Criação sem Amanhã


…………………..A Obra de Arte e a Criação sem Amanhã

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É necessário segurar o arco e a flecha na sua máxima curvatura, mas também entendermos as nossas temporadas de abandono. Albert Camus nos pede para que o pensamento seja realmente vivenciado, que a certeza que somos seres finitos nos transforme, pois deveria nos transformar se a levássemos a sério. Poderia relacionar a questão da morte em Albert Camus com diversos pontos, mas aqui o que me interessa é a arte – a vida. Um pensamento que vai contra toda Esperança de uma obra futura, de um desdobramento. Este filósofo não pensava em uma posterioridade, na vingança do autor desconhecido contra todos os que não o viram. A vingança nietzschiana de tornar-se tão clássico como Sócrates. Franz Kafka que era mais engraçado quis deixar a sua obra ao fogo, abandoná-la. Se pensarmos que o poeta é acometido por uma mania, uma loucura divina, então temos uma breve possessão em Rimbaud, para depois abandonar a sua obra e se encontrar como o mercenário que carregava o seu ouro na cintura, e por isso sofria de forte diarréia, contudo tinhas suas aventuras. O fato é que alguns autores visam a sua obra para um futuro, enquanto outros vêem a sua obra em um momento de densidade.

Vejo a procura desta densidade no que Camus entendeu por despojamento, e ele o fez não somente com relação à obra artística, mas também com relação à vida. Este despojamento artístico é o que chamou de uma criação sem amanhã. Contudo, este pensamento não surgiu do nada, mas de uma experiência corporal, a tosse modifica e contorce o pensamento, a tuberculose o levou a esse despojamento. Sempre existe algo que nos afeta com intensidade a tal ponto de uma transformação, e não é necessário ser um ponto de mudança extremo, mas às vezes uma dislexia pinga-pinga nas palavras de Carpinejar ou ainda o seu ler asmático, que ajuda na própria produção poética. O medo na poesia de Tadeu Sarmento e suas montagens abaixo do guarda-chuva. Os dias longos de Oscar Wilde na prisão, conhecendo pessoas que até então nunca soubera que existiram. As longas caminhadas noturnas de Cioran, lutando contra a sua insônia, e conhecendo prostitutas e um tempo que não se renova com o dia e assim entendendo a ilusão dos novos começos. Somos impulsionados por nossas velocidades, nossas lentidões, a convulsão do corpo e da palavra. Os mares revoltos e nossos afetos.

Deste cedo o jovem Camus foi afetado pela doença, não jogava futebol da mesma forma, e talvez tenha escolhido ser goleiro não somente por estar mais perto do momento-chave, mas pela pouca movimentação corporal. Então um Camus que adorava jogar futebol (as biografias nos dizem de um bom goleiro) é levado a outros locais. Horácio González na sua biografia sobre Camus, nas páginas iniciais, aponta alguma coisa sobre a doença que então começa a impedir o jovem Camus de jogar futebol: “Goleiro de boné e cachecol, camisa azul e branca. Cedo, uma tuberculose. A enfermidade não chega como ressentimento, mas como uma ligeira distância que obriga a uma afeição permanente do que o corpo perde com habilidade e ganha como nostalgia de uma impossível jogada, inspirada e genial.” Com Oliver Todd temos uma fala interessante: “Às vezes penso na saúde como um grande país cheio de sol e de cigarras, que perdi sem ter culpa. E, quando tenho muita vontade desse país e da felicidade que ele me daria, recupero-me no meu trabalho. Vou voltar [para Argel] com trabalho muito adiantado mas que não me satisfaz e que será preciso refazer.[…]É sempre assim para mim: preciso refazer as coisas se quiser fazê-las realmente bem”.

Essa atitude estóica de aceitar o que é, do que querer uma impossibilidade, não é a única atitude que Camus toma diante da enfermidade. Esta doença o afeta de diversas formas. Com relação ao esporte: o afasta do futebol. Com relação à culinária: o máximo possível de carnes vermelhas e vinho tinto. Com relação a uma geografia: as montanhas e os lugares altos. Estes são alguns preceitos que os médicos da época indicam para ele. Camus tira uma lição: “A doença é um convento que tem sua regra, sua ascese, seus silêncios e suas inspirações”. Todos estes pontos abordados com relação à vida de Camus nos leva a entender que se faz filosofia com um corpo e que a vivência deste corpo também é motivo de reflexão. Levando ainda a um ponto mais extremo podemos ver as disfunções dos órgãos relacionadas com a profundidade do próprio pensamento: “quem não sente seu corpo jamais será capaz de conceber um pensamento vivo”, nos escreve o filósofo romeno Cioran. No caso de Albert Camus o efeito da doença é também um despojamento prático, uma imagem lírica, e uma desesperança filosófica ou para sermos mais precisos se trata de uma criação sem amanhã, de uma paixão sem amanhã.

Pode-se encontrar este despojamento prático de Camus, na introdução de seu primeiro livro O Avesso e o Direito. Cito dois pontos com relação a este belo prefácio do autor, o primeiro é uma negação do excesso de bens, que coincide em negar os efeitos negativos desta posse, que se trata de perder a própria liberdade. A segunda citação diz respeito mais explicitamente ao efeito da doença em Camus, que lhe da uma “liberdade de coração”, uma forma de viver na “admiração”. Primeiro ponto:

Não consigo guardar o que tenho, e o que sempre me é oferecido sem que tenha buscado. Parece-me que é menos por prodigalidade do que por outro tipo de parcimônia: sou avarento com essa liberdade que desaparece assim que começa o excesso de bens. O maior dos luxos nunca deixou de coincidir, no meu caso, com um certo despojamento. Gosto da casa nua dos árabes ou dos espanhóis. (Camus)

Segundo ponto:

Mesmo mais tarde, quando uma doença grave tirou-me temporariamente a força de vida, que em mim, tudo transfigurava, apesar das enfermidades invisíveis e das novas fraquezas que nela encontrava, conheci o medo e o desanimo, nunca a amargura. Essa doença, sem dúvida, acrescentava outros entraves, e mais duros, aos que eu já tinha. Afinal, a doença favorecia essa liberdade do coração, essa ligeira distância em relação aos interesses humanos, que sempre me preservou do ressentimento. Este privilégio, desde que vivo em Paris, bem sei que é régio. Mas dele desfrutei sem limites nem remorso; e, pelo menos até o presente, iluminou toda a minha vida. Artista, por exemplo, comecei a viver na admiração, o que, em certa sentido, é o paraíso terrestre. (Camus)

A doença se mostrou como ascese para um paraíso terrestre. Estes dois aspectos acercam sobre um despojamento do filósofo, que por sua vez está conectado com a interpretação da sua doença, uma análise do próprio corpo. Também se tem na obra camusiana imagens líricas com relação à pobreza. Estas imagens podem ser encontradas desde o seu primeiro livro O Avesso e o Direito, até o seu último livro O Primeiro Homem, que ficou inacabado devido à trágica morte de Camus em um acidente automobilístico em 1960. Estes dois últimos livros citados têm uma linha que os une, que são alguns aspectos evidentemente autobiográficos. Com relação a esta imagem lírica cito uma passagem que é esclarecedora:

Penso em um menino que viveu em um bairro pobre. Aquele bairro, aquela casa! Só havia um andar e a escada não era iluminada. Ainda hoje, depois de tantos anos, ele poderia voltar para lá em plena noite. Sabe que subiria a escada com toda a velocidade, sem tropeçar uma única vez. O próprio corpo está impregnado desta casa. As pernas ainda conservam em si a medida exata da altura dos degraus. Na mão, o horror instintivo, jamais dominado, do corrimão da escada. E era por causa das baratas(…)Há uma solidão na pobreza, mas uma solidão que dá o devido valor a cada coisa. Em certo nível de riqueza, o próprio céu e a noite cheia de estrelas parecem bens naturais. Mas, no limite inferior da escala, o céu retoma todo o seu sentido: uma dádiva sem preço. Noites de verão, mistérios que precipitam as estrelas! Havia, atrás do menino, um corredor fétido, e a sua cadeirinha, esburacada, afundava-se um pouco sob o seu peso. Mas, levantando os olhos, ele sorvia a noite pura. (Camus)

Neste fragmento e em tantos outros momentos temos o lirismo camusiano. Com este trecho pretendo mostrar a pobreza de um jovem garoto que, mesmo em tal situação, não deixou de ter uma relação com o que é belo. Contudo, não se trata de uma beleza burguesa.

Muitos não conhecem os museus, não podem usufruir de uma casa que foi construída com objetivos estéticos, ou sair para ver obras de arte, às vezes nos encontramos longe desde mundo, mas também muito perto. Então, as belezas naturais são estas dádivas que não se coloca preço. Talvez uma atitude moderna, voltando também ao cinismo clássico, seja dar mais valor a beleza natural do que uma relação de posse com determinada arte. Trata-se de dizer a qualquer Alexandre o Grande para sair da frente do nosso sol. Trata-se de erguer a face e olhar a noite escura. Trata-se de uma nova relação com a natureza, que não a vê como empecilho, mas diante dela uma relação estética, uma relação de significação, uma relação indígena.

Albert Camus pratica este despojamento primeiro em alguns dos seus romances e, posteriormente, com esta mesma noção, ele aborda no âmbito dos seus livros filosóficos  uma problematização sobre a criação sem amanhã, que é ver as coisas de uma forma maior, magnânima – influência claramente grega, em seus matizes estóicos, cínicos, mas que também poderia ser budista. O intuito não é encher-se, mas esvaziar-se. Diante destas ideias nos encontramos no âmbito filosófico e temos agora uma desesperança filosófica com relação à vida, e também ao ato de criação.

A criação sem amanhã de Albert Camus nos ensina algo que também nos revigora, se deixarmo-nos embrenhar naquele pensamento. A criação é criar “para nada”, isso é saber que a própria criação não tem futuro. Neste momento não se tem diferença entre o construir para um século, ou para o próximo segundo. Contudo, o criador absurdo nega esta obra, como também a exalta, ele dá cores ao vazio. Esta atitude nos leva a uma concepção bem particular da arte, pois existe uma vontade de criação que por sua vez tem sua disciplina, um esforço cotidiano, domínio de si, ponderação, força. Com esta disciplina talvez se tenha uma ascese, que é superar os próprios fantasmas, e se aproximar um pouco mais da realidade (grandes obras nos mostraram esta imagem). Este criador mais do que exibir provas em seus romances, dá para si mesmo estas provas. Albert Camus nos escreve que: “O essencial é que triunfem no concreto e que esta seja sua grandeza. Um triunfo totalmente carnal preparou-os para um pensamento em que os poderes abstratos foram humilhados”. Camus entre a unidade e a diversidade, volta-se para o que é múltiplo, para um local mais concreto, de vivências, mais corporal, e também para a consciência da sua própria morte, que o liberta de qualquer esperança.

Vislumbramos a morte diante das nossas enfermidades, Albert Camus tinha a sua tuberculose que de forma crônica o lembrava da morte. O último esforço do criador absurdo apontado por Camus é saber libertar-se dos seus empreendimentos, admitir que sua obra, suas conquistas, seu amor, poderia não ser! Ver a vida em sua nulidade. Isto daria, de acordo com Camus, uma maior facilidade para a realização da obra, como entender o absurdo da vida nos autoriza a mergulhar dentro dela em todos os seus excessos. Neste momento aquele despojamento filosófico de um Camus que olha para a sua infância pobre então ganha outros contornos, já não é mais negar somente alguns móveis, vendo como a aquisição poderia nos prender, ou como estas aquisições poderiam nos tornar não possuidores, mas possuídos por objetos. Este despojamento camusiano é uma possibilidade de imersão na própria vida, isso sem nos esquivarmos para ilusões religiosas, ou céus futuros. Na imagem do criador absurdo Camus nos mostra uma lucidez, pois ele mesmo esta criando “para nada”, cria para si mesmo uma imagem, e tentar ver por meio dela, dá provas a si mesmo, mas também sabe da inutilidade de tal obra – mas isso não o impede de exaltá-la. O criar sem um amanhã então leva junto a si, toda a intensidade de um momento, de uma vida que se multiplica por via da escrita. O céu do ator é mais uma máscara.

 

 

 

 

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Rafael Leopoldo A S Ferreira é pós-graduando pela FLACSO, Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. E-mail: ralasfer@gmail.com




Comentários (4 comentários)

  1. Fernando Rocha, Após ler este texto, vislumbrei a possibilidade de ligar por alguns pontos Camus com Bandeira. É Possível?
    23 novembro, 2012 as 18:03
  2. Rafael Leopoldo, Não sei quais pontos você quer ligar Fernando, mas claro que deverá ser possível, quando o Albert Camus veio ao Brasil ele conheceu o Bandeira (um dos poucos que ele realmente gostou de conversar). Abraço!
    24 novembro, 2012 as 18:41
  3. Clecio Luiz, Muito bom de ler, Rafael. Conheço quase nada de Camus, mas esta atitude de despojamento é invejável. Vi que cita Nietzsche e sua pretensão de ser um “extemporâneo”, de ser compreendido por aqueles além de seu tempo. De fato, uma criação para o amanhã, o que o afasta de Camus. Ao mesmo tempo, essa aceitação(despojamento)que você diz “estóica” da vida, pareço vê-la também em Nietzsche, em seu pensamento trágico, em seu otimismo de viver a vida e aceitá-la sem as máscaras da religião, da falácia e da ilusão. Massa, meu caro, massa!
    28 novembro, 2012 as 16:32
  4. Rafael Leopoldo, Olá, Clecio, tudo bem? Que bom que gostou. Penso que Nietzsche tenta aceitar a vida mais extremamente, até mesmo que o Albert Camus. O alemão tentou dizer um grande SIM à vida, contudo Camus também a negou, ele vê certas coisas como inaceitáveis não é somente Amor Fati mais Odium Fati, e nisso, vejo novamente um afastamento de Nietzsche. Mas, convenhamos que seja um Nietzsche-camusiano, o que não deixa de ser interessante. Abraço!!
    30 novembro, 2012 as 15:28

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