Cena Pará – uma palavra prévia


O vazio enforma o líquido e os recipientes

A literatura vive, vivem os homens. E vivem lá como cá. e , no caso, são tanto espaço como tempo. Ambos conformam situações do humano. Estar situado cá ou lá caracteriza o ser de todo e qualquer homem. Sua condição, seu . Vivem os homens, vive a literatura, sonho que os sonha enquanto é sonhada… Tocar nisto me parece importante quando se trata de apresentar a cena literária contemporânea de minha região, uma literatura fervilhante, ativa, forte, com bons escritores, mas historicamente afetada pela cansativa e infrutífera discussão sobre regionalismo/universalismo. Toco então no assunto pra dizer que, embora isto também exista cá, entre nós, será uma discussão da qual, se puder, passarei ao largo. Apenas por si, ela não me parece interessante. A ideia da coluna será a cena pela cena, a vigência do literário entre nós tal como fundamentalmente vige. E se agora evoco a questão, é justo com o objetivo de dizer por onde não pretendo circular. Mas, claro, tudo está em aberto.

Então, pensando no que me parece ser o fundamento de toda produção de sentido, e vejo a literatura como algo dessa produção, julgo que escrever é inscrever. É pôr-se em (in) mediante a escrita. O in aqui aludido no qual algo ou alguém é posto mediante a escrita é a vida. Nesse sentido, de pôr-se in, escrever tem o mesmo sentido que respirar, em que o pôr-se in é simultâneo a viver, de modo que a vida não é o lugar aonde se vai com o respirar ou com o escrever. Ambos são vida em movimento. A viver-se vida. A desdobrar-se em dobras únicas a cada vez. Um desdobrar-se não-geométrico como em um espraiar-se. Mas sucessivo, onde cada sucessão é única, intermitências de vaga-lume. A ser. Cada vez. Presença. Um in sem garantias, sem segurança, sem outro amparo que não o amparo sonhado, que, no entanto, é tão somente sonho, fantasia, produção de sentido: quixotismo!

Por meio da respiração e da escritura, é a própria vida que se põe in. A vida aspira à vida. Respirar é aspirar. Em toda respiração há um projeto. Uma aposta no instante por vir. Um transcender-se até o escuro do adiante imediato e breve. Uma luta: “A cada sorvo de ar que jogamos fora, é a morte que ia entrar em nós e que afastamos, assim, nós a combatemos em cada segundo.”, diz Schopenhauer. Mas aspirar é também blefar: “Finalmente, é preciso que ela triunfe, visto que basta ter nascido para lhe caber em partilha; e, se por um momento ela brinca com sua presa, é à espera de devorá-la.” (2001: 326-327).  Escrever é, pois, inscrever. Inscrever é aspirar. E aspirar é também blefar. Tentativas de sim frente ao Não absoluto, molde negativo de todo sonho, de toda forma e conteúdo, de todo sentido. Heidegger, que não falava propriamente de jarras, mas dessa fonte, disse certa vez a propósito de uma jarra: “O vazio é o recipiente do receptáculo. O vazio, o nada na jarra, é que faz a jarra ser receptáculo, que recebe… Pois é para o vazio, no vazio e do vazio que ele [o oleiro] conforma, na argila, a conformação de todo receptáculo. O oleiro toca, primeiro, e toca, sempre, no intocável do vazio e, ao produzir o recipiente, o conduz à configuração de receptáculo. É o vazio da jarra que determina todo tocar e apreender da pro-dução” (2002: 147). O vinho na jarra, como a cerveja no copo, como a alegoria e a metáfora no texto, assume a conformação temporária do vazio, fonte negativa de toda forma e de todo formar.

Mas a aspiração da escritura não é a mesma do respirar: fisiologia e literatura são intimamente próximas, mas, evidentemente, distintas; respiração e metafísica têm o mesmo fundamento, mas correspondem diferentemente a ele; o destino dos livros não se confunde com o dos homens. Abordar as distinções, contudo, requer outra oportunidade. Por enquanto, a título de prefácio, basta esclarecer que o espaço não tratará de regionalismos e universalismos, salvo se na perspectiva da cerveja no copo…


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Referências:

HEIDEGGER, M. A coisa. In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.

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Edilson Pantoja

(de Belém) é graduado em Filosofia, mestre em Estudos Literários, doutorando em Antropologia . Autor dos romances “Albergue Noturno” e “A Pedra de Babel”. E-mail: marajupema@ig.com.br
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Comentários (3 comentários)

  1. edson coelho, caramba, que inteligente! prometeu lindamente revelaçoes e intensidades. como se diz, trobar significa achar.
    13 janeiro, 2012 as 19:43
  2. Salomão Larêdo, É um desafio fiar o texto densa e leve mistura do fabrico misterioso porque simples. Fixar sem asfixiar, porque é importante respirar e continuar vi vendo. Parabéns, caro amigo. Peço fiado na mercearia da dialética frater e pago pra ver e sei que verei, tu tens a palavra e dispões. Há sãos nessa ação. Abraço abraçado sempre fraternalmente. Salomão
    13 janeiro, 2012 as 22:05
  3. ney ferraz paiva, uma notinha prévia, que quase nada noticia, mas também pudera, a literatura feita no Pará, esses tais escritores que se acham protegidos até da morte, na sua grande maioria, já estão mortos desde sempre, gelados e derruídos, fora do alcance dos vivos, sem contato com o tempo e espaço dos vivos. Uma cena que só pode existir se exumada e talvez nem possa ser reconstituída, mesmo com toda boa vontade e abnegação.
    15 janeiro, 2012 as 16:03

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