Cores, nomes e ossos


 

 

CORES & NOMES

Essa moda de livros para colorir significa um retrocesso cognitivo surpreendente à idade mental do jardim da infância, numa dimensão próxima à idiotia. Inacreditável que adultos mais ou menos alfabetizados caiam na balela (marqueteira) de que brincar com lápis de cor seja terapêutico, relaxante, ou qualquer bobagem do gênero. O consumidor de tais produtos (sim, produtos) nem se dá ao trabalho de exercitar o desenho, rabiscar, ensaiando suas próprias garatujas; ele apenas preenche bovinamente imagens pré-determinadas, em geral de péssimo gosto, rococós, padronizadas, meramente decorativas. Não se trata de preconceito contra uma atividade lúdica primária, boboca, sem qualquer estímulo à criatividade, simples gesto mecânico, repetitivo e aleatoriamente estético, mas de ressaltar o vazio constrangedor de pensamento e criação. Diante da crise de leituras e de leitores minimamente críticos, assumimos a acefalia como recurso de compensação emocional. E o mercado editorial, sedento de vendas fáceis e descartáveis, mergulhou de cabeça nesse modelo de passatempo fútil. A preguiça de ler, interpretar e defrontar-se com as dificuldades de um texto literário embotam a consciência, apequenam a sensibilidade e a inteligência. O que resta para escritores num cenário kafkiano como esse, aprender a desenhar?
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NOMES & OSSOS

Fiquei por muito tempo matutando sobre o que havia de misterioso ou surpreendente na breve narrativa “Nossos ossos”, de Marcelino Freire, que tanto havia me impressionado. Talvez o ritmo, como sempre certeiro, musical, próximo da poesia e da oralidade, em seus contos, mas não era só isso. O enredo, certamente bem amarrado, dramático, mas delicado, tocando fundo no que ainda resta de nossa humanidade esgarçada, falida. O apuro na linguagem narrativa, que Marcelino vem exercitando desde o belíssimo “Angu de sangue” e o descompromisso com a pose, a retórica, aqueles penduricalhos performáticos que infestam a literatura brasileira, como se a frase torneada, irmã do artificialismo da academia e suas regras inúteis, fosse sinal de literatura, talvez de literatice. Percebi que o que havia me tocado no romance de Marcelino, ali da história de amor, do absurdo das relações humanas em busca de um sentido no mundo de saída sem sentido, era justamente o encaixe quase irretocável da sonoridade da frase, sua melodiosa sedução, com a leveza dramática (isso mesmo, uma aparente e mínima contradição!), numa história banal de amor que tenta ir além da morte.

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REVISTAS & OS OSSOS DO OFÍCIO

Chega ao quarto número, heroicamente, como de costume, a revista Acrobata, da Teresina, editada por Aristides Oliveira, Demetrios Galvão e Thiago E., dedicada a “literatura audiovisual e outros desequilíbrios”. Primor de edição, mistura poesia, cinema, quadrinhos, entrevistas, artigos, com inteligência de fundo e forma, coisas raras de ver e perdurar.

Outra revista literária que chega bravamente à sétima edição é a paulistana Córrego, sob os cuidados de Gabriel Kolyniak e Tomás Toster, reunindo poesia variada e boa, especialmente de mulheres, que arrebentam o verbo, como neste trecho de Fernanda Castanho:

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“De novo reinvento e agora fixo o aço

Agarro o concreto,

Amarro os pés ao laço do fio

Que segura o cosmos

E fixo a consciência no eixo

Que alinha o sólido.

Procuro desviar o corpo

Do que me é lançado

Permaneço e mantenho a reta

Que antes havia traçado

No momento em que pensava

Ter desvendado a vastidão.”

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E de Buenos Aires chega o primeiro número da revista El Ansia, dirigida por José Maria Brindisi, que tive o prazer de conhecer em Bogotá, com a proposta interessante de a cada edição promover a imersão na obra e no cotidiano de três autores, com reportagens, entrevistas, biografias, ensaios críticos, reprodução de textos e imagens, para que o leitor tenha uma experiência vertical com o processo criativo e seus desdobramentos concretos na produção de cada escritor. Na primeira edição de El Ansia são contemplados Marcelo Cohen, Hernán Ronsino e Alberto Laiseca. O projeto editorial e gráfico da revista é lindo, biscoito finíssimo.

 

ESCOLAS DE ESCRITORES & REVOLUÇÃO

Em março participei de um encontro latino-americano de escolas de escrita criativa em Bogotá e descobri projetos incríveis espalhados pelo continente, muitos deles como parte de programas universitários de pós-graduação. Enquanto por aqui continuamos tratando literatura como material entediante de arquivo, da escola ao ensino superior, nossos vizinhos trabalham a criação literária propriamente dita em muitas dimensões, na sala de aula, nas ruas e pela internet. Ouvi e anotei muitos depoimentos interessantíssimos e até falei do Centro de Apoio ao Escritor da Casa das Rosas em uma das mesas, mas a fala que mais me comoveu foi a do escritor cubano Eduardo Heras sobre a experiência de oficinas literárias em Cuba durante e posteriores à revolução. Oficinas ministradas ao ar livre, em canaviais, praças, armazéns, para levar a literatura onde fosse possível e para quem tivesse interesse. Esse trabalho incrível se consolidou, há quinze anos, num lindo casarão transformado em escola para escritores, que Heras dirige, mantendo ainda uma editora própria –  Caja China – e a publicação de uma revista de contos, hoje com 13 números publicados. Eduardo Heras é um baita escritor e faz esse trabalho generoso, lindo, necessário, desde que a turma do Fidel decidiu, felizmente, virar o jogo da história por lá.

 

 

 

 

 

 

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Reynaldo Damazio é sociólogo de formação, escreve resenhas e poemas, edita, trabalha como gestor cultural, torce pelo Corinthians e vive lendo ou caminhando por aí. Publicou Horas perplexas (Editora 34) e organizou, com Tarso de Melo, Literatura e cidadania (Dobra), entre outros. E-mail: reynaldo.damazio@gmail.com

 




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