Crônica de horror da obra-prima


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Juro que tentei. Eu tentei duramente. Mas tenho de confessar minha derrota. Faltam ainda 150 páginas das quatrocentas e tantas ocupadas por Ada ou Ardor – Crônica de uma Família, de Vladimir Nabokov (tradução de Jório Dauster, para a Companhia das Letras), e simplesmente tenho de admitir que já não consigo terminar de lê-lo. O livro é enorme, é verdade; o tempo, curto, também é verdade; mas nada disso tem nada a ver com a minha desistência. Explico-me. Eu sempre gostei de Nabokov. Já até me arrisquei a debater sobre Lolita, em um curso ou outro. Li muita coisa dele, com juízo variável, mas sempre com prazer e admiração, seja pelo estilo virtuoso, que combina vários modernismos com o gosto precioso, seja pela crueza analítica, que não se detém face aos lugares comuns do bom mocismo literário. Com base em certas formulações de Richard Rorty, já rabisquei qualquer coisa sobre a contribuição de Nabokov para a compreensão do papel decisivo dos intelectuais na produção da crueldade. Mas agora, diante de Ada ou Ardor, me sinto mudo e quedo, e junto de um rochedo, outro rochedo, para aludir a um outro momento de perfeito sofrimento e estupor.

Há mais de um mês que leio o romance, e há mais de um mês que me chateio. Entenda-se o emprego do termo “chatear” em toda a extensão de sua área semântica: me aborreço com o tempo que perco fazendo isso; me entedio com o que leio; me entristeço pelo livro e me decepciono comigo mesmo ao constatar que, naquilo que muitos consideram “a obra-prima de Nabokov”, não sou capaz de encontrar senão um romance de cacoetes. Não me orgulho disso, ao contrário: sinto que perdi uma companhia extraordinária com a qual sempre pude contar.

Em Ada ou Ardor, contra a minha própria vontade, não consigo reconhecer mais do que o colapso dos maneirismos estilísticos e das opiniões programaticamente esnobes de Nabokov. A rigor, parece-me que ele apenas se dedica laboriosamente a imitar-se a si mesmo. E o pior é que, como todo imitador que é também um fã incondicional do que imita, acaba adotando os sestros mais espalhafatosos, e perdendo de vista as virtudes mais sutis ou dificultosas.

Vou tentar ser mais específico, embora mais uma vez esteja agindo em contradição com a minha vontade, que era fechar o livro a meio, e não falar mais dele, tamanho os maus humores que desatou em meu sangue. Entretanto, já ao falar assim grosseiramente do livro, a minha impressão imediata, em sentido contrário, é a de que, num tempo não muito distante, vou acabar comungando com a turma de fanáticos de Nabokov que aposta em Ada ou Ardor como a sua “obra-prima”. Mas não, não agora. Neste momento, nada me fará recuar de expor meu desgosto em meio ao livro: tenho de fazê-lo pagar pelo meu esforço, pelo meu torpor, até pela minha má vontade diante desta resenha que, antes de ser feita, já não pode ser feita. O que escrevo agora, infelizmente, sequer é resenha, mas crônica. Algum patetismo cômico se alojou em mim durante a escrita e não poderá mais ser ignorado: Ada ou Ardor simplesmente arrasou com a minha disposição analítica e me fez sentir, ao mesmíssimo tempo, vítima do engodo e culpado de reconhecê-lo.

Tornando, contudo, ao ponto acima referido, quando digo que Nabokov se imita a si mesmo, quero dizer duas coisas: primeiro, que ele o faz aludindo a elementos de toda a sua obra anterior; segundo, que esta alusão é feita não apenas em termos diretos, como também ocorre muitas vezes, mas também de modo oblíquo, por meio da confecção de um pastiche idiossincraticamente nabokoviano dos grandes romancistas do século 19, especialmente os russos, aqueles que estão dispostos a inventar as profundezas da alma da criatura – composto químico de expressividade, psicologia, mística e tortura – com os restos das entranhas de seu Criador morto.

Mas não é apenas isso. Nabokov imita Nabokov também por meio da vontade de superação daqueles outros romancistas, aqueles do início do 20 – penso primeiramente em Joyce e Proust –, que liquidaram o gênero tal como se havia estabilizado no século anterior. Ambos encavalaram, por assim dizer, o andamento unitário e verossímil da narrativa, a complexidade psicológica das personagens e a coerência do ponto de vista de seu narrador com uma hermenêutica da palavra e da escrita. Digo: uma hermenêutica que já não permitia ocultar o descompasso entre a linguagem e o mundo com a máscara das ideias plenas, do sentimento, da expressão, do conhecimento de si ou do outro. Curiosamente, em Ada ou Ardor – Crônica de uma Família, Nabokov quis compor uma e outra coisa, por mais antagônicas que fossem. E, não bastasse isso, quis mais ainda: quis fornecer a síntese implausível das duas coisas. Vale dizer: um romance, um supra-romance e uma teoria de tudo.

Não vejo mal em ser pretensioso. Um grande romancista é pretensioso por definição, isto é, busca grandes quantidades de sentidos para corresponder à copiosidade de palavras que emprega, mas talvez não fizesse mal se ousasse medir, de vez em quando, a grandeza de seus ombros em relação à carga a ser transportada, como aconselhava o prudente Horácio aos jovens Pisões. O problema é que – seria inútil dizer que ficaria sinceramente grato a alguém que me demonstrasse o contrário? –, Nabokov não faz nenhuma dessas coisas direito. Ada ou Ardor é frio como o diabo do inferno dantesco, mas não tem traço do terror sublime que este inspira.

Talvez não esteja sendo suficientemente claro. Retomo cada um dos pontos: Nabokov não faz nada direito, pois, para começar, não faz um bom romance do século 19, o que era mais ou menos previsível para alguém que escreve no fim da década de 60 do século 20. As personagens principais são todas inconsistentes e caricatas, compostas basicamente de gênios, ricos e precoces, e de preferência pelos três juntos numa só delas (os Glass, de Salinger, são limítrofes perto da erudição e agudeza da família nabokoviana). Além disso, a narrativa é dispersiva, ao abarcar um período de quase 100 anos, que é o quanto vivem os protagonistas, e o narrador trata tudo com empáfia e pela rama. É forçada a história das crianças amantes e incestuosas, sequiosas por sexo na grama – irmãos, supostamente, mas o parecem mais por ser idênticos na caricatura, do que por determinação verossímil do enredo. Banal é o relato que faz da literatura e da política do mundo, desde o final do século 19 até os anos 50 do século seguinte. Trívia é o que melhor traduz a suposta curiosidade dos jovens por todos os ramos das ciências e das artes do período (aqui o modelo emulado é o tipo de densidade cientificista buscada por Thomas Mann, cujos defeitos de base, na imitação, se amplificam). Ada ou Ardor nunca deixa nada por menos ou menor. Devia ser esquartejada e mandada aos pedacinhos aos editores de Nature ou Science.

Nabokov não faz nada direito também porque não logra obter o tal anti ou supra-romance. O narrador metalinguístico, que reflete sobre o que faz ao construir sua história, recortada por diários que vão sendo corrigidos ao longo do tempo, nunca chega a se decidir entre analisar as condições do que inventa ou mostrar que ele próprio é realmente mais inteligente do que qualquer dos gênios inventados. É aí então que se percebe o mais triste: as caricaturas são levadas a sério, sem ironia, por mais que faça panaché da ironia! As várias correções que as personagens-gênios vão fazendo ao longo do tempo da narração nos diários – que vão sendo escritos e perdidos e achados de novo para infelicidade do leitor – são meras confirmações da genialidade que organiza o imbróglio todo, sabendo sempre tudo, menos os limites da verossimilhança do gênio segundo a idade ou as circunstâncias. Pegue um pirralho de 9 ou 10 anos e ponha-o para declamar Shakespeare ou recitar taxonomias de borboletas. Você tem a impressão de que está diante de um gênio com um discurso iluminador sobre o tempo? Não: você pensa que está diante de um moleque tonto e sem vontade própria com uma mãe ou tia dominadora. A tia, no caso, é Nabokov. Mas você também pode achar que está diante de um anão ou acidentado grave, falando pelos cotovelos e exibindo despudoradamente os efeitos de ter batido a cabeça em alguma quina pontuda. Quer dizer, você pode rir, se for um sujeito malvado, ou não, se for educado e sensível, mas não tem jeito de se comover ou levar a sério a leitura do poema, a descoberta do espécime de borboleta em questão, ou as questões sobre tempo e consciência no andamento narrativo.

E Nabokov não faz nada direito finalmente porque Ada ou Ardor tampouco consegue produzir síntese alguma dos movimentos do romance e do antirromance. Muito longe de controlar os inúmeros fios de enredo e as opiniões gratuitas, supostamente brilhantes, de que lança mão, ainda escolhe como ponto de intersecção deles uma ficção científica que não cola em momento algum do livro. Não cola como ficção científica e não cola como reflexão sobre a sua própria natureza ficcional. De acordo com o cenário retrô-ficcional que vez ou outra aparece no romance, não estamos na Terra, mas na Antiterra, onde se fala russo, francês e inglês ao mesmo tempo (ideia, aliás, muito melhor explorada e realizada linguisticamente no Clockwork Orange, de Anthony Burgess). A sociedade é marcadamente aristocrática e sem direito a aparelhos elétricos, além de uma série de outras coisas sobre água, eletrodomésticos e cataclismos que eu percebi pouco, pois era entrar alguma frase sobre a Antiterra, e eu cabecear sobre o livro. Juro que até para pincelar este resumo, sinto sono e tenho vontade de desistir. Tenho de dizer também que não contribui menos para o incômodo geral a capa da edição brasileira: é fechar o livro para ganhar fôlego frente ao torpor que se instala e topar com aquela montagem de O Vento Levou com algum caderno de desenho de aluno de escola de crochê! Do sono ao susto, pelo viés do kitsch, os condenados à leitura de Ada ou Ardor não têm descanso.

A “obra-prima de Nabokov” vive então de frases soltas, de metáforas brilhantes, de uma ou outra cena excepcionalmente bem composta, sobretudo aquelas temperadas de erotismo infantil: grudou em minha imaginação, por exemplo, uma cena em que a menina Ada lambe uma colher com rara e aliciante perícia. Mas este livro não era outro? Nabokov  já não o havia escrito há anos atrás? Enfim, a despeito de uma ou outra pérola, o terreno do livro é grande e pegajoso demais para o garimpo valer a pena. Ao menos eu, na minha idade, fiquei cansado de examinar o barro da bateia. Exploremos por um instante mais a noção de garimpo. Diante de Ada ou Ardor, me senti como naqueles sebos enormes no qual se tem de folhear todo tipo de bagatela para encontrar, ao fim de horas, exausto e sujo, um ou outro livro ou disco, que então se compra como joia. Mas é joia apenas para que não se confesse que o dia não valeu a pena, que nenhum tempo fora redescoberto, e sim ainda uma vez perdido, com precipitação e enfado. Não quero enganar ninguém, e tampouco a mim mesmo: desisto do livro e da resenha. Fica a crônica morna, ao pé do sono. Agora preciso urgentemente de uma cama.

 

 

 

 

 

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Alcir Pécora é professor livre-docente de literatura na Unicamp, onde leciona desde 1977. Autor de estudos a propósito de literatura colonial brasileira e, em particular, do sermonário do Padre Vieira. Crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos, no Brasil e no exterior. Entre suas publicações, destacam-se: Teatro do Sacramento (Edusp/Editora da Unicamp, 94); Máquina de Gêneros (Edusp, 2001); As Excelências do Governador (Companhia das Letras, 2002); Rudimentos da Vida Coletiva (Ateliê, 2003). Organizou dois volumes de Sermões (Hedra, 2000/ 2001), além das antologias A Arte de Morrer (Nova Alexandria, 1994) e Escritos Históricos e Políticos (Martins Fontes, 1995), todos a propósito da obra de Vieira. É organizador da edição das obras completas de Hilda Hilst pela Editora Globo.




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