Cinema, Literatura e Geração Beat



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A exibição de Na estrada de Walter Salles me proporcionou novas ocasiões para ironias dirigidas aos literatos e críticos inteligentes; os que costumam opinar depreciativamente sobre a Geração Beat, em geral, e a obra de Jack Kerouac, em especial, sem os haverem lido.

Vez por outra ainda saem os mesmos ataques conservadores, repetidos desde o final da década de 1950. Já observei, diante dessas recaídas, que nem Francis Ford Coppola, nem Bob Dylan são bobos: criadores notáveis em seus campos (quanto a Coppola, bastaria Apocalipse Now para inscrevê-lo entre os grandes cineastas do século XX; quanto a Dylan, ninguém discutirá o valor poético de suas letras, entre outras qualidades), estão entre aqueles que declaram que ler On the Road mudou suas vidas. Dylan, como se sabe, saiu de casa após essa descoberta. Isso, como parte de um extenso cordão de escritores e artistas que receberam influência decisiva de Kerouac, em particular, e da beat como um todo. E de um impacto que extrapolou os campos da criação artística propriamente dita e atingiu a vida, as sociedades modernas, ao originar a contracultura e estimular rebeliões.

A influência extraliterária de Kerouac talvez tenha desviado o foco, não só de On the Road, mas do restante de sua obra. Embora a proliferação de biografias tivesse início nos anos de 1970, a partir do trabalho de Ann Charters, com seu ponto alto em Memory Babe de Gerard Nicosia, e já houvesse bons ensaios desde o pioneiro Naked Angels de John Tytell, só recentemente, de 2000 para cá, cresceu uma ensaística que vem lançando novas luzes sobre sua criação e a complexa relação entre obra e vida, além de esclarecer alguns mitos – o principal, relativo á criação de On the Road: sabe-se agora que o próprio Kerouac tomou a iniciativa de reescrever o rolo de 30 metros, e se copidescou umas quatro vezes antes de encaminhar a versão final a Malcolm Cowley e, através dele, à Viking Press: emerge, dessa documentação recente, um Kerouac menos intuitivo, mais consciente.

No entanto, continua a surpreender como, no interregno de 1951 a 1957, do término da primeira versão de On the Road até sua publicação, vivendo um período de marginalidade, viagens e aventuras, ele ao mesmo tempo exibisse tamanha criatividade: foi quando escreveu Visions of Cody (Visões de Cody, pela L&PM), provavelmente seu melhor texto e certamente o mais ousado; obras tratando da infância e juventude, Visions of Gerard e Maggie Cassidy; um relato memorialístico que também é alegoria ou narrativa fantástica, Doctor Sax; sua poética em Old Angel Midnight; a prolífica produção de poemas, da qual resultaram Mexico City Blues, com os 320 choruses e San Francisco Blues; as obras sobre budismo, The Scripture of the Golden Eternity, Some of the Dharma e a biografia de Buda, Wake up; parte das séries de haicais e das anotações de sonhos; seu mergulho mais fundo no submundo, Tristessa, passado no México; as partes iniciais de Anjos da Desolação, e sua narrativa mais beat, Os Subterrâneos.

Mesmo em crise após o sucesso de On the Road (não suportou a celebridade), ainda produziria obras importantes: o popular Os vagabundos iluminados; completaria Anjos da Desolação; faria as crônicas de viagem O viajante solitário; e o dramático Big Sur. Ainda escreveria uma obra-prima, Vanity of Duluoz, de 1967: testamento literário pouco antes de morrer consumido pelo alcoolismo, não apenas preservando sua qualidade como escritor, mas refinando-a de modo surpreendente. No ano de sua morte, 1969, um canto de cisne, Pic: o protagonista é um garoto negro expressando-se na primeira pessoa, no linguajar de negros norte-americanos do Sul; ao mesmo tempo, seu alterego.

Esse conjunto compõe um corpus monumental, no qual experimentou todas as possibilidades de expressar-se, desde o relato mais realista, com descrições minuciosas apoiando-se em sua extraordinária memória, passando por uma escrita polifônica para relatar enredos ambivalentes e uma diversidade de modos de prosa poética, além dos poemas. Testou os limites da escrita, procurando trazer a fala, a expressão oral, para o texto. Como testemunhou em seus diários (Diários de Jack Kerouac, 1947-1954): “On the Road é meu veículo com o qual, como um poeta lírico, como um profeta leigo, e como possuidor de uma responsabilidade com minha própria personalidade (o que quer que ela esteja louca para fazer), desejo evocar essa música triste indescritível da noite nos Estados Unidos – por razões que são mais profundas que a música. É o verdadeiro som interior de um país.”

Sua paixão pelo jazz – presenciou o nascimento do bop ao freqüentar as pioneiras sessões do Apollo Theater e do Minton’s no Harlem já em 1939, quando estudava na escola preparatória – tem relação direta com a busca do “som interior” e da “voz triste das ruas”: aqueles jazzistas, os Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Charlie Mingus, Lester Young, Miles Davis e tantos outros, queriam que seus instrumentos falassem, em uma síntese da expressão verbal e musical. A prosódia de Kerouac é a recíproca dessa tentativa: queria que sua escrita fosse música. Ouvir a gravação de suas récitas no Village Vanguard, no final da década de 1950, é esclarecedor (e empolgante): na época não perceberam, mas sua modulação jazzística acabaria influenciando o modo como se lê criação literária desde então.

Quanto ao filme de Walter Salles, formou-se, parece, um consenso: é bonito (alguns reclamaram de estetização) e muito do que está em On the Road também está lá. O intérprete de Kerouac, Sam Riley, não alcançou o personagem; dentre os demais atores, alguns impressionam: Viggo Mortensen como William Burroughs e Kristen Stewart como MaryLou Henderson (desde que se apague da memória aqueles filmes horrorosos dirigidos a debiloides que ela protagoniza).

Em favor do filme, ter sido realizado com um orçamento relativamente baixo: 25 milhões de dólares é pouco para um projeto dessa envergadura. E, ainda assim, haver resolvido as enormes dificuldades da reconstituição de época. Mas aspectos relevantes da obra ficaram fora: especialmente sua religiosidade, o intenso misticismo de Kerouac. Faltou a destruição do cadilaque no percurso de Denver a Chicago, na terceira das viagens, a mais sombria. Acho que faz diferença não ser mostrado que o carro da ida ao México foi um Ford 1937, precário calhambeque já naquela época. Ao relatar a entrada no México, Kerouac proclama que está vendo índios de verdade e não os folclorizados Pedros e Panchos – mas o filme mostra só Pedros e Panchos, e não os índios idealizados por ele.

Além disso, Kerouac, naquela altura, quando se pôs a percorrer os Estados Unidos junto com Neal Cassady, já era alguém rodado: desligado da universidade, com um extenso currículo de subempregos, ex-marinheiro, internado em um hospício por duas semanas, preso por outras duas, havia atravessado a fase infernal, de maior desregramento durante a formação da Geração Beat. Em comparação, o protagonista do filme parece ingênuo, alguém que começa a trilhar caminhos que o Kerouac biográfico já havia percorrido.

Principalmente, essa adaptação  de On the Road empalidece diante do material real: dos filmes da época, com verdadeiros beats, hipsters e hippies. Provavelmente em função da repercussão do filme de Salles, voltou a ser exibido na TV Easy Rider, dirigido por Dennis Hopper, protagonizado por ele, Peter Fonda e Jack Nicholson. Deslumbrante – provavelmente pela restauração digital da cópia, que luminosidade, que alcance estético, além do valor documental: Hopper foi um hipster; a colônia de hippies visitada pela dupla de motoqueiros era real.

E vem aí coisa melhor: The Magic Trip, de Allison Ellwood e Alex Gibney. Não percam. A história desse filme é a seguinte: em 1965, o escritor Ken Kesey, autor de Um estranho no ninho, juntou um bando de hipppies em um ônibus; convidou Neal Cassady para ser o motorista; puseram-se a tomar LSD e a distribuí-lo para quem quisesse; foram da California a Nova Orleans, daí subiram a Nova York, onde visitaram Ginsberg e Kerouac; ainda entraram no Canadá, retornaram á Califórnia, prosseguiram a distribuição do ácido, ao som de concertos do Grateful Dead e outros conjuntos – até a polícia intervir, prender Kesey e iniciar-se uma campanha contra os malefícios atribuídos ao LSD. Além do livro – The Electric Cool-Aid Acid Test, de Tom Wolfe (aqui publicado pela Rocco, esgotado: O teste do ácido do refresco elétrico) –, também foram rodadas 36 horas de documentário –recuperadas em 2011, condensadas na duração de um longa metragem. Passou na TV: é lindo, comovente: aquele modo ingênuo de filmar deu um resultado estético impressionante. Principalmente, pela credibilidade e espontaneidade: são hippies aventureiros de verdade em uma viagem que realmente aconteceu.

O tema, cinema beat, se estenderá. É aguardado o documentário de Walter Salles com os beats hoje, sua preparação para a realização de Na estrada. Vem aí um filme sobre o assassinato de David Kammerer por Lucien Carr, Kill Your Darlings de John Krokidas, com Daniel Radcliffe como Allen Ginsberg (será? dará certo? diretor estreante – cheira a oportunismo). Também é anunciado outro sobre Gregory Corso. E a filmagem de Big Sur de Kerouac: vi o trailer, me agradou, é belo e sombrio, desta vez com um ator que convence no papel do avatar beat. E aparecerão mais documentários.

Em debates e conversas sobre Na estrada, entrou um tema mais geral: literatura e cinema; adaptação de narrativas em prosa. O realizador de um filme baseado em obra literária corre um risco adicional: aquele da comparação. Seu trabalho será julgado perante a obra adaptada – submetido à dupla avaliação, portanto. A grandeza da narrativa pode diminuir o filme. Ocorreu – comigo, pois a crítica aprovou – com O céu que nos protege (The sheltering Sky) de Bernardo Bertolucci (de 1990, com Debra Winger e John Malkovich): é belo, mas não reproduziu o maravilhamento provocado pelo livro de Paul Bowles (aqui publicado pela Rocco, esgotado), destaque na minha lista das melhores narrativas do século 20. Outro da mesma lista: À sombra do vulcão (Under the volcano) de Malcolm Lowry (publicado pela L&PM), por John Huston (de 1984, com Albert Finney): mas a crítica percebeu, observaram que não deu certo.

John Huston foi o grande especialista na transposição de obras literárias. Sua adaptação de maior fôlego é Moby-Dick de Herman Melville (de 1956, com Gregory Peck, Richard Basehart, Leo Genn e Orson Welles). Diálogos em prosa poética, um elenco poderoso, amplidões marítimas. Adaptação fiel seria impossível: mas transpôs o clima e a beleza selvagem, certamente auxiliado por Ray Bradbury, co-roteirista. Até a tecnologia tosca de então para fazer baleias adiciona encanto.

No entanto, da filmografia literária de Huston – quantos clássicos: O falcão maltês (Dashiell Hammett), O tesouro de Sierra Madre (B. Traven), Glória de um covarde (The red badge of courage, de Stephen Crane) – nada ultrapassa seu último filme: The Dead (Os vivos e os mortos de 1987, com Anjelica Huston). O conto de James Joyce, final de Os dublinenses (várias edições brasileiras), bastaria para situá-lo como grande autor, com sua proclamação de que mais vale morrer jovem do que levar uma vida vazia e sem sentido. No conto e no filme, quase não há trama, só ambiente, clima, evocação. Dá a impressão de que Huston dispensou roteiro, filmou direto o conto.

Nas conversas sobre literatura e cinema, também foram citados o indispensável Visconti com Morte em Veneza e O leopardo. Apocalipse Now de Coppola, a enorme recriação do relato de Joseph Conrad. E Hitchcock: como transfigurou narrativas corriqueiras das duplas Goodrich & Hackett e Boileau & Narcejac. No cinema brasileiro, a relação afortunada de Nelson Pereira dos Santos com Graciliano Ramos; as adaptações de Machado de Assis, de Jorge Amado, de…

Temas para curso, ciclo de palestras, série de ensaios. Farei tudo isso.

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Claudio Willer (São Paulo, 1940). Poeta, ensaísta e tradutor. Traduziu parcialmente Ginsberg e Artaud, e a obra completa de Lautréamont. Publicou também, entre outros, ‘Geração Beat’, L&PM Pocket, 2009. É um dos editores da Agulha. E-mail: cjwiller@uol.com.br.




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