Cadernos Bestiais



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ANTIMÍDIA I

 

Tunisiano de cabeça nervurada assenhora-se

da unha mínima

da história

enfurece letras que são bichos

de um minucioso horror

quando a morte engole manápulas

e adensa paisagens-vértebras

daqueles que não têm nome daqueles que

não têm nome nenhum nada além

de ninguém

tudo é um jogo desjogado de lacraus

letras que são bichos no escuro letras que

são lepras de lorpas no escuro

tateando entre os tufos da fome tateando

entre os húmus da usura tateando entre

assemelhar-se anfíbio

assemelhar-se reptante no asco

da rachadura no asco do desvão

em que se obliteram as anfetaminas

da desmemória

linhas incisivas num crescendo menos o focinho

menos a mandíbula menos as

tíbias esmagadas no

fosso monocromático do não –

há uma caixa torácica que canta

sozinha no deserto de Mojave

onde marines enrabam desvestidas traqueias

antes de matarem qualquer coisa viva –

dentes-de-leão ressonam numa tarde esfumada de setembro

em que um poeta (tunisiano?) soletra a sub-reptícia

sombra da vivissecção.

 

2014

 

 

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ANTIMÍDIA II

 

Fundo escuro

esta rua de infernais

fungos-de-papiro

onde se espraiam

corpos deformados

— Anúbis enfurecido

ante o massacre.

Tempo caveira

desenterra

escaravelhos ao contrário

onde abismais

esqueletos do nunca

fornicam trevas.

Esta é a cidade esfíngica

onde passos trilhados

ao avesso da membrana.

Esta é a cidade esfíngica

onde a desrazão

navega a insanidade.

Porco burguês.

Porca burguesa.

Chafurdam na mídia pré-histórica,

colecionando cifras.

Onde, nesse caos aritmético,

há lugar para o infinito?

(Tudo é número

nessa configuração

de lamentos:

até os fios de teu cabelo

estão contados,

e assim os anos de tua

breve trajetória.)

Mumifica a pele retesada,

em sarcófagos de cólera:

recolhidas em vasos

(canopos), tuas vísceras,

sob um céu ferruginoso

e o estrondo mudo

de uma pistola de 9mm.

Onde, nesse caos aritmético,

há lugar para o infinito?

Tua face, deserto em miniatura.

Tua voz, imagem-terracota.

Tuas mãos, alfabeto do escarro.

 

2014

 

 

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ANTIMÍDIA III

 

Voici le temps des assassins

Rimbaud

 

Qual é a palavra mais terrível

para definir

essa fragilidade,

essa corrosão?

Em qual aterro

acumulam-se,

entre estrumes,

as multifaces de Rávana?

Ferros oxidados,

oleosidade, madeiras,

feldspato;

arame retorcido,

betume,

cabeças secas

de cogumelos.

Nenhuma hipótese

de lucidez

nessa máquina

para a produção do medo;

nenhuma hipótese

além do imponderável

e sua rude sequência

de mutilações.

Jogos obscenos

como incendiar abrigos

— esta é a estranha

anatomia do precário,

cor difusa que atravessa

todas as letras da epiderme.

Pensamento-ciclope

no comando da sanha

assassina: é assim

que a sociedade de classes

decuplica o abismo em abismos,

com sua raiva infecta,

raiva refugo, raiva corroída,

que mata às cegas.

 

2014

 

 

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ANTIMÍDIA IV

 

desentranha.

voz que vem da carne;

adensamento da voz

que recusa ser centaura.

desmultiplicada,

limítrofe da afasia.

no antilabirinto:

fugitiva do Limbo.

que ninguém escuta:

hermafrodita, hermafrodita.

onde queimam fetais:

é absurda, quimérica.

fala para si, solipsista,

como jargão

de ofícios militares;

soa tantálica, prometeica,

como se saísse

de uma boca costurada;

como ressurgido mugido

de um mamute siberiano.

como se não fosse nenhum

som humano.

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2014

 

 

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ANTIMÍDIA V

 

Contra a entranha —

multiplica o medo

no borrão desfigurado;

 

unhas enegrecidas,

maxilares arrancados,

miuçalha de carcaças.

 

Nenhuma língua enterrada

na fossa onde caranguejos

copulam com capulhos;

 

mistério ou talvez corrosão

de ácidos na decapagem

para a despossessão de tudo.

 

Retrátil, contra teu sangue,

a exaustão do que esfiapa

o símile do pensamento.

 

Esta pele, tua pele, nenhuma pele:

tudo é número e o número

é legião; meu nome é legião.

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2014

 

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Poema escrito em homenagem

às vítimas da tortura

no ano em que recordamos

os 50 anos do golpe de 1964.

 

 

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ANTIMÍDIA VI

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JORNAIS APOIARAM A DITADURA MILITAR.

s/d

 

 

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ANTIMÍDIA VII

(macumba poética)

 

O Apresentador do Grande Telejornal

sofre de terríveis

dores estomacais.

Tosse.

É impotente.

E peida muito.

O Apresentador do Grande Telejornal

tem dispnéia paroxística noturna.

É cardíaco.

Asmático.

Psicótico.

O Apresentador do Grande Telejornal

foi acometido

de taquicardia supraventricular

ou taquicardia patológica

(há divergência

entre os especialistas).

É obeso.

Diabético.

Tem tremores nas mãos.

O Apresentador do Grande Telejornal

sofre de erisipela,

eritema ab igne,

pênfigo

e dermatite herpetiforme.

O Apresentador do Grande Telejornal

tem câncer no reto.

 

2014

 

 

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ANTIMÍDIA VIII

 

A Colunista do Grande Jornal Diário

equilibra-se

nos indispensáveis

saltos Christian Louboutin

para analisar os fatos políticos

com distanciamento crítico

e objetividade jornalística.

Ela é jovem, moderna, sofisticada,

usa vestidos Patrícia Bonaldi

e bolsa cor de prata Hermès

(Mercúrio é a divindade que rege

as comunicações). Em seu twitter,

dispara o último grito

dos bastidores do Congresso,

com senso de humor peculiaríssimo

e a mais apurada reflexão.

Entre um e outro gole de cherry brandy,

folheia, na revista novaiorquina,

as últimas criações de Domenico Dolce

e Stefano Gabbana, inimagináveis

nessa selva selvagem de mortos de fome.

Vivemos no pior dos mundos possíveis,

diz ao seu personal trainer,

o último círculo do ínfero Hades,

onde desfilam hordas de africanos,

índios, pederastas, crianças ramelentas,

estudantes bolcheviques. Massa mal-cheirosa,

escura, ignara, que nunca leu Plínio Salgado,

Afonso Arinos, Fernando Henrique Cardoso.

É impossível viver com essa gente,

pondera com a sua manicure ucraniana,

é preciso dividir o Brasil em bantustões,

para que a raça branca tenha um futuro possível.

Ela acredita na Divina Providência,

no Destino, nas Forças Vivas da Nação.

E aplica suavemente gotas aromáticas

(Ralph Lauren) em sua nuca,

enquanto espera pela Vinda do seu Führer.

 

2014

 

 

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ANTIMÍDIA IX

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Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!

Mário de Andrade

 

O Diretor da Grande Revista Semanal

coleciona armas de caça austríacas,

máscaras rituais balinesas,

tapeçarias do Azerbaidjão.

Em sua casa de praia em Búzios,

preserva manuscritos (autênticos)

do Mar Morto, tânagras sumérias,

miniaturas chinesas em terracota,

uma espineta húngara.

Sua verdadeira obsessão:

cachimbos italianos do século XVIII,

pela delicadeza dos entalhes,

composição cromática e a fálica ironia

dos formatos. É incontestável (diz ele,

entre colheradas de sopa de ervilha,

aromatizada pelo funcho dos Açores):

— Há corrupção nos governos do PT,

o que não houve nunca, nunca, jamais

na história deste país. Tudo isso

é obra dos Vermelhos, para solapar

as instituições. Veja o Lesbianismo

(por exemplo), o consumo de canabis,

os casamentos interraciais. A estranha

proliferação de corvos na Croácia

é resultado dos governos petistas;

a escassez do lúpulo nas Ilhas Seychelles;

as decapitações de infiéis na Síria

pelos mercenários islâmicos – tudo é culpa

do PT.  Faltou azeitona na minha empada;

as rosas crescem no canteiro dos lírios;

o monte Fuji se declarou em estado de greve

— tudo isso acontece por orientação

da Senhora Presidenta Búlgara,

do Peão Nove Dedos e do Foro de São Paulo.

O que fazer — regurgita o ignívomo —

para deter a sanha insana dos bolivarianos?

(Haveria aqui lugar para a irremissível

conjuração conspiratória, não fosse a hora

ruminante dos aspargos, o precioso instante

para um cálice de Artemisia absinthium,

esses pequenos prazeres singelos

ainda não abolidos pelo petismo-bolchevismo).

 

2014

 

 

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ANTIMÍDIA X

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Quelle est ma langue?

Ionesco
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GRUNHE repetindo-se repetindo-se rasura ou réplica de réptil fardos que são palavras farpas de um animal samsárico (repetindo-se repetindo-se) fanhos replicantes repousada em úmeros: caveira neanderthal cor de prata sobre fundo negro (ganchos guinchos repetindo-se) horror social belphagor iniquidade: todo um catálogo de demônios repetindo-se balam belial asmodeus astaroth bicos-de-papagaio encurvados lascas de madeira na boca repicadas repicantes sobre fundo negro letras rúnicas inscritas no crânio antiesfíngicas ruminando cólera astarté ruminando Deutschland über alles / Über alles in der Welt barão neoliberal bebe urina com os ratos na hora da gárgula na hora vermelha da gárgula na hora do maçarico quando garotos racistas de São Paulo ateiam fogo na mendiga refugos de rastilhos de rebotalhos neste açougue onde repartem carne humana Tíbias são dejetos olhos são dejetos orelhas são dejetos nesta terra de ninguém que a terra há de comer Caso esfiapasse essa pele caso esfiapasse se não fosse hidra se não fosse ira se não fosse asco se não fossem imponderáveis urros no arame da pobre diaba arpejo de pupila em seu desnudamento de planta em seu desnudamento de carne estirada em ganchos balam belial asmodeus astaroth todo um catálogo de demônios repetindo-se em guaches em guantes Tudo queima ela disse Lucidez nenhuma que os dissuadisse nesta terra de ninguém que a terra há de comer.

 

2014

 

 

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(Poemas que fazem parte da plaquete inédita CADERNOS BESTIAIS, a sair em 2015.)

 

 

 

 

 

 

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Claudio Daniel é poeta, doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, colunista da revista Cult e editor da revista Zunái. Publicou, entre outros livros de poesia, Figuras metálicas, Fera bifronte e Cores para cegos.

 




Comentários (1 comentário)

  1. FEDERICO SPOLIANSKY, qué bello todo!!!!
    6 janeiro, 2015 as 0:48

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