Da desertificação da lobas



(a loba é solitária, mas vai a caminho)

Lisboa, 5 de Nov.’15, Sociedade Guilherme Cossoul

 

 

Kalahari é um requiem pelas línguas que morrem todos os anos; actualmente, mais de duas mil línguas no mundo correm o risco de extinção e este é um dano tão irreparável quanto o da perda das espécies. Trata-se de uma obra de cariz fortemente político ao lançar sobre cada língua morta pazadas de ideias, de palavras, de nomes de artistas, plantas, neologismos tecnológicos, tudo, de todas as épocas e lugares, de todas as maneiras, como o coveiro que cobre de terra indiscriminada um morto; são 31 as sepulturas (parecem capítulos, na medida em que graficamente estão separadas por páginas escuras e que o autor prefere designar essas re-inscrições de línguas mortas como “sombras emergentes”) e o mundo assemelha-se por isso a um deserto, a um kalahari, cuja palavra significa “o lugar da grande sede”.

A obra começa por invocar Akuryo, esse demónio amarelo que conduz ao K’an, o abismo: é o daimon da voz da literatura japonesa; e há uma loba como personagem que atravessa toda a obra, sendo esta loba a mesma que amamentou Remo e Rómulo, porque é a língua o que alimenta uma cultura. Uma loba-língua-latina em busca da sobrevivência, que debita palavras aladas.

Mito e metáfora, Fluxo de consciência e euforia são as patas desta loba que corre incansavelmente ao longo das cerca de 500 páginas de Kalahari.

A escrita de Kalahari assemelha-se a uma produção de memória RAM (Random Access Memory), ou seja, a uma memória de acesso aleatório, mas Luís Serguilha não é uma máquina. Bem pelo contrário, recorre à velha técnica literária do Fluxo da Consciência, criada no ano do nascimento de Pessoa, por Édouard Dujardin que em 1888 lança sob esta técnica a obra Os loureiros estão cortados (aqui, as línguas estão mortas).

Note-se que Fluxo da Consciência nada tem a ver com a escrita automática dos surrealistas, cuja técnica é inversa, é o fluxo da inconsciência, ou seja, evita todos os pensamentos conscientes. Apesar de muitos o dizerem, não subscrevo em ponto algum de que esta seja uma obra surrealista, sequer a do surrealismo sem fronteiras de Bataille; não nos iludamos com a subversão da lógica da escrita de Serguilha, porque aqui temos uma proposta de unidade, balizada entre a potência criadora e uma consciência desafectada de amarras.

Note-se que a consciência, quando se fala dentro do campo literário, equivale ao “nada” de Sartre, ao “vazio” de Sidharta: não é a consciência meramente como percepção por parte do organismo: Dâmaso é bastante esclarecedor, mas a literatura obriga-nos a resvalar mais para a Física do que para a Neurologia; ou seja, se atendermos à velha fórmula do par Weber – coitado, ficou cego de tanto tentar entender as qualia das cores – e Fechner, estaremos não só a renunciar a inúmeros estudos da Física posteriores, como também a reiterar uma fórmula onde o logaritmo S continuaria a ser um opositor da potência; alterar S= K. In E/E’ pode perigosamente vir a ser tentador para a classe dos que querem subdividir a espécie humana; porém, é certo que o umbral da percepção / não poderá ser uma constante, mas uma variável com reflexo na E’, que é a imperceptibilidade da inconsciência quando aplicado ao criador intelectual; para simplificar: a percepção da maioria das pessoas não ultrapassa os 7 tons no que se refere, por exemplo, à música e os que têm alguma genialidade, apercebem-se de 9 – talvez por isso Bach tivesse composto fugas para 9 vozes; tratando-se de um corpo de análise infinitamente mais parco como a palavra, a fórmula anterior teria que ser potenciada da seguinte forma: S=K. In E/E’ (/ E’ x Y), não só por entrar na imaterialidade sensível, como no plano grafenológico do espaço: e aqui, teríamos muito a aprender com os astrónomos egípcios se os cristãos não se tivessem aquecido à fogueira dos papiros de Alexandria; o estudo das qualia estaria muito mais avançado caso tivéssemos acesso, por exemplo, aos estudos completos dessa filósofa genial que foi Hipátia e que pela sua teoria dos corpos celestes seria possível determinar amplitudes e desvios da percepção humana e respectivas tensões e virmos a apurar patamares da potência humana; nos nos esquecermos do que diz sobre isto G. Agamben)

Neste autor, também não há o absurdismo vindo do sono ou dos estádios intermédios da lucidez (até porque Serguilha dorme pouco mais que 3 horas por dia, tal como Novalis que secretamente se esforçava por estar sempre acordado): temos ideias galopantes que rapidamente se emendam noutras ideias inconclusivas, como uma corrida alucinante de animal pelo deserto ou a sucessão de movimentos de quem enterra algo com palavras e ideias, terra fértil e entulhos. É uma escrita eufórica, como uma lava, uma escrita comum aos escritores melancólicos que encontravam no trabalho literário a sua própria salvação. “A melancolia é apenas o fervor recaído”, referia Gide com o pensamento na desgraça do seu Édipo, reconhecendo, à semelhança de Espinosa, que é a euforia o que faz da melancolia um afecto positivo, ligado à criação intelectual. Nesta euforia, temos sempre uma economia da memória e tudo o que se acrescenta é da ordem do afectivo; temos assim a cultura da escrita, na qual o poético se encontra para além das línguas, é “encantação silenciosa”, como diria Derrida, a qual está não só na génese da poesia como também na theoria. No caso de Serguilha, a tentativa de theoria de Lahars.

Percorrer as sepulturas dessas línguas extintas é tornar-se vagabundo pelo mundo e isso é ser-se poeta, é reconhecer na palavra a fonte do Belo, a sua materialidade e o seu destino. Como salienta Maria Filomena Molder, “mistério é que haja o dizer, não o indizível.” Mas esta peregrinação é também uma homenagem a uma geografia que se tornou imaterial. Diz-nos no território da língua Sami da Akkala (cap. 5): “A Loba aproxima-se de todas as épocas: uma batida incomensurável, um fluxo do vazio que-é-terra-que-é-fisiologia-heterogénea […] e a sua caminhada é uma cartografia emancipatória, uma re-ligação mimeografada de matérias; […] A Loba-GAIA diversifica a fertilização inter-hemisférica: um assombramento polissémico, uma descontinuidade metamórfica a cartografar espirais genésicas, as efígies tribais onde a espacialização dos espectros descreve a instantaneidade e a vastidão das cremalheiras da tragicidade.”

Ora, esta loba, espécie primeira dos cães, é solitária e vai a caminho; mas de quê? Saberemos então que é no território da extinta língua Arapáso (cap.18) que se anuncia o Laharsismo, uma tentativa estética almejada por Serguilha: “os cães dos planetas consolam-se de gritos subterrâneos e as corolas astrológicas acontecem para costurarem loucamente as convicções do gérmen-de-Lahars.” A esta tentativa de estética, já lá iremos, pois é preciso falar-se ainda de movimento.

Já referi o atravessamento de ideias, épocas e territórios, sendo o movimento atlético das palavras o que constitui o travejamento entre uma multiplicadora estratificação de significados e uma física com patas, que condensa uma visão sincrética e totalizante, para uma leitura do mundo como um organismo que pulsa.

Esta loba é solitária e vai a caminho; mas de quê?: regressemos à origem, ao mito fundador da cultura latina, da língua que rege o pensamento do autor e de uma parte significativa do pensamento actual. A palavra deriva, como se sabe, de lupae, e logo pensamos em lupanares; pois, é que tanto significa loba como prostituta. Prostituta ao serviço de deuses. Uma língua ao dispor de interesses neo-liberais que a vendem, amordaçam, esquartejam e sequer dão aos povos a possibilidade de rejeitarem esta perda, tal como aconteceu às 31 línguas que Serguilha homenageia em Kalahari; tal como pode acontecer à língua portuguesa com o recente acordo que eu apelido de Tumor-gráfico (para quem não sabe, Tumor é uma região do Uzbequistão, ponto histórico da Rota da Seda, que devido à sua secura e aos interesses financeiros centrados em Samarcanda entrou em desertificação levando à extinção de um povo e sua cultura e já sequer consta dos mapas geográficos). Este medo da perda da identidade da língua, porque é com a língua-materna que se é poeta, leva-o a falar em tom quase profético do “ocaso do covil” no penúltimo capítulo, dedicado à desaparecida língua Meda: “A LOBA incorpora-se no imprevisível, no ocaso do covil e o uivo avizinha-se do ilimitado por meio da repetição anónima”; esta repetição anónima não é mais do que o resultado da reprodução incontrolável que as novas tecnologias permitem; mais adiante, vislumbrando uma possível extinção da sua língua, refere: “a sombra do sangue torna-se um idioma-dos-idiomas incicatrizáveis ou uma campânula monstruosa rodeada de escarpas”, ou seja, a secura dos desertos, mas no formato de campânula, que é preciso destruir por um efeito semelhante ao de um lahar, que é uma avalanche de lamas, rochas e água capaz de abrir fissuras, de abalar planícies. Uma avalanche que, no entanto, também se transmutará em pedra, em vegetal sonoro e novamente em loba: não no carneiro, esse tosão de ouro que sustentou a ilusão dos argonautas.

Este movimento serve os interesses de Serguilha para aquilo a que designa de Laharsismo, corrente estética que pretende lutar contra a extinção da literatura, a qual, em muitos pontos da Europa se tornou, como diz o autor, um “produto comercial que se vende como pipoca”. Uma luta contra a extinção, mas pela destruição, pois é isso o que uma avalanche provoca: um novo deserto. Isto faz-nos pensar na destruição como possibilidade de uma nova experiência, tal como almejou Walter Benjamin; só que Benjamim desejou uma relação diferenciada com a Filosofia e Serguilha pretende-o com a Literatura; um, com uma aparente orientação sistemática nessa procura e outro sem qualquer eco-sistema: diz-nos: “a-loba-é-a-força-do-olhar-sem-ecossistema.”

É aqui que surge uma inquietação derivada do fazer poético de Serguilha: a literatura preserva-se da sua própria destruição ao preservar e fomentar os textos da destruição?

Isto pode levar-nos à discussão do paradoxo da destruição, mas não quero entrar por aí, apesar da estética do Laharsismo nos encaminhar para estes pensamentos e para outros, como por exemplo: é esta uma estética para uma literatura anti-literária, nascida da associação ao pensamento crítico do agora? Em caso positivo, então faz da literatura um objecto essencialmente político, anarquista, talvez perigoso, porque fica liberta da autoridade desse mesmo objecto, liberta da tradição, auto-imune do poético; no fundo, aquilo a que Benjamin designava por estética do choque.

Porém, em relação à já vasta obra de Serguilha (e que tenho o prazer de perseguir, não como loba, mas como corvo), não podemos relevar o político em desprimor do teológico, pois na escrita de Kalahari tudo é tensão sonora: há um ritmo persistente que conduz ao nomadismo e que só busca a prática poética, não por carência, como na tradição romântica, mas pela manifestação afirmativa e jubilosa do Ser através de uma espécie de signografia da distância, já que “a Loba anexa a transformação dos desertos à intemporalidade”, onde o ruah, o uivo que se ouve em dois planaltos autónomos, nos convoca para o polemos, o lugar do combate. Este polemos faz-se pela leitura, pela voz, numa relação dialéctica que nos mostra uma gramática possível de língua perdida ou em vias de ser a casa da anterioridade da poesia. A leitura é, afinal, a convocação para esta luta contra a desertificação literária, é como nos diz o autor, o “uivo-do-uivo” que “regenera o tempo e o espaço num interface implacável de tentativas, de queimaduras de imaginários…”

E por isto, corro o risco, embora não intencional, de provocar os amantes da poesia animados pela filosofia contemporânea, ao afirmar que não deveremos deixar que a forma camaleónica da sua escrita nos leve apenas para os trilhos do pensamento de Deleuze ou Foucault ou outros dos nossos dias. Luís Serguilha é um novo romântico da primeiríssima água alemã, um Novalis dos nossos dias; para começar, digo dele o que Schlegel afirmou em relação ao jovem poeta: “fala três vezes mais e três vezes mais depressa do que nós”. E se comparo o autor a Novalis, não é pela escrita fragmentária nem pela gravidez filosófica que a poesia transporta, pela soberba suicida, mas sim, pela ausência de concorrência criadora, pelo desvendamento e pela capacidade quase mágica que Serguilha possui em criar o transparecimento do existente. Para isso, supera antíteses, concilia contrastes, enlaça oposições, tortura desejos, cria osmoses sinestésicas e recria frankestein’s literários a partir de abstracções e heranças de escritas, como se fosse também ele um Prometeu contemporâneo. E é ao fazer-se um ressoante microcósmico que no templo da escrita levanta o véu da Natureza e se abeira dessa loba, companheira dos deuses, para lhe soltar a trela a fim de se maravilhar com a iluminação interior de cada língua e com o espírito de cada palavra, especialmente a poética, pois é aquela que intensifica as sensações, as multiplica e fecunda de mistério, de latente e de indizível. Novalis perseguiu toda a sua vida a simbólica Flor Azul, Serguilha encanta-se com os mastros azuis de Pollock, é um respirador das labaredas mitológicas e da anterioridade das palavras, e de tudo se socorre para uma escrita unitiva e, afinal de contas, amorosa. Mas amorosa no sentido religioso, como em Novalis. Resumidamente, um jardineiro de rosas no Inferno, um jardineiro órfão no Inferno do seu próprio fogo.

(Penso que as rosas devem ser azuis; ficam melhor nas sepulturas dos jardins das línguas mortas).

Para terminar, escutemos o silêncio das línguas mortas aqui homenageadas:

Língua Ugarítica, que foi a antiga língua dos vizinhos mais próximos de Israel, na aldeia moderna de Ras Shamra, situada na actual Síria. A cidade foi destruída em 1180-70 a.C. Entre as obras literárias descobertas em Ugarit estão a Lenda de Keret, o Épico de Aqhat (ou Lenda de Danel), o Mito de Baal-Aliyan, e a Morte de Baal, também são conhecidos como o “Ciclo de Baal”: todos eles relevam a mitologia cananéia, ainda pouco explorada entre nós. O idioma ugarítico só é conhecido na forma de escritos encontrados, inicialmente, na cidade perdida de Ugarit, na Síria, desde a sua descoberta por arqueólogos franceses em 1928. Estes escritos foram extremamente importantes para os estudiosos do Velho Testamento, por auxiliarem na clarificação de textos hebraicos e por revelarem interpretações de como o judaísmo utilizava frases comuns, expressões literárias e frases usadas pelas culturas gentias que o cercavam. É deste idioma que se sucedem os idiomas fenício, hebraico e aramaico. É considerada a maior descoberta literária da Antiguidade, desde a descodificação dos hieróglifos egípcios e da escrita cuneiforme mesopotâmica.

Língua Korana, é uma das Línguas khoisan da África do Sul, considerada como extinta. O grupo étnico “Korana” tem uma população estimada de 10.000 pessoas na África do Sul e em grupos menores em Botsuana, os quais já não falam essa língua. Havia em 1977 cerca de 50 falantes, pessoas nómadas de religiões animistas, havendo alguns cristãos, inclusive com Bíblia traduzida em 1933. Há apenas outro registo escrito de Korana, que é um livro de anotações datado de 1879 com cinco histórias curtas.

Língua Lepôntica: era falada em partes da Récia e da Gália Cisalpina (hoje Itália Setentrional) entre 700 a.C. e 400 a.C.. É geralmente considerada como um dialecto do gaulês. O idioma é conhecido graças a algumas inscrições no alfabeto de Lugano (área que inclui o Lago di Como e o Lago Maggiore), uma das cinco variedades de alfabetos itálicos setentrionais, derivado do alfabeto estrusco. Os alfabetos rúnicos germânicos provavelmente derivam da escrita Lepôntica.

Língua Sami de Akkala: é ainda falada nas aldeias Sami de A’kkel e Ču’kksuâl, no interior da Península de Kola, na Rússia. Actualmente, é a língua mais ameaçada do leste de Sami. Em 29 de dezembro de 2003, Marja Sergina, um dos últimos falantes fluentes, morreu. Prevê-se que ainda duas pessoas preservem o seu conheciento.

Língua Bactriana: A língua falada na Bactria, região histórica da Ásia Interior, no território montanhoso a Norte do Afeganistão, nas margens do rio Oxus, que hoje se designa por rio Amu Daria. Aquela região acolheu entre os anos 1550 e 1000 a-C. diversos povos indoeuropeus, constituindo o início da região Ariana. Foi uma das grandes potências militares, sendo responsável pela difusão da cultura greco-helénica. Era o espaço predilecto do Rei Seleuco, a quem se deve um episódio no Velho Testamento.

Língua Acádia: também conhecida como acadiana ou assiro-babilónica; era uma língua semítica (por parte da família afro-asiática) falada na antiga Mesopotâmia, particularmente pelos assírios e babilónios. É a mais antiga língua semítica registada, utilizando a escrita cuneiforme, derivada do antigo sumério. O nome da língua é derivado da cidade de Acádia, um dos principais centros da civilização mesopotâmica. O pedaço de barro escrito foi achado em Jerusalém por arqueólogos israelitas no séc. XX.

Língua Andoa: está completamente extinta esta língua primordial do Peru, fundada nas margens do rio Pastaza. A população tentou integrar a língua no Quechua, a qual é tanto utilizada quanto a língua espanhola. O último falante de Andoa faleceu em 1993.

Seria demasiado extenso falar de todas as línguas mortas, pelo que após esta sétima língua, nomeio apenas aquelas que se encontram em Kalahari: e são elas a Ebaíta, a Nórica, a Sami de Kemi, a Kwadi, a Seroa, a Zaza-Goranis, a Ixam, a Edomita, a língua Gálata, a Arapáso, a Ahom, a Iazychie, a Norn, a Cnaânica, a Cumana, a Longoborde, a Truganini, a Lêmnia, a Etrusca, a língua da Trácia, a da Curônia, a Uskana-Roncales, a Meda e, por fim, a Tuaregue (língua homenageada apenas na edição portuguesa das Edições Esgotadas); que a Latina não venha nunca a enfileirar este caudal de mortandade.

 

 

 

 

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Luisa Monteiro é dramaturga, ensaísta, escritora e pesquisadora da Universidade de Évora. E-mail:

 




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