas variadas, que podem se apresentar tanto na forma de um haicai como de um soneto. Longe de afastar o leitor, esta pluralidade funciona como ímã, pois queremos saber qual será a próxima experiência.

O livro está dividido em quatro partes, a saber, Carne e trigo, Nem Hades nem Olimpo, Porque pra vida ainda não inventaram nobreak e O lar de Cronos nunca teve porta, organizadas em torno de eixos temáticos que garantem a unidade geral da obra.

Laís Chaffe Carne e trigo é dedicado às reflexões sobre o passado e às lembranças familiares, como o belo poema que dá título a esta parte, que recupera a convivência nos domingos em família:

As mãos matemáticas do pai
transmutam-se
casando carne e trigo.
(…)
Depois o café
arenoso e forte.
A borra no fundo da xícara
desperta piadas com rima.
Sempre as mesmas –
sempre a mesma família.
.
Mas antes o doce
(e que doce):
nozes manteiga semolina

nós e o passado.
Logo ali na esquina.

À maneira de Marcel Proust, o sujeito lírico busca a experiência infantil através da memória olfativa e gustativa, fazendo-nos compartilhar seu passado por meio da rotina domingueira. O poema recupera o tempo e nos mostra a magia do retorno à infância que está dentro de cada um de nós.

Em Nem Hades nem Olimpo, encontramos poemas que indicam o contexto histórico brasileiro atual, apontando para a qualidade revolucionária da poesia. Destacam-se, mesmo, as referências literárias da poeta, que parece não sofrer de ‘angústia da influência’ (como diagnostica Harold Bloom), as quais vão dos clássicos Shakespeare e Poe aos modernos Drummond e Bandeira, passando pela arte pop contemporânea. Laís homenageia seus autores preferidos com citações diretas, como

Olha aí,
Rita Lee:
poeta também é bicho esquisito
só que em vez
de sangrar todo mês
sangra todo dia

Ou com aqueles versos que dependem da decodificação do leitor, criando a cumplicidade de leitura tão importante para o ‘conhecimento’ de Octavio Paz:

quem sabe
a Superlua venha nos restituir
a glória

Referência a “Super-Homem, a canção”, de Gilberto Gil.

Ou, ainda, a resposta/pergunta de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade:

Pasárgada não há mais.
José, e agora?

Ou, também, o eco do lamento de Fernando Pessoa em “Mensagem”:

“Água em Marte”
Oh, Marte salgado, quanto do teu sal
são lágrimas de um colonizador ancestral?

O que vemos é a apropriação tranquila da tradição e a utilização astuta e bem-humorada do que é contemporâneo, como a concordar com o que diz Paul Valéry: “O homem pode vir a se apropriar daquilo que parece ser feito tão exatamente para ele que, embora sabendo não ser assim, considera como feito por ele… Ele tende irresistivelmente a apoderar-se do que convém estreitamente à sua pessoa”2. Em consonância com a atitude antropofágica de Oswald de Andrade, Laís engole ‘seus autores’ e os devolve renovados, mostrando ser leitora inteligente e sensível.

Nesta parte, quero dar realce ao tema da metapoesia (aquela que fala de poetas, de poesia e de poetar), que aparece com força magistral, em poemas como este, irônico a la Mario Quintana:

poeta menor
sentencia, sem receio
o crítico de um metro e meio

Laís revela sua predileção por ser chamada de ‘poeta’, sepultando qualquer discussão, no poema “Mais um motivo ou Poeta, por favor”

traduzida ao português
a palavra árabe tiza
tem o mesmo som
de pescoço em francês:
……………………………..cou
portanto tenha dó
poetisa
é a sua avó

A poeta exibe seu processo de criação no poema:

“No ar”

Há uma palavra no ar
tento fisgá-la em vão
com essa vara alada
de versos.
Há uma palavra que afunda
tento trazê-la à tona
com essa rede rasgada
infecunda.
Imploro a palavra-peixe
tento salvar-me a tempo
do naufrágio que chamam
silêncio.

A metapoesia revela a consciência crítica de Laís sobre a criação poética, além de evidenciar as referências fundadoras de sua atividade criativa. Tal qual Drummond, ela “luta com palavras”, surgindo como voz consciente de sua relação com a língua, veículo de revelação do mundo e construção de outro.

Nesse processo de renovação, os metapoemas indicam os preceitos que a poeta acredita serem essenciais à poesia, bem como apontam críticas e negações dos modelos que não lhe servem, sem, no entanto, encerrar o processo de apropriação, porque

nem Hades
nem Olimpo
arte que é arte
mora no limbo

Na terceira parte, Porque pra vida ainda não inventaram nobreak, predominam os poemas em que o sujeito lírico mostra sua relação com o outro, mesmo que este outro seja a morte.

“Morte x Vida
ou
Eros & Resiliência”

Você é forte
mas não é nós dois.

.
“Necessidade”

Preciso de outras mãos
pra desatar meus nós.
Preciso teus dedos.
Preciso de nós.

O contraponto desses dois poemas pode aparentar alguma oscilação do sujeito lírico em relação ao outro. Entretanto, o conjunto nos evidencia o tom geral de esperança e de luta, até porque, mesmo que faltem forças, sempre resta a reconstrução do mundo através do entusiasmo da poesia:

uma dose de humor?
aceito, se for
o que há de Millôr

Na quarta e última parte, O lar de Cronos nunca teve porta, encontramos poemas que apresentam ao leitor reflexões sobre o nada, sobre o tempo cronológico, demonstrando uma aguda consciência da passagem temporal, da brevidade enganosa das coisas, sobretudo dos sentimentos. Seguindo o calendário, os poemas acompanham os meses do ano e as imagens que suscitam. Nunca mais esquecerei deste conselho:

a vida recomeça
em janeiro?
sai dessa
conselho de mãe:
garante pro ano inteiro
teu estoque de champanhe

O sujeito lírico compartilha conosco suas vivências que também são as nossas, iluminando nossa maneira de ver e de sentir o tempo que passa, trazendo humor ao inexorável da vida:

translúcido na taça
o tinto já foi uva
tudo passa

Aqui a ênfase recai sobre a vivência do presente, na experiência renovada com os filhos, em contraponto às lembranças da infância que predominam na primeira parte do livro:

caem folhas vivas
é sempre outono e há flores
– cadernos dos filhos

A poesia de Laís é repleta de musicalidade, com metáforas sensoriais e muito humor, recursos que exploram as várias facetas da vida e do cotidiano.

Como nos ensina Mia Couto, “A poesia é um modo de ler o mundo e escrever nele um outro mundo. Buscar iluminação na voz de um poeta já é um primeiro quebrar e armadilhas”.3 Com o poema “Balonismo”, a poeta quebra todas nossas armadilhas:

É preciso gás
e é preciso algo mais. Soltar peso a peso
como quem da sombra, aos poucos, se desfaz.
É preciso vento
(é preciso menos). Prescindir da espera,
despir-se das horas, preservar o tempo.
É preciso alento
maciez de gente, olhares bem ali –
ali no ar quente: leveza pra subir.

Uma das mais belas metáforas de como viver a vida: como um balão. Italo Calvino, em seu livro Seis propostas para o próximo milênio, abre com a proposta de Leveza, que consiste em subtrair o peso. Subtrair o peso do mundo que se nos apresenta de início sempre pesado.

Eis o que Laís Chaffe propõe: exercício de subtrair o peso inevitável dos dias e da rotina, tentando conciliar as diversas facetas da vida. Leveza para encarar tarefas e pessoas, retirando de tudo sua carga, seu peso, seu fardo. Sua poesia nos desfaz, nos despe das horas, nos alenta, nos embala e nos faz subir, leves como um balão.

 

 

 

1 PAZ, Octavio. “Poesia e poema”. In: ____. O arco e a lira. 2ª ed. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p.15.

2 VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 2007. p.28.

3 COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? São Paulo: Cia. das Letras, 2011. p. 95.

 

 

 

Márcia Ivana de Lima e Silva cursou Licenciatura em Letras (Português e Alemão) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1986); Mestrado e Doutorado em Teoria Literária pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1991 e 1996). É professora do Instituto de Letras da UFRGS. Pesquisa criação literária, com ênfase em Crítica Genética. Coordena o acervo de Guilhermino Cesar.

 

 

Mais poemas do livro Segue anexa minha sombra, de Laís Chaffe.

 

Tia Norma

aspirante a artista

repetia o mantra:

burilar a forma

literalmente

sua mão na massa

sovava o pão

normatizado

e levava

à forma

com “o” fechado

***


Bilhete

É outro o quadro, Vincent.

Espanto os lobos, Woolf.

Abdico a lâminas, lexotans.

Renuncio a cordas, gás de cozinha.

Adeus às armas, Ernest.

Lamento trair-te, Judas.

Já não durmo sob rodas

nem maltrato arranha-céus.

Prefiro o suor ao surto;

ao sangue, o sêmen.

 

***


Paranoia conspiratória?

pois vejam que coisa suspeita:

um comboio militar na estrada

e uma placa: mantenha a direita

***


Balonismo

É preciso gás

e é preciso algo mais. Soltar peso a peso

como quem da sombra, aos poucos, se desfaz.

É preciso vento

(é preciso menos). Prescindir da espera,

despir-se das horas, preservar o tempo.

É preciso alento

maciez de gente, olhares bem ali –

ali no ar quente: leveza pra subir.

 

***


Manicure

tirava as cutículas de cada afeto

– um a um, dedo a dedo –

com cuidado

para não fazer sangrar

o enredo

***


Sonetic-tac

Dezembro não é mais alvo nem mais cinza

que qualquer outro mês. Vê se sai dessa.

Por que ser mais herói ou mais ranzinza

se aqui nada termina ou recomeça?

Quando muito, espelhando os outros onze,

brinca de vida e morte com a ampulheta

ergue uma estátua ao tempo em falso bronze

recicla o mesmo comercial careta.

Para com isso. Janeiro não salva

nem traz com ele alguma boa nova.

Nenhuma época é mais cinza ou alva

que qualquer outra, salvo se estás morta.

O ano não termina, só desova,

e o lar de Cronos nunca teve porta.

 

 

 

 

 

Laís Chaffe (Porto Alegre/RS) publicou Carne e trigo (poemas, Castelinho Edições, 2012), Medusa (poemas infantis, Casa Verde, 2011), Minicontos e muito menos (Casa Verde, 2009) e Não é difícil compreender os ETs (contos, AGE, 2002). Participou de diversas antologias, entre elas: Blasfêmeas: mulheres de palavra (2016), Festschrift para Assis Brasil (2015), Coletânea de poesia gaúcha contemporânea (2013), Contos do novo milênio (2006). Está à frente do projeto Cidade Poema (cidadepoema.com), que vem levando poesia às ruas e a espaços públicos desde 2009; e do selo editorial Casa Verde(casaverde.art.br). Roteirizou e dirigiu o documentário Canto de cicatriz (2005, prêmio Direitos Humanos no Rio Grande do Sul e de melhor vídeo independente brasileiro em Gramado, entre outros). Também é roteirista e diretora do curta-metragem Identidade (2002) e roteirista e produtora executiva do curta Colapso (2004). Graduada em Jornalismo pela Ufrgs, trabalhou no Correio do Povo, no Jornal do Comércio, na Rádio Bandeirantes. Entre 2012 e 2014, foi diretora do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul (IEL). E-mail: lais@chaffe.com.br

 

 

 

 

 

 

 

 




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook