De abismos e fascínios


“Poemas Apócrifos de Paul Valéry Traduzidos por Márcio-André” encontra, a partir de textos heterogêneos em termos estéticos e de proposta de escrita, tonalização perfeita para causar maravilhamento
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Há cerca de quatro meses, a literatura foi presenteada com a descoberta de versos tardios. Após passarem em revista algumas caixas com manuscritos das décadas de 1950 e 60, pesquisadores da Fundação Pablo Neruda encontraram 20 poemas inéditos do consagrado escritor chileno. O anúncio foi feito pela editora Seix Barral que, a reboque da confirmação de lançamento para 2015, declarou serem estes escritos da mesma safra da poesia mais madura e celebrada do autor. Os achados póstumos também compaginaram-se ao aniversário de 110 anos de Ne­ruda, ocorrido em julho passado.
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Nesse mesmo tempo, em outro continente, chegava ao fim o processo editorial que partiu da também revelação de poemas inéditos de outro grande escritor, o francês Paul Valéry, um dos balizadores da modernidade literária. A história tem início com um encontro casual entre o escritor e artista visual carioca Márcio-André e uma senhora, em Paris. Seu nome é Martine e, mais adiante, ela se apresentará como neta de Valéry, detentora de um tesouro guardado na Bi­blioteca Nacional da França. É uma série de originais arquivados devido a problemas de autenticidade; dez obras que, por conta de sua natureza heterogênea, poderiam ser de autoria do escritor francês ou talvez textos alheios, pedidos de leitura enviados por autores diletantes e preservados polidamente por Valéry.
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Fisgado pelo mistério que envolvia esse conjunto de versos, Márcio-André ar­mou-se de uma solução para o imbróglio, que veio a ser prontamente aceita tanto pelos herdeiros quanto pela editora que detém os direitos sobre as obras do autor: traduzir os poemas para o português e publicá-los no Brasil. Assim veio a lume “Poemas Apócrifos de Paul Valéry Traduzidos por Márcio-André”, que acaba de ser editado pela Confraria do Vento.
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Antes de se seguir, é necessário se fixar à definição da palavra apócrifo. Nas primeiras frases da apresentação do livro, Márcio-André sugere que “para tornarmos a realidade mais crível, podemos acordar que toda casualidade é parte de uma ficção maior”. A literatura, fique atento, é um jogo composto de truques de ilusionismo, no qual desvendar um rosto é revelar o rosto que está por trás. Que toda tradução é um processo de escrita, ou, de fato, apenas o processo de escrita. Contudo, independentemente de quem é o inventor desse volume, é indubitável que se trata de o mais significativo lançamento de prosa poética do ano, quiçá de muitos outros. Da imagem de uma máquina desmontada que veste a capa, está o estímulo a que se prende o conteúdo: um movimento renitente de tramar-se e destramar-se, uma construção que só faz sentido se ao fim for demolida, uma entropia, um livro que é sempre outro ao ser reaberto, uma queda para o alto, de resfôlegos e de deslumbres.
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A poesia é sempre a de um olhar altaneiro, que deslinda a vastidão em suas formas mínimas, com impacção semelhante ao rastreio joyceano pelos aspectos singulares de um microcosmo, penetrando no concreto e dele extraindo o abstrato. Forma e verbo se aliam e se desnaturam, inventando coisas que conhecemos mas que têm outros significados; construindo uma cidade anônima, pois são muitas ou a mesma.
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O desterro, a sensação de ser estrangeiro no mundo, de a língua ser um mero mecanismo funcional é o que dá a tônica do extraordinário “Toda matéria é leve quando dita levemente”, poema narrativo cuja tes­situra ocupa 25 páginas e inaugura a coletânea. São versos que transitam pela margem de um abismo particular, a saga de um homem que, incapaz de compreender a metrópole para a qual se transferiu, mostra-se igualmente inabilitado para se relacionar consigo. “Os estrangeiros não têm nome/viajam do esquecimento (…) Estar vivo é a for­ma mais banal de estar no mundo”. Impostor de si, o caminho passa a ser a anulação do passado, a renúncia da pátria, dos filhos, dos amores, mesmo que refém de um futuro impreciso. “Como saber se estamos no destino certo?/e se existe outro eu em outra realidade/quem é que sente o que eu sinto/quando sou esse outro eu?/talvez tenha saudade daqueles que não fui/e que vivem fora do meu alcance/e invejem a vida que somente o eu-impostor/pôde ter vivido por mim:/a vida é espera —/e se não há nada depois que morremos/qual sinal será dado de que estamos mortos?”.
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A obra seguinte dá uma guinada nos processos técnico e visual, desconstruindo a métrica em prol de uma poesia que adquire um verniz de fabulação e reverencia os animais e os objetos comuns, uma ode aos tipos elementares. “Bestiarium imagineria” traz visões equivalentes às produções do próprio Neruda e do escritor mexicano Juan José Arreola, demostrando uma capacidade aguda de capturar a intimidade desses modelos de observação. Algo como a morfologia do corpo e a fisiologia da palavra. O organismo percebido por meio de sua mecanização, “cada homem é o irmão órfão de uma máquina”.
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O experimentalismo ganha força em “Livro das observações maquinais”, um encadeamento de acelerações e pausas, despertares e desmaios, abrir e fechar de olhos diante da imensidão e do grão que é o mundo. Decompor a palavra para desobumbrar outros significados em seus fragmentos voláteis volta a impulsionar a obra, que alcança arroubo estético em “Biblioteca-Tangerina”, disparos de versos que rompem o cerco paginado, rasgam as margens a fim de compor um puzzle verbal que permite muitos sentidos e muitas leituras, modulações.
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E se até agora as obras se situavam à beira do abismo, “Campos semânticos” é a queda vertiginosa, o cabeceio na desclaridade cotidiana, o asselvajamento dos homens comuns bem ilustrado no poema “Obrigado, se­nhor”. Afiadas e contundentes, as frases ali evocam uma oralidade rogatória para desnudar as desgraças, o perecimento, a hipocrisia, a indiferença diante da dor dos outros, sobretudo por não ser a nossa. “Obrigado, senhor, por estar do nosso lado/por aniquilar nosso inimigo/(…) por não nos deixar saber quando assassinam por nós”. “Cazas” e “O evangelho segundo a água” retomam temas como a cidade e o indivíduo, a arquitetura e o organismo, o corpo como a casa que nunca deixamos, o homem-peça de uma máquina chamada existência. “A cidade é a parte mais encantadora das pessoas”. Há sempre o olhar do forasteiro desencantado, um despertencimento.
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Da mesma forma, o livro se fecha preservando a dúvida a quem realmente cabe a autoria. Teria Paul Valéry, um escritor tão cioso de sua obra, deixado esses versos tardios ou, de fato, pertencem a outrem? Seja como for, o mérito é todo de Márcio-André. Na condição de autor, pela mestria ao equilibrar técnica e enlevo artístico, causando uma permanente sensação de maravilhamento. No papel de tradutor, por nos revelar um livro estupendo.

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Sérgio Tavares é jornalista e escritor, autor de “Queda da Própria Altura”, finalista do 2º Prêmio Brasília, e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc.



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