Confabulações Maquínicas


Confabulações Maquínicas: Alan Turing e Leonel Moura

A máquina eletrônica Colossus em 1944. Fonte: http://www.turing.org.uk.

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Pode-se dizer que o matemático britânico Alan Turing (1912-1954) é uma das figuras mais importantes da computação contemporânea. Considerado por biógrafos como uma personalidade prodigiosa, buscou desenvolver um modelo de uma máquina de princípios matemáticos – um computador universal – antes que os primeiros equipamentos desse tipo de fato existissem. Turing foi também um colaborador fundamental para a vitória dos Aliados da Segunda Guerra Mundial. Quando a guerra eclodiu, o matemático foi encarregado de coordenar os trabalhos de decriptar os códigos de comunicação dos países inimigos. Em uma ação que permaneceu secreta por vários anos, criou em 1943, uma máquina chamada Colossus, capaz de processar cinco mil caracteres por segundo – e com isso, desvendar mensagens escritas no código chamado de Enigma, que era transmitido por telégrafo.

A partir do resultado bem-sucedido de Colossus, Turing se dedicou a pensar como uma máquina poderia imitar a mente humana, realizando contribuições até hoje importantes para os estudos em Inteligência Artificial. Desta forma, ele escreve em 1950, um dos seus textos mais conhecidos: Computing machinery and intelligence (em tradução livre: Computadores e Inteligência) que propunha um “jogo da imitação” (que seria posteriormente conhecido como Teste de Turing) para avaliar a inteligência das máquinas. O teste consistiria na participação de duas pessoas e uma máquina a ser testada: uma pessoa e uma máquina seriam interrogadas por outra pessoa, sem que esta tenha consciência sobre quem é humano e quem é máquina. O interrogador, sem qualquer contato visual com seus interrogados, buscará através de perguntas por texto, saber quem é quem, já cada interrogado deverá tentar convencer o interrogador de que ele é humano, e não máquina. A máquina conseguiria passar no teste caso o interrogador não fosse capaz de distinguir com certeza a natureza de cada interrogado. Com o tempo, essa proposição se juntaria a teorias de outros autores que demarcariam com maior definição as potencialidades de ações inteligentes em sistemas artificiais. Mas, e se estendêssemos essa mesma lógica “daquilo que se parece é” para a criação artística?

Hoje, como uma das possíveis releituras do significativo legado de Turing, o artista multimídia português Leonel Moura tem utilizado as premissas do jogo de imitação para validar as criações de seus robôs como objetos de arte. Moura é bastante conhecido por seu percurso no desenvolvimento de autômatos com habilidade de criar imagens gráficas e pictóricas, apresentados em vários espaços de arte, design e novas tecnologias em diferentes partes do mundo. Destes, sem dúvida, o mais conhecido é RAP – Robotic Action Painter, que é um pequeno robô equipado com canetas coloridas, sensores e programação capazes de compreender cores e padrões. Com a tela disposta horizontalmente, assim como a action painting de Jackson Pollock, o robô se locomove sobre aquilo que é pintado. Segundo o artista, após preencher uma tela, RAP “decide quando parar,” narcisisticamente assinando o trabalho ao final.

Desde 2006, RAP faz parte do acervo permanente do Museu de História Natural de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Ainda como um aperfeiçoamento de RAP, há também ISU (2006) que constrói composições elegendo aleatoriamente palavras que possui em seu banco de dados, bem como, é também capaz de reproduzir imagens. Um livro foi editado com os textos produzidos pelo robô, sendo que o prefácio da publicação foi escrito por uma especialista em poesia, que elaborou um texto “muito curioso, porque ela não se interessou se era um robô ou (…) um humano” (Moura, 2012). Tanto os textos de ISU quanto as imagens pictóricas de RAP pode ser facilmente confundidos com criações humanas, mesmo por aqueles que possuem alguma iniciação nas linguagens.

RAP de Leonel Moura, em ação. Fonte: http://impressionartetavira.blogspot.com.br/.
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No âmago desta ambiguidade entre o que seria produzido por humanos e por robôs, revela-se uma dimensão marcante do trabalho de Moura: sua intencionalidade mimética, ou seja, o desejo de criar indistinção entre criações de humanos e de robôs. Moura, então, extrapola a premissa de Turing para a área da criatividade: “se uma máquina fizer uma coisa que se for uma pessoa a fazer, nós dizemos: ‘Isto é arte’, então aquela máquina é um artista” (Moura, 2012). Ou seja, se o que é produzido pelo robô se passa por arte, logo é arte.

ISU de Leonel Moura e um dos textos criados por ele. Fonte: http://aeuropanasnossasmaos.wordpress.com/.
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Naturalmente que o artista opera em espaços já trilhados por outros artistas, como o suíço Jean Tinguely, conhecido por suas máquinas que satirizam a otimismo tecnológico e científico do pós-guerra no século XX, que cria máquinas que imitam o gesto espontâneo do expressionismo abstrato. Em Metamatics, produzidas entre 1955 e 1959, Tinguely propõe meta-obras: máquinas que criam automaticamente sequências infinitas de desenhos, baseadas em engrenagens, rodas, correias e motores. Mas, a questão que distingue Moura de seus antecedentes é o desejo de personificar suas criaturas: em 2004, Moura passa a defender a partir de seu Manifesto da Arte Simbiótica a figura do “artista simbiótico”. Trata-se de uma nova condição para o artista contemporâneo, que deixaria de produzir diretamente produtos artísticos para criar agentes artificiais devotados às artes (Moura e Pereira, 2004) – ou seja, em vez de realizar diretamente objetos artísticos, criar artistas! E soma-se aqui sua visão mais diretamente provocativa da superioridade de uma arte produzida por robôs:

Quando a robótica deixou de simplesmente simular comportamentos humanos, como andar, jogar futebol ou contar anedotas, para se dedicar à realização da arte, alguma coisa de muito radical aconteceu. Robôs que fazem arte não questionam só a ideia de arte ou filosofia, mas põem em causa a nossa própria condição como humanos. Para quê continuar a fazer algo que as máquinas fazem melhor e de forma mais consequente?(Moura e Pereira, 2004)

Além da provocativa relativização do criador humano, ao tornar obsoleto este agente, as questões trazidas por Moura implicam em outras proposições pertinentes às artes: o ato da criação está reduzido ao seu objeto simplesmente – no caso, aos seus resultados plásticos? Na contemporaneidade pode-se ainda defender a leitura da obra desprezando a trama conceitual que a envolve? A contribuição das provocações de Moura definitivamente não está nas obras criadas por seus autômatos, nem na legitimação a que confere a estas criaturas, mas em seu poder de gerar inquietações – e involuntariamente, reafirmar o domínio subjetivo das proposições humanas.

 

 

 

 

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REFERÊNCIAS

Moura, Leonel. O grande artista do futuro não será humano: Leonel Moura at TEDxAveiro. Vídeo. 2012. Disponível em <URL: http://youtu.be/JBXe7Ow8sYg>.

Moura, Leonel; Pereira, Henrique Garcia. Symbiotic Art Manifesto. 2004. Disponível em <URL: http://www.leonelmoura.com/manifesto.html>.

Turing, Alan. Computing machinery and intelligence. 1950. Disponível em: <URL: http://loebner.net/Prizef/TuringArticle.html.>

 

 

 

 

 

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Fabio FON (Fábio Oliveira Nunes): É artista multimídia, atuando entre outras áreas, nos estudos de hipermídia, web arte, arte mídia e poéticas da visualidade. É autor de CTRL+ART+DEL: Distúrbios em Arte e Tecnologia, livro publicado pela Editora Perspectiva, em 2010. É doutor em artes na Escola de Comunicações e Artes da USP e atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado no Instituto de Artes da UNESP, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. Site: www.fabiofon.com .

 




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