BOULEZPERMANECE


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Pierre Boulez foi e é importantíssimo para a criação da nova música que emergiu a partir da  segunda metade do século passado. Suas composições, assim como seus artigos críticos sobre a Segunda Escola de Viena, com foco especial em Webern, nos anos de 1950,  bem como a ousada síntese dialética com que equacionou as inovações do grupo liderado por Schoenberg com as de Stravinski[1], antes vistos como antípodas, foram essenciais para a formação de uma nova consciência musical.

Ao longo dos anos, Boulez foi um obstinado incentivador da nova música, quer à frente de instituições como Domaine Musicale e Ircam (Institut de Recherche et Coordination Acoustique / Musique), redutos infatigáveis de experimentação permanente, quer através de suas performances como regente, de fato de anti–regente, voltado estrategicamante à prática da tradução criativa (transcriAção, não só transcrição) de peças–chave da formação da música moderna. A dedicação com que se empenhou nessas atividades, generosas e radicais, em prol da escuta analítica e da reinvenção do trabalho de outros artistas, deu a muitos a impressão de esgotamento criativo. O mundo das artes não costuma privilegiar  o rigor compositivo, que é uma constante dos temperamentos críticos, à Mallarmé, como o de Boulez. Todavia, num arco de seis décadas, a sua obra, relativameante pequena, de “Sonatine” a “Repons”, passando por marcos definitivos como “Le Marteau Sans Maître”, “Sonatas para Piano”, “Livre por Cordes”, Pli selon Pli”, Dérives”, “Dialogue de l’Ombre Double“, “Messagesquisse”, revela–se de uma integridade rara, sem contar o que há de criativo nas transcriações que regeneraram nossa escuta, fazendo–nos ouvir “Jeux” de Debussy, ou a “Sagração” de Stravinski, ou tantas obras de Webern, Berg, Schoenberg, Varèse, como nunca as havíamos ouvido. “Le Marteau sans Maître” (1953-1955), em que pesem as restrições que possam ser feitas à falta de homologia do texto poético escolhido com as inovaçôes boulezianas, continua a ser uma das mais altas realizações musicais do Século XX. Além de sintetizar os avanços morfológicos da Escola de Viena com os introduzidos pelas células rítmicas stravinskianas, foi, como observou o próprio compositor, a primeira composição a manifestar, efetivamente, entre os músicos europeus, “a influência da cultura extraeuropéia”, ou mais explicitamente da música africana e asiática. Concebida para voz, flauta em sol, viola, violão, xilofone, vibrafone e percussões, criou  novas e belas constelações sonoras, fundindo estruturas de organização serialista com uma timbrística prismática, multiandamentos surpreendentes e grande diversidade rítmica. As suas obras subsequentes agudizaram a complexidade das suas perquirições musicais, mas jamais perderam a inquietação, o pulso e a pulsação, a disruptura ao mesmo tempo explosiva e organizada, o “artesanato furioso” e o “delírio de lucidez” que sempre caracterizaram o compositor.

Agora, é preciso dizer também que nem tudo o que ocorreu de relevante no desenvolvimento da música contemporânea passa necessariamente pela perspectiva operacional de Boulez. Assim, o universo de John Cage, que, depois do encontro feliz da nova timbrística do piano preparado com as sonoridades renovadoras das sonatas boulezianas, veio a se antagonizar com o do compositor francês, a partir das divergências sobre a introdução do acaso na composição, a ser controlado (Boulez) ou liberado (Cage) pelo compositor.

Assim também as novas vias reveladas com a tardia redescoberta (anos 1990) de intervenções individuais, circunstancialmente marginalizadas pela sua radicalidade, conjugada ao contexto social em que surgiram. É o caso das micropolirritmias do norte-americano Conlon Nancarrow, exilado de seu país natal por motivos políticos; suas composições chegaram a interessar a Boulez, mas com as reservas de que se tratava de um “approach” intuitivo, a que faltava maior consistência estrutural. Caso também da “música espectral” de Giacinto Scelsi, cujo temperamento arredio contribuiu para a marginalização de seu trabalho musical, mas cujas primeiras obras, conhecidas por Boulez, não foram bem recebidas por ele, aparentemente por restrições análogas às que fez a Nancarrow, com o qual mostrou maior afinidade. Caso ainda das práticas ultradissonantes, não ortodoxas, da vanguarda russa marginalizada pelo jdanovismo —em especial,  Galina Ustvólskaia, a quem Boulez parece não ter dado maior atenção, mas que interessou vivamente ao regente holandês Reinbert de Leeuw e seu Schoenberg Ensemble e que possivelmente influenciou, como Nancarrow, um compositor que Boulez aprecia, Giorgi Ligeti.

A indisposição que os músicos norte-americanos do círculo cageano — em particular Morton Feldman — e de críticos posteriores como Kyle Gann assumiram em relação a Boulez, estendida, por vezes, à música europeia, ou centroeuropeia,  como um todo, não resiste a qualquer exame isento de preconceitos. Apesar das objeções de ascendência cageana, e da justa valorização do acaso, à qual Boulez não ficou indiferente, a “composição musical” estruturada, com ou sem intervenção casual, é um anseio humano instintivo e o lema de Hoelderlin — “viver é defender uma forma” — adotado por Webern, não parece ter sido  abolido, por mais que o acaso persiga um lance de dados. Em suma, a música continua, por caminhos que não podem ser demarcados nem por Boulez nem por Cage. Mas Boulez permanece, e grande, por tudo o que fez pela renovação da música do nosso tempo. Como dizia Pound, “não exigir tudo de um só homem”.

Quando Boulez fez 70 anos, em 1995, Dante Pignatari, que  dirigia,  na Rádio Cultura-FM de São Paulo, um programa sobre música erudita, quis homenageá-lo e convidou o trio da poesia concreta, que havia conhecido o compositor francês, pessoalmente, em 1954, para falar a respeito dele, num especial dedicado a sua obra. A certa altura Haroldo propôs que Décio, ele e eu, lêssemos a sua tradução de “Un Coup de Dés” [Um Lance de Dados], o poema fundamental de Mallarmé. Com uma cópia dela, que passava de mão em mão, improvisamos uma leitura, que me pareceu resultar muito bem, tendo ao fundo a composicão de “Pli selon Pli”, que Dante colocou como trilha. Quando conhecemos Boulez,  em São Paulo, no apartamento do pintor Waldemar Cordeiro, depois de uma conferência que o compositor fez na Escola Livre de Música, de Koellreuter, perguntamos ao criador de “Le Marteau sans Maître”: — Há algum compositor que se tenha interessado por musicar o poema “Un Coup de Dés”, ele respondeu, lacônico: — Sim, eu”. Não chegou a fazê-lo, mas a composição “Pli selon Pli”, de título mallarmeano, iniciada em 1957, assinala o seu profundo envolvimento com a poética de Mallarmé e com a estruturação aleatória da obra,  sob o influxo dos manuscritos do livro livre que Jacques Scherer revelou em seu Le “Livre” de Mallarmé, então publicado. Por certo Boulez não quis competir com a musicalidade intrínseca do poema, quando recitado, conforme a sua própria teorização sobre a relação entre poesia e música no estudo “Son et Verbe” (1958). De todo modo ficou registrada, acaso por acaso, dobra por dobra, a homenagem do trio Noigandres ao poeta do “Coup de Dés” e ao compositor de “Pli selon Pli”. E como “tudo existe para acabar em… YouTube” —pelo menos o breve início da leitura pode ser ouvido naquele “site” onívoro, onde o colocou a sensibilidade de algum internauta solitário e solidário viajando em música pelos ciberespaços:
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[1] No auge do entusiasmo da “nova música”, no início da década de 1950, quando maior era a rejeição vanguardista à obra de Stravinski, reforçada pelo schoenberguismo ortodoxo de Theodor Wiesegrund Adorno, Boulez teve a ousadia de discordar e de defender a relevância da polirritmia na “Sagração da Primavera” e em outras obras do período russo stravinskiano, sustentando que, se os compositores da Segunda Escola de Viena haviam revolucionado a morfologia e a sintaxe musicais, Stravinski, por seu turno, revolucionara a dimensão rítmica (“Stravinsky Demeure” [Stravinski  Permanece], artigo publicado na revista Musique Russe, tome 1, Presses Universitaires de France, 1953.

 
Sobre a morte de Pierre Boulez, no Le Monde.

 

 

 

 

[Texto inédito que comporá o volume 2 do livro Música de Invenção, a ser lançado pela editora Perspectiva em 2016]

 

 
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Augusto de Campos nasceu em 1931. É poeta, advogado, tradutor, crítico e publicitário. Estreou em fevereiro de 1949 na Revista de Novíssimos e logo depois publica nas páginas daRevista Brasileira de Poesia, ligada ao clube de Poesia de São Paulo, da geração de 1945. Em 1951 edita por conta própria o livro O Rei Menos o Reino. No ano seguinte funda o Grupo Noigandres, com seu irmão Haroldo e o poeta Décio Pignatari . Participando do lançamento da revista Noigandres, publica no primeiro número os poemas “Ad Augustum per augusta” e o “Sol por natural”. Iniciou em 1953 a série “Poetamenos”, que seria publicada em 1955, no n.2 da revista Noigandres. Começa a publicar seus primeiros artigos teóricos em 1955, já em outubro cunhava para a nova poesia que surgia o termo poesia concreta. Em novembro vê seu “Poetamenos” ser oralizado pelo grupo Ars Nova, ao mesmo tempo que realizou conferência sobre as correspondências estéticas entre as novas artes que surgiam. Em 1956 inicia correspondência com e.e.cummings. Finaliza com Haroldo de Campos a tradução de 17 cantares de Pound e entrega para publicação 10 poemas de e.e.cummings. No final do ano ajuda a organizar a I Exposição Nacional de Arte Concreta, em São Paulo e em fevereiro do ano seguinte no Rio. Publica Noigandres n.3. Em 57 lança, como articulista do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, textos que seriam base do Plano Piloto para Poesia Concreta, lançado pelo grupo em 1958. Publica nesse ano Noigandres n.4. Em 1959 entra em contato com a poesia de Sousândrade, Em 1906 participa da realização da página Invenção no Correio Paulistano. Publica a tradução de cummings e de Ezra Pound. Publica em invenção estudos sobre Sousândrade. Nos anos 60 transfere sua atenção para a cultura de massa, em especial a música popular, publicando o Balanço da Bossa, em 1968. Em 1995 lançou com seu filho, o músico Cid Campos, o CD “poesia é risco” (Polygram). A performance criada a partir do CD, em parceria com Walter Silveira, já foi apresentada em diversos eventos, no Brasil e no Exterior. Nos últimos anos, Augusto de Campos vem se dedicando à feitura de poemas “verbovocovisuais” em mídia digital. Trabalhando com um computador Macintosh e programas de multimídia, desenvolve poemas novos, bem como releituras de obras anteriores, com recursos de som, animação e interatividade. Em 1996, participa da exposição Utopia como poeta do mês. Atualmente desenvolve um trabalho de poesia utilizando-se da linguagem do computador, exibindo-os via internet. Vive e trabalha em São Paulo.

 

 

 




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