Cecilia Meireles e a Índia


………..Cecilia Meireles: a poetisa (brasileira) que cantou a Índia

 

O vento da tarde vem e vai da Índia ao Brasil, e não se cansa.” – Cecilia Meireles

Entre os gigantes literários latino-americanos que escreveram sobre a Índia, os trabalhos de Octavio Paz e Pablo Neruda são bem conhecidos, mas não tanto os poemas da célebre poetisa brasileira Cecilia Meireles que visitou a Índia em 1953 e escreveu uma coleção de poemas impressionistas intitulada Poemas Escritos na India. Os poemas foram inspirados em lugares como Mumbai, Delhi, Patna, Kolkata, Cuttak, Hyderabad, Banglore, Puri, Aurangabad, Agra, Jaipur, Chennai, Goa e personalidades como Mahatma Gandhi, Rabindranath Tagore, Sarojini Naidu, Vinobha Bhave, Pandit Nehru entre outros. Ela também escreveu várias crônicas relacionadas à sua viagem à Índia.

Pouco depois de sua chegada à Índia em 1 de janeiro de 1953, declarou: “No que diz respeito à vida indiana, confesso que parece-me tão familiar como se eu sempre tivesse vivido aqui”. Ela acrescentou ainda: “Por muitas razões, pode-se vir para a Índia. Eu vim por Gandhi, o Mahatma”. Durante a visita, a poetisa foi premiada com um doutorado honorário da Universidade de Deli, que lhe foi entregue pelo primeiro presidente da Índia, Dr. Rajendra Prasad.

Ela foi a primeira escritora brasileira a passar um tempo considerável viajando pela Índia e a produzir um conjunto de poemas impressionistas sobre a vida na Índia. Cecília considerava a Índia como sua terra natal espiritual. A embaixada do Brasil em Nova Deli publicou uma edição bilíngüe de seus 71 poemas traduzidos do português para o inglês pelo Prof. Dilip Loundo e Rita Sanyal em 2003 para marcar o 50º aniversário da viagem histórica de Cecilia Meireles para a Índia. O Prof. Loundo foi muito gentil em me enviar uma cópia deste livro com uma nota pessoal no ano passado. O livro tornou-se a principal fonte de minha descoberta da poesia de Cecilia Meireles e usei generosamente aqui suas citações e das peças introdutórias escritas pelo Prof. Loundo.

Uma das mais requintadas vozes da poesia brasileira e da língua portuguesa, Cecília Meireles partiu para a Índia em uma investigação espiritual, uma busca de auto-realização, meditação poética e sabedoria. Em seu Cântico à Índia Pacífica, ela escreve: “Os que te conhecem, guardam para sempre o coração enternecido, /ó Índia paciente”.

Ela teve uma longa parceria poética com a Índia. O segundo poema de sua primeira coleção de poemas, Espectros, é intitulado Brâmane: “Esparsa a barba ao peito, na silente / Mata, o Brâmane sonha … / O Breve Elegia ao Pandit Nehru é um dos últimos poemas que escreveu antes de morrer em 1964.

Muito antes de viajar para a Índia em 1953, ela tinha absorvido os Vedas, Upanishads, Puranas, Ramayana e Mahabharata, Panchatantra, obras de Kalidasa, Kabir, Mirabai e Tulsidas entre outros. A Índia e a filosofia indiana estão presentes em todo seu trabalho poético. A filosofia indiana do não dualismo é evidente nessas linhas – “É a sua eternidade, é a eternidade, é você”. Durante toda vida Cecília demonstrou um fascínio com a viva tradição espiritual da Índia. Ela escreveu … “(na Índia) A poesia não é uma versificação fútil, é uma iluminação interior, um tipo de santidade e profetismo. A palavra do poeta não é uma habilidade pessoal, um exercício de diletantes – é, ao invés disso, um exemplo, uma revelação, um ensinamento por meio de de sons e ritmos … Quão afortunada sou por poder respirar em um país (Índia) onde ainda se pensa nesses termos! Que esperança na vida! Que renovação de fé na humanidade “.

Em uma carta escrita a um amigo em 1938, ela escreveu: “Quando meu amor pela Índia atingiu seu apogeu, coisas estranhas aconteceram comigo. Na noite, no meio de um sonho, pareci me separar de meu corpo e me mover através de lugares únicos com atmosferas coloridas, onde certas figuras deslizaram através de mim … Luz, fogo, música, ritmo … Foi um êxtase “. Ela reconheceu com franqueza sua “dívida pessoal com a Índia”. Em um manuscrito não publicado intitulado O que devemos à Índia, ela escreve: “Nós, brasileiros, somos herdeiros privilegiados da (coisas da) Índia”, ideia que ela aprofundou ainda mais em seu discurso no Seminário sobre Gandhi – “a vocação indiana do Brasil é uma espécie de “destino histórico” quando alguém se lembra que (de acordo com textos antigos) a descoberta do Brasil foi um mero acidente na rota da navegadores destinados à Índia “.

Em sua crônica “Reino de Hanuman”, ela observou: “A Índia é um país onde a sabedoria não se encontra apenas nos livros sagrados, mas na vida cotidiana …”

Aos 22 anos, Cecília dedicou um poema a Tagore intitulado “O Diviníssimo Poeta” -“Nos seus poemas sagrados, pairando como luas / Sobre o Mundo, que eu nunca soube, do teu canto, / Se as palavras eram de Deus ou se eram tuas…” e “Peso que vais aparecer… Meus olhos andam tristes… / Os tempos não têm clemência! Os homens não têm clemência! / E todos vão saber que vives, que és, que existes!… “/

Suas políticas educacionais no Brasil tomaram emprestado muito de experiências em Shantiniketan. Sua tradução em português de The Post Office, de Tagore, foi apresentada com sucesso no Rio, em 1949.

Mahatma Gandhi teve uma significativa influência em sua vida. Ela escreveu dois poemas sobre Mahatma, um logo após seu assassinato em 1948 intitulado “Elegia sobre a Morte de Gandhi” e outro durante sua visita à Índia em 1953, quando o viu em todos os lugares. Em sua Elegia, ela escreveu estas linhas memoráveis: “O vento da tarde vem e vai da Índia ao Brasil, e não se cansa. / Acima de tudo, meus irmãos, a Não-violência. / Mas todos estão com os seus revólveres fumegantes no fundo dos bolsos. / E tu eras, na verdade, o único sem revólveres, sem bolsos, sem mentir -desarmado até as veias, livre da véspera e do dia seguinte.

Sobre Jawaharlal Nehru, ela escreveu a um amigo: “Amanhã eu tenho um almoço especial com Nehru (ele parece muito comigo, ele tem muitos dentes e ele é muito preto como eu … Eu acredito que nos tornaremos bons amigos.) Ela era fascinada com a aparência escura que figura em muitos dos seus poemas, incluindo este: “Buda, Jesus, Muhammad / todos eram pessoas negras: pessoas que viviam de fé, pessoas que morreram de tristeza. /

Ela usa a palavra hindu Bhai muito habilmente em seu poema Multidão – “Aonde vão esses passos pressurosos, Bhai?” / A que encontro? a que chamado? / em que lugar? por que motivo? / Ela usa Bhai em seus poemas, Música e Desenho Colorido. Em Desenho Colorido ela é comovente: “Negros eram os teus olhos, Bhai, absoluta noite sem estrelas, noturníssima escuridão / fora do mundo.

Ela é comovente e profunda enquanto descreve um pobre homem: “Não era uma escultura, ainda que tão nítido, seco / modelado em fundas pregas de pó.  Ninguém lhe dava nada. / Não o viam? Não podiam? / Passavam. Passávamos. / Era um homem tão antigo / que parecia imortal. / Tão pobre / que parecia divino.

Saris, mostarda, pavões, búfalos, elefantes, pássaros, mangueiras, campos de cana-de-açúcar, especiarias, pimenta, ouro, seda, incenso, poeira, desertos, encantadores de cobras, família hindu, anis e cravo, canela, açafrão e Kohl figuram em seus poemas.

Ela escreve sobre Patna, lugar onde passei três anos da minha vida: “Tudo era humilde em Patna: torneiras secas, /cortinas tristes, / salas sonolentas.  Mas as flores da ervilha cheiravam com a violência/ de um pássaro que dá todo o seu canto. /

Olhe essas belas palavras no “Homem cego de Hyderabad” – “A cidade é igual às moedas de prata/ que passam de mão em mão./ A mão do cego vai na mão do menino./ Suas barbas são do vento./ Seus olhos são do sonho.

Em seu poema, Romãs ela usa a palavra Mali – “Não deixaremos o jardim morrer de sede”./ Mali asperge com um pouco d’água as plantas./ Como quem rega? Como quem reza./ Cada vaso recebe cinco ou seis gotas d’água/ e mais o amor de Mali, um amor moreno e sério,/ de turbante branco “.

Ela anseia viver em Hawa Mahal em seu poema Jaipur – “Muitos adeuses para Hawa Mahal/ (Onde eu deveria viver!).

Não há registro de visita sua à Caxemira, mas ela escreveu uma música para os bordadores da Caxemira, que os elogia: “Os jardins do mundo/ aos vossos bordados/ não são superiores”.

Em seu poema “Mulheres de Puri”, ela escreve: “alguém se lembrará de vossos vultos azuis/ entre os templos e o mar./ Alguém se lembrará do vosso corpo agachado,/ deusas negras de castos peitos nus./

Em seu poema sobre Tajmahal, ela é mística: “Entre a morte e a eternidade, o amor,/ essa memória para sempre”.

Em Anoitecer, ela é lírica: “As cabanas são como pessoas muito antigas,/ sentadas, pensando./ Uma pequena música toca no fim do mundo./ Uma pequena lua desenha-se no alto céu”.

Em seu último poema de “Poemas Escrito na Índia” intitulado Praia do Fim do Mundo, ela pergunta: “Neste lugar só de areia,/ já não terra, ainda não mar,/ poderíamos cantar./ Ó noite, solidão, bruma,/ país de estrelas sem voz,/ que cantaremos nós?/ E o poema termina com uma nota positiva, mas aguda: “… cantaremos, porém, amigos,/ neste impossível lugar/ que não é terra nem mar:/ na praia do fim do mundo/ que não guardará de nós/ sombra nem voz./

Ela escreveu uma série de poemas em diferentes estágios de sua carreira. Em seu poema no Shakuntala de Kalidas, ela escreveu: “E Shakuntala em silêncio/ prendia nas tranças úmidas/ alvos nastros de jasmim …/ se tudo isso era Shankuntala,/ secando ao sol seu cabelo / – moça efêmera e sem fim?

Ela resume sua jornada espiritual em seu poema: “Infelizmente, falharam as fotografias’- “Mas as fotografias falharam/ E aquele momento já fugiu para trás, no caminho do tempo./ Aquelas duas sombras foram ficando cada vez mais longe./ A compreensão, que perdura, é sem retrato.”

Em seu poema Dança Cósmica vê Nataraja e a Índia dançando juntos – “Nataraja dança, invisível e visível,/ e de Norte a Sul a Índia acompanha o seu dançar”.

Ela deseja voltar à Índia em poema escrito em 1961, três anos antes de sua morte precoce – “Cata, Cata, que é viagem da Índia …”

Existe uma lenda que, quando ela estava no leito de morte, três indianos estavam presente para dar-lhe suas últimas palavras de exortação antes de morrer.

É certamente apropriado que o Chá Com Letras, um evento literário mensal organizado pela Embaixada da Índia em Brasília, preste homenagem a esta grande poetisa brasileira que amou e foi profundamente inspirada pela Índia, em ocasião de sua 18ª edição (para marcar um ano e meio de existência do projeto em julho de 2017) com a leitura de seus poemas escritos na Índia por eminentes poetas brasileiros.

 

 

 

 

 

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Abhay K. é poeta e diplomata indiano no Brasil. Nasceu em Bihar, no leste da Índia, e tem uma formação sólida na área de Humanas. Cursou a Faculdade Kirori Mal College e a Universidade Jawaharlal Nehru. Estudou russo, história e literatura na Universidade Estadual de Moscou, língua nepalesa na Tribhuvan University e US Foreign Policy na Universidade George Washington. Abhay K. é autor de A Sedução de Delhi e editor de CAPITALS – uma antologia de poemas em 185 capitais do mundo, ambas obras publicadas pela editora Bloomsbury.

 

 




Comentários (3 comentários)

  1. Valda Fogaça, Belíssimo artigo, poeta Abhay K.sobre a musa rara Cecilia Meireles conforme a denominara, parabéns!Cecilia não é só uma inspiração para nós poetas, é o orgulho dos brasileiros…
    3 outubro, 2017 as 4:20
  2. Potira, Uau! Estou pesquisando este material da Cecília Meireles e até agora não consegui acesso à publicação da embaixada em Delhi.
    26 março, 2018 as 17:29
  3. Lucia Lobato, Maravilhada com os elos soberanos: Crcília/India.
    29 novembro, 2020 as 18:29

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