Cem anos de Bioy Casares


….………….O mestre da Recoleta: Cem anos de Bioy Casares

 

 

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Dois dos maiores escritores argentinos têm seus centenários comemorados em datas muito próximas: o de Julio Cortázar, em 26 de agosto; o de Adolfo Bioy Casares, no próximo dia 15. Coincidência do destino ou um plano celeste (título de um conto do segundo)?  Afinal, ambos exercitavam-se no domínio do fantástico, do insólito. A diferença está na linguagem: enquanto o estilo cortazariano era mais experimental e exuberante, o do “mestre da Recoleta” (o famoso bairro “nobre” portenho) apresentava-se mais comedido e “clássico”.

Gostaria muito de estar comentando, no embalo da efeméride, uma bem-vinda edição brasileira — que não há, salvo engano — de um dos admiráveis romances de Bioy, Plano de Fuga (1945). Na falta deste lançamento tão desejado, volto-me para a sua mais famosa obra no gênero (publicada em 1940, quando ele contava 26 anos!), cuja ambientação também se dá numa ilha longínqua: A Invenção de Morel (durante muitos A Máquina Fantástica no Brasil).

A essa ilha chegou como fugitivo da lei o narrador. Ali podia viver anos, sossegado e solitário, escoltado pelo bando solícito dos ecos, multiplicadamente só”, como um Robinson Crusoé moderno. O leitor, todavia, é guiado para sendas e falésias mais perturbadoras. Pois não é que nesse ermo há uma piscina, um hotel (também uma espécie de museu) e uma capela? Sem falar no grupo de quinze “visitantes” (e seus criados). Sobretudo há, entre eles, uma mulher fascinante, Faustine.

O fugitivo admira esses “heróis do esnobismo” que não se importam de manter seus prazeres, mesmo com o mau tempo local: “… sentados em bancos ou na grama, conversavam, ouviam música e dançavam em meio a uma tempestade de água e vento que ameaçava arrancar todas as árvores”; em contrapartida, é ostensivamente ignorado, sentindo-se invisível; chega a indagar, diante da frieza de Faustine, como Freud já o fizera, proverbial e genericamente, sobre as mulheres: “Mas que será que ela quer?”.

A extrema solidão: uma ilha povoada e nenhum contato. O isolamento completo em meio aos lânguidos lazeres das “aparições”. Sim, porque em determinado momento, se dá conta de que não é real o grupo, o qual repete os mesmos gestos, as mesmas falas. “Ocorreu-me que talvez se tratasse de seres de outra natureza, de outro planeta… Lembrei-me de que falavam em correto francês”: a língua francesa como idioma universal é uma impagável ironia, com aquele toque sutil devido ao qual tantos veneram, com razão, o amigo íntimo e colaborador de Jorge Luis Borges (escreveram juntos uma série de livros policiais paródicos, como Seis problemas para Dom Isidro ParodiUm modelo para a morte; além disso, organizaram uma formidávelAntologia da Literatura Fantástica), que, talvez esse motivo, não ficou eclipsado pelo mítico colega mais velho (Borges nasceu em 1899).

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As aparições foram criadas por Morel. O inventor preservou numa máquina os momentos vividos pelo grupo na ilha: não conseguindo possuir a esquiva Faustine, por fim vampirizou-a, tornando-a imortal e irreal: “de Faustine não há senão esta imagem, para a qual eu não existo”. Só resta a loucura final: fingir-se de aparição, unir-se às imagens como se fizesse parte delas, de forma a enganar um eventual espectador desprevenido”.

Depois das suas ilhas inquietantes, o autor de A Invenção de Morel ainda produziria belos romances, como O sonho dos heróis (1954) e Diário da guerra do porco (1969), estes felizmente já traduzidos. Da sua vasta e notável produção contística, o leitor brasileiro pode encontrar uma sumária entretanto expressiva seleção de catorze Histórias Fantásticas. Para se ter uma pequena ideia do humor de Bioy, basta citar um dos pontos altos do volume (como todos os já citados, editados pela COSACNAIFY), O calamar opta por sua tinta: um ET vem trazer a salvação a um mundo que pode ser destruído pela bomba atômica (estamos nos anos 1950), mas é frágil e necessita ser regado constantemente. Os moradores de uma cidadezinha argentina o acolhem com boa vontade, mas precisam do regador e querem manter sua rotina diária, e acabam deixando que morra.

O charme desse texto está na maneira como é construído, todo em cima da curiosidade dos habitantes da cidade em saber por que o regador não está sendo utilizado de sua forma usual e o que está acontecendo no depósito do homem mais rico da região. Diante dessas absorventes questões, o destino da humanidade é coisa secundária.

 

 

 

 

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[a resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 09 de setembro de 2014]

 

VER TAMBÉM  NO BLOG:

http://armonte.wordpress.com/2012/06/10/bioy-casares-e-a-multiplicacao-da-solidao/

http://armonte.wordpress.com/2012/06/10/o-henry-james-argentino/

 

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Prólogo

Jorge Luís Borges

 

Por volta de 1882, Stevenson observou que os leitores britânicos desdenhavam um pouco as peripécias e achavam ser prova de grande habilidade escrever uma novela sem argumento ou com argumento infinitesimal atrofiado. José Ortega y Gasset — em A desumanização da arte, 1925 — trata de explicar o desdém observado por Stevenson e, na página 96, declara “ser muito difícil, hoje em dia, inventar uma aventura capaz de interessar à nossa sensibilidade superior” e, na página 97, ser essa invenção “praticamente impossível”. Em quase todas as outras páginas, faz a apologia da novela “psicológica” e opina ser o prazer das aventuras inexistente ou pueril. Tal é, sem dúvida, o parecer comum em 1882, em 1925 e ainda em 1940. Alguns escritores (entre os quais me apraz contar Adolfo Bioy Casares) acham por bem dissentir. Resumirei a seguir os motivos dessa dissensão.

O primeiro (cujo ar de paradoxo não quero destacar nem atenuar) é o rigor intrínseco da novela de peripécias. A novela característica, “psicológica”, tende a ser informe. Os russos e os seus discípulos demonstraram, até à saciedade, que ninguém é impassível: suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram a ponto de se separarem para sempre, delatores por fervor ou por humildade… Essa liberdade plena acaba equivalendo à desordem mais completa. Por outro lado, a novela “psicológica” quer ser, também, novela “realista”: prefere que esqueçamos o seu caráter de artifício verbal e faz de toda vã precisão (ou de toda lânguida imprecisão) um novo toque verossímil. Há páginas, há capítulos de Marcel Proust inaceitáveis como invenções — aos quais, sem nos apercebermos, nos resignamos como ao insípido e ao ocioso do cotidiano. A novela de aventuras, em troca, não pretende ser uma transcrição da realidade: é um objeto artificial, que não sofre nenhuma parte injustificada. O temor de incorrer na mera variedade sucessiva do Asno de Ouro, das sete viagens de Simbad ou do Quixote, impõe-lhe um argumento rigoroso.

Aleguei um motivo de ordem intelectual; existem outros de caráter empírico. Todos se queixam de que o nosso século é incapaz de tecer tramas interessantes; ninguém se atreve a comprovar que, se este século tem alguma primazia sobre os anteriores, essa primazia é a das tramas. Stevenson é mais apaixonado, mais diverso, mais lúcido, talvez mais digno da nossa amizade do que Chesterton; mas os argumentos que comanda são inferiores. De Quincey, em noites de minucioso terror, mergulhou no âmago de labirintos, mas não cunhou sua impressão de unutterable and selfrepeating infinities em fábulas comparáveis às de Kafka. Observa, com justiça, Ortega y Gasset que a “psicologia” de Balzac não nos satisfaz; o mesmo cabe afirmar quanto aos seus argumentos. A Shakespeare e a Cervantes agrada a ideia antinômica de que uma moça, sem que a sua formosura diminua, consiga passar por homem; nos nossos dias, esse móvel não funciona. Julgo-me isento de qualquer superstição de modernidade, de qualquer ilusão de que o passado difere intimamente do presente e de que este diferirá do amanhã; mas acho que nenhuma outra época possui novelas de argumentos tão admiráveis quanto os de The turn of the screw, Der Prozess Le Voyageur sur la terre ou como o desta, escrita, em Buenos Aires, por Adolfo Bioy Casares.

As ficções de índole policial — outro gênero típico deste século que não pode inventar argumentos — referem fatos misteriosos, logo justificados e ilustrados por um fato lógico. Nestas páginas, Adolfo Bioy Casares resolve com felicidade um problema talvez mais difícil. Desenvolve uma Odisséia de prodígios que não parecem admitir outra clave que não a da alucinação ou a do símbolo, e decifra-os plenamente mediante um único postulado fantástico, mas não sobrenatural. O temor de incorrer em revelações prematuras ou parciais proíbe-me examinar aqui o argumento e as muitas sutilezas da execução. Basta-me declarar que Bioy renova literariamente um conceito que Santo Agostinho e Orígenes refutaram, que Louis Auguste Blanqui teorizou e que, com memorável música, Dante Gabriel Rossetti sintetizou:

I have been here before.

But when or how I cannot tell:

I know the grass beyond the door,

The sweet keen smell,

The sighing sound, the lights around the shore…

Em espanhol, são pouco frequentes, ou mesmo raríssimas, as obras de imaginação raciocinada. Os clássicos exerceram a alegoria, os exageros da sátira e algumas vezes a mera incoerência verbal; de datas recentes, recordo apenas um ou outro conto de Las fuerzas extrañas e algum de Santiago Dabove — injustamente esquecido. La invención de Morel (cujo título alude filialmente a outro inventor ilhéu, Moreau) traz para as nossas terras e para o nosso idioma um gênero novo.

Discuti com o seu autor os pormenores da trama; reli-a. Não me parece imprecisão ou hipérbole classificá-la de perfeita.

 

 

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[Dica da MUSA: baixe o PDF do livro de Casares aqui]

 

 

 

 

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Alfredo Monte, 46 anos, é natural da Baixada Santista, corinthiano, doutor em teoria literária e literatura comparada, professor apaixonado pelo ensino fundamental e crítico literário do jornal A TRIBUNA de Santos há 19 anos. Mantém o blog literário Monte de Leituras há três anos. E-mail: armonte2001@yahoo.com.br




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