Carta a Carlos


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querido carlos felipe, mandei a você dois e-mails: estranhei o atraso do pombo-correio. nem um sinalzinho de fumaça veio… muito esquisito, meu amigo, porque você sempre foi rápido no gatilho. rima, mas não é solução: que pedras haveria no meio do caminho? uma vez comentei com você que fiz mestrado sobre o gênero epistolar (sob a orientação do nosso amigo josé luiz fiorin) porque sofria da nostalgia daquele tempo em que se escreviam cartas: e que eu, ansioso que sou, sofreria menos aguardando uma carta sua, porque você, afinal, não deixava nenhum interlocutor esperando – qualquer atraso, todos sabiam, seria exclusivamente por conta dos correios. você riu seu riso gostoso quando então lembrei leminski para lhe dizer que você também deve ter sido um dos mais “rápidos epistoleiros do oeste”, né? nesse jogo de cartas, carlos, engatilhamos em mário, uma das suas paixões, que foi nosso “epistoleiro” maior. enfim, divagando mas não dispersando (pra não dizer que não falei de rosa, um dos melhores “epistoleiros” do nosso “ser tão”), o que estou querendo lhe dizer é que hoje, com a velocidade da comunicação digital, a demora do retorno do seu bumerangue verbal me deixou com a pulga atrás da orelha. e você sabe bem que isso é essa mesma angústia até em francês, que você também tão bem traduziu: “j’avais la puce à l’oreille”. você entende como é quando a gente espera e não recebe resposta: é esse silêncio que cria o ambiente propício à proliferação das pulgas… de tanto olhar a tela em branco, de repente a gente começa a alucinar a história de um manuscrito numa garrafa náufraga de um conto de poe como um “barco bêbado” de um rimbaud errante nos mares sem margem de melville. será que minha mensagem virou jonas no bucho de “moby dick”? foi você quem escreveu o “roteiro de leitura” da “mensagem” de pessoa, mas esta é uma “linguaviagem” por outros áridos (contra) campos – este “sal” não “são lágrimas de portugal”! fecho com a “flor do lácio” de caetano e não abro: “deixe os portugais morrerem à míngua”, mas não a mim – há nós, enfim… em que “língua”, carlos, atravessar o cabo desta tormenta? como penetrar “no reino surdo das palavras” que esperavam por você? você que viveu também em portugal que também viveu em você que vive em mim sabe bem o que é saudade: e que foi o português camilo castelo, branco como o silêncio da sua resposta, que disse que é uma palavra típica da língua portuguesa. será que a “saudade” é a “persistência da memória” do “castelo” resistindo mesmo após a ruína? será que camilo acordaria que esta é aquela “busca do tempo” derretido como relógios proustianos num quadro de dalí? será que isso seria aquilo “que poderia ter sido e que não foi”, como manuel deu bandeira ao passarinho? será essa saudade uma mensagem em branco que sem sair do ovo bateu asas e voou? será esta aquela saudade de todos que passarão como mário quintana passou como passara mário de andrade como passa você como eu passarei – como paradoxais pardais que passaram mas não pararam de bater asas em nós? um “ai” cai de bashô como carpa na minha cara, caro carlos: “depressa se vai a primavera/choram os pássaros e há lágrimas/nos olhos dos peixes”. outro haicai cai balão em chamas no meu coração: “flores queimadas pela geada/os grãos caídos/ semeiam a tristeza”. desculpe esta prosa “torcicolosa” (como dizia um amigo de bandeira que não gostava de rosa), mas “saudade” só se escreve em linhas tortas em páginas sem pauta: em uma palavra não cabe a falta. na verdade, em palavra alguma: no âmago do estômago, a gente sempre sabe que a palavra engana mas não mata a fome… aliás, falando nisso, no (d)estilo descontínuo da “espiral de vozes” destes “fragmentos de um discurso amoroso”, barthes me sopra no ouvido: “no fundo, a palavra ‘sofrimento’ não traduz sofrimento algum”. por isso é que se escreve, que nos escrevemos (nos escravizamos), meu amigo: no delírio épico da busca do “verbo alquímico acessível a todos os sentidos”; na longa “temporada no inferno” do “bateau ivre” de arthur. o desejo de “fixar as vertigens”, a ânsia de “anotar o indizível”: e a frustração da impotência de traduzir o indescritível. freud explica o transe do “sublime”: mesmo sabendo que no fim do filme ícaro cai, sob o transe encantatório das palavras, cremos sustentar as asas, como se o sol não fosse o limite. isso quer dizer que a gente só consegue voar se esquece que não é pássaro, não é, carlos? estou te escrevendo exatamente para falar sobre aquela gaivota branca passando pela nuvem branca. para falar só, sobre o calar: para falar o branco. ler as suas não palavras em brancas nuvens é como/ver o “quadrado branco sobre fundo branco” de malevich: como me livro deste não quadro, caro carlos felipe? acho que você não me respondeu para eu escutar a música sem nota de cage: o seu e-mail que não veio me disse que o silêncio é feito de ruídos – como a peça 4’33”. mesmo que não haja carros passando, há pássaros cantando; ainda que não haja cigarras ciciando, há formigas trabalhando; embora não haja folhas balançando; há vento soprando. em silêncio “total”, restará ainda o som da respiração, a batida do coração. depois do último suspiro, pois, restará, enfim, o silêncio? você sabe, carlos, que sou existencialista: logo, materialista. isso significa que, quando o “ser” deixa de ser, nada mais resta: o “nada” não tem nada a ver com o “silêncio”. quer dizer, quando um amigo morre, o que para ele é o “nada”, é “silêncio” para quem fica: como em uma sinfonia de john cage, de um lado, os ruídos da orquestra de vermes roendo “as frias carnes do (…) cadáver”; de outro, as árias de soluços e lágrimas da ópera do luto. gostaria de receber seu e-mail rindo britanicamente (com sua delicadeza refinada) da minha exagerada vocação “dramática”: “carvalho, a minha ausência não é caso de vida ou morte: ainda que o intervalo tenha-lhe parecido uma eternidade, marquemos, finalmente, o esperado ‘banquete’ com o platão, amigo comum que eu não via há mais de trinta anos”. com a sua típica “elegância moral de pixinguinha” (parafraseando a homenagem de drummond a cartola, quando as rosas calaram), você me lembraria que três meses são um grão de areia em trinta oce/anos. você tem razão, mas eu também: afinal, nós três estaríamos juntos nesse encontro “que poderia ter sido e que não foi”. entre nós dois, foram três meses; entre vocês, trinta anos: mas eu, entre vocês, “condensei” três em trinta. você entende como a especialidade desse encontro também me afeta? você escuta como este silêncio reverbe(r)ra em mim, ponto comum entre os dois? em dezembro de 2016, você e o platão se reencontraram no lançamento do meu livro “o som da cor da letra” (patuá), no bar-livraria patuscada. platão me perguntou, muito emocionado, como eu o conhecia: como se adivinhasse que eu responderia perguntando-lhe sobre a surpresa, explicou-me a sua enorme importância na vida dele. depois, conversamos um pouco os três, antes de você me honrar com a leitura de um poema: lembro que antecipamos sua participação, não só porque você tinha outro compromisso literário, mas também porque o platão queria muito ouvi-lo. na verdade, ambos desejávamos mesmo é escutá-lo (naquele sentido barthesiano de “ouvir com os ouvidos da alma”). antes de você evocar as musas, o querido poeta claudinei vieira fotografou-nos num abraço triplo. após escutar-nos na sua voz, já na despedida (?), você, platão e eu combinamos aquele encontro. no dia seguinte, para confirmar o desejo – como se nos fosse possível esquecê-lo naquela mesa – você me enviou este e-mail:

“Querido poeta: como já disse no face, sábado foi uma noite especial, muita emoção, muita poesia e vida verdadeiras. Beleza pura! Claro que você merece! Não bastasse isso tudo, a noite ainda me proporcionou o reencontro com um amigo que eu já não via há mais de 30 anos, o Platão, que até declarou de público o seu (dele) mea culpa. E ficou de marcar novo encontro, pra que nós 3 nos aproximássemos ainda mais. Que assim seja!

Forte abraço,
Carlos”

depois de lê-lo emocionado, meu poetamado, lembrei que o vinícius – que você também ama – fez esta linda dedicatória a antonio cândido: “com a mão estendida para a amizade”. quero dizer que a sua presença em nossas vidas, em diferentes medidas, é exatamente esta “mão estendida”. por isso, meu e-mail em resposta sublinhou o nosso desejo de trocar o seu “que assim seja” pelo “assim será”, “pra que nós 3 nos aproximássemos ainda mais” – dando, enfim, aquele “forte abraço”! você recebeu nosso convite? vamos marcar – ufa! – nosso “banquete”? platão & eu estamos olhando o seu prato vazio, o seu copo “cheio de ar” (como aquela canção do gil). nós te esperamos pra virar o disco: “naquela mesa tá faltando ele/ e a saudade dele tá doendo em mim”. você sabe bem que um copo vazio pode ficar cheio de lágrimas, porque já ouviu muitas vezes o silêncio de jacob do bandolim “naquela” cadeira, né? você está escutando o som das nossas lágrimas caindo? se você visse o reflexo de sua ausência projetado nas pupilas do platão, confirmaria que são simão tem mesmo a ver com o japão: “silêncio profundo!/até o cantar dos grilos/está escondido nas rochas…”. aliás, quando você conheceu o platão, quase meio século atrás, você já enxergava este caipira zen – que também é meu amigo – como se um matuto sábio sem olho puxado incorporasse um bashô caboclo vendo agora você não chegar?

silêncio:
as cigarras escutam
o canto das rocha

veja só, carlos, quanto resta ainda a conversarmos: essa tradução é de jorge sousa braga (“matsuo bashô, o gosto solitário do orvalho”, assírio & alvim, lisboa, 2003). ele é português como cesário verde e fernando pessoa, que você nos ajudou a entender melhor, e também tradutor, como você. desculpe-me a digressão: pode botar a culpa no desejo de encontrá-lo, na vontade de prosear poesia com você. mas gostaria de escutá-lo sobre esta outra tradução do poema:

trégua de vidro:
o canto da cigarra
perfura rochas

na verdade, essa é uma tradução de outra tradução: olga savary traduzindo octavio paz traduzindo bashô (“o livro dos hai-kais”, massao ohno, 1987, p.19). a versão portuguesa não lhe soa mais japonesa? esta inversão entre as propriedades das “cigarras” e das “pedras”, isto é, esta transferência do “escutar” e do “cantar” não lhe parece criar uma fusão entre os entes como na síntese típica do “satori” dos poetas “zen”, naquela percepção momentânea da unidade, como se o próprio tempo estivesse suspenso? os olhos poéticos arredondados do ocidente – mais metafóricos – veem “trégua de vidro” onde os olhos fechados do oriente – mais literais – ouvem “silêncio”. você não acha que a aliteração sibilante de “silêncio” reverbera em “cigarra” e “escutam”, fazendo o poema “ciciar”? a versão de paz/olga não lhe parece sugerir a fragilidade do “silêncio” na imagem da “trégua de vidro”, que pode ser quebrada subitamente? nesse contexto, a aliteração em “r” é sintomática, já que essa consoante, não à toa, é classificada como “vibrante”: ela atravessa os três versos, “perfurando” a “rocha” como o “canto da cigarra”. aliás, sabemos que o “s” é uma consoante “surda”: o “r” é “sonoro” porque é produzido pela vibração (quanto “r”!) das cordas vocais (ouça esses “esses”!). sabe, carlos, refletindo sobre essas duas traduções do mesmo poema – que já virou dois, uma vez que um poeta nunca se banha duas vezes no mesmo rio – e sobre o seu “silêncio” nesta mesa, mesmo sem falar, você nos ajuda a achar mais uma das muitas chaves para mais uma das muitas portas desta e de outras histórias & estórias. olhando para a sua cadeira vazia refletida na retina da memória do platão, entre reflexos e refrações, escuto as duas traduções como variações de tonalidade do “sentimento de falta”. sinto a versão lusitana de bashô mais silenciosa, como aquele “branco no branco” do quadro de malevich: tradução do nosso “estado de espera” ansiosa pela sua resposta ao convite para o “banquete”. como se sentíssemos as vibrações do não acontecimento, eu e platão vivemos, nesta fábula da vida real, as “cigarras [que] escutam o canto das rochas”. no segundo ato, a transição para o “estado de frustração”, traduzido na quebra da “trégua de vidro”: é quando a incerteza da sua resposta se transforma na certeza da sua não resposta, que o “canto da cigarra” vira grito e “perfura rocha”. você está escutando os ecos agudos desta falta nos corredores escuros do “reino surdo das palavras”? veja agora a tradução desta “saudade” num outro bashô:

na escuridão do mar
brancos
gritos de gaivotas

será que a “saudade” é mesmo isso, carlos, um risco branco num fundo escuro? ou será que é aquele outro quadro de malevich, o “quadrado preto sobre fundo branco”? será que as gaivotas de matsuo são na verdade corvos de poe riscando a claridade com um grito de “never more”? será que a saudade é mesmo esse “quadrado preto”, meu amigo, outra expressão do nosso drummondiano “claro enigma”? nunca falamos de rené char, o poeta preferido de picasso: é curioso evocá-lo neste intervalo entre o “branco” e o “preto”, ecoando que “nós não podemos viver senão no entreaberto/ sob a linha de separação entre a luz e a sombra”. entre a aurora e o crepúsculo, eu e platão nos olhamos em silêncio, como as cigarras que escutam as rochas cantarem que você não veio, mas bashô como gaivota branca no breu da nossa dor:

as mãos no lume
…e na parede
a sombra do meu amigo

 

 

 

 

 

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Paulo César de Carvalho é mestre em Linguística pela USP e professor de Língua Portuguesa. Publicou seis livros de poesia (o último, em 2016, “O som da cor da letra” – Editora Patuá). Foi militante da Convergência Socialista. E-mail: carvalho70@gmail.com




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