Daqui


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O poema “O espaço e o tempo” diz: é deste tempo que falo / é daqui deste lugar / preso / que as horas passam. Pelo livro, passamos por elas, as horas, ou isso que chamamos hora, memória, tempo. Lilian, em seu segundo livro, olha para o que tentamos nomear quando o tempo nos encara – e que nos escapa, vertiginosamente. Por não ter medo desse desassossego, sua palavra se assenta no vazio, já que não ignora, quando diz, que o que se torna ideia é menos a coisa existente, do que sua não existência. Não à toa, seu livro é repleto de dêiticos – palavras sem morada permanente, que dependem, para significar, dos contextos de enunciação: deste, este, agora. Daqui, que dá nome ao livro, implica o aqui de quem lê na leitura. E nos transporta para dentro da palavra você – outro dêitico que retorna nos poemas, e que nos transforma, de repente, em quem diz: Então: eu sou você neste poema/ Sou quem chega/ no meio da madrugada.

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Conheci a Lilian quando ainda fazia faculdade de cinema: ela era amiga do Marco Dutra e do Caetano Gotardo, meus colegas na época; todos escrevíamos, uns mais silenciosos do que outros, e eu me lembro de saber dela principalmente por sua escrita. É daquele tempo que falo: nós quatro na mesa de um café, lendo poemas uns para os outros. É desde ali que me impressiona o modo como ela compõe suas imagens, corajosamente à beira, sempre inquietas – e delicadas. Como quando ela interrompe a marcha do tempo às 12h36 de uma tarde, imagem que rasga o poema de abertura do livro. Ou como quando ela diz de um modo de apoiar os pés, um depois do outro/ neste chão de pedregulhos/ que só existe/ na superfície/ viva e faminta/ dos dias.

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é deste tempo que falo, diz o poema, desses dias, dessa tarde às 12h36, dessa fome. Também daqueles cafés, de quatro amigos ao redor de cafés; do tempo entre uma imagem e outra. E do tempo que se fará entre esse Daqui de onde ela nos olha, e do daqui de quem tiver a sorte que colocar seus olhos sobre essas páginas.

 

 

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Carla Kinzo é poeta, dramaturga e atriz. É também doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela FFLCH/USP. Autora de Matéria, CinematógrafoEslovênia, livros de poesia publicados pela Editora 7Letras.

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Confira uma seleta do livro:

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Mal súbito

 

O dia em que morri
era um dia comum
em São Paulo
Muita gente saía
para almoçar com
vale-alimentação
ou cartão de crédito
naquela terça-feira banal
Havia quem comesse
tempo e relatórios
afetos ou restos
nesta grande cidade
igualzinho acontece
em outras cidades assim

E eu interrompi a marcha
do tempo
às 12h36 de uma tarde
sem nada de especial
sem chuva nem vale
e com a barriga
vazia

 

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Perduração

de um poema de Donizete Galvão

 

O peso de um homem
é comparável
ao lugar onde pisa
ao modo como
apoia os pés
um depois do outro
neste chão de pedregulhos
que só existe
na superfície
viva e faminta
dos dias

E quando a superfície
acabar por livrar-lhe
da obrigação de sustentar
o próprio corpo
será sua a palavra
que desestabiliza
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e não só a pedra dura.

 

 

Catar conchinha

Fecho na palma da mão
esta nota
Não uso força, não a aperto
contra os dedos

Faço uma concha com a mão
levo-a ao ouvido
posso ouvir a vibração
ao toque da pele

Uma nota que fantasio
ser apenas minha
uma espécie música particular

Na palma da minha mão
junto ao meu ouvido
minha nota se esparrama
entre os dedos

(como se eu ouvisse o mar
como se minha mão fechada
contivesse grãos de areia)

Uma nota só
como um sol, um dó,
eu te abro a mão

prefiro que navegue

 

 

Indigesto

Como um comprimido
engulo este dia
De oito em oito horas
me lembro
não há remédio
a não ser comer
esta demora que a vida leva
pra curar uma dor
Meus dentes estão moles
como balas de goma
impossível mastigar
estes segundos

 

 

Receita para ser só

uma pessoa sozinha
são claras em neve
batidas à mão
onde se lê:
reserve
separado da gema
puro colesterol
é num prato leve
um ser aerado
que pode ser usado
sem distinção

essa nuvem de ovo
no entanto
rende uma porção
a menos
e deixa tudo ao redor
fofo

 

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…………………………+ Lilian Aquino na Patuá, aqui.




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