Barrocidade


 

Por volta de 2006, o Frederico Barbosa me sugeriu ler Barrocidade, livro de poesias do Amador Ribeiro Neto – o livro é editado pela Landy, da coleção Alguidar, coordenada pelo próprio Fred . Recentemente, fiz amizade com o Amador pelo facebook; ele, assim como eu, divide seu tempo entre atividades acadêmicas e literatura. Amador é professor do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba; lá ele coordena o laboratório de estudos semióticos. Antenado com o futuro, organizou o livro Turbilhões do tempo – notas e anotações sobre poesia digital, lançado faz poucos meses.

Motivado pela nova amizade, reli Barrocidade. Quando leio poesias, tenho o costume de procurar pelos procedimentos linguísticos e literários mais recorrentes, buscando pelos estilos de cada poeta. Assim, eu consigo entender como cada um deles se vale da mesma língua para se expressar. Na poesia de Barrocidade, encontrei o uso recorrente de alguns processos discursivos:

(1) Amador gosta de fazer listas, muitos de seus poemas são coleções de palavras. Nesse processo, Amador está bem acompanhado: no cinema, as listas são o motor narrativo da maioria dos filmes de Peter Greenaway; na música popular brasileira, Lenine faz muitas listas em suas canções. Listas são campos semânticos, elas não são apenas sequências de palavras e coisas, elas são conjuntos organizados para fazer sentido. O poema “vade-mecum” é uma lista; Amador explicita isso ordenando suas palavras em ordem alfabética. Eis alguns fragmentos das 31 palavras da lista:
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asco
arrenegado
(…)
coxo
cujo
(…)
não-sei-que-diga
pé-de-cabra
(…)
tisnado

como o diabo

.
(2) Amador combina palavras com recorrência, dando forma a compostos nominais. Esse processo linguístico, tão comum ao sânscrito e às línguas germânicas, é um dos recursos preferidos pelo poeta para complexificar o significado de suas palavras. Eis dois exemplos disso nestes dois versos do poema “sampa revisitada”:
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cidade
velha aflições desconhecidanciã
(…)
desembaçada no centro
toda in na paulistaugustaconsa

.
(3) Nos poemas, há constantes diálogos com o repertório da música popular brasileira; para ilustrar, eis uma estrofe de “arribação”, em que Amador dialoga com Adoniran Barbosa:
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(…)
lagoa tapada atrás duns versos açuns dispersos grandes
movimentos adonirançando malocas saudades
ah aquele cruzamento da canção
pode

.
(4) Quando se refere a religiões, Amador prefere as afro-brasileiras, como a Umbanda ou o Candomblé. O poema “pomba”, entre seus temas, também é invocação da Pomba-Gira, em que ela substitui o Espírito Santo cristão, revelando-se acima dele:
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cães são sempre cães vadios
mães são sempre mulheres santas de nossos pais
espírito santo
quase sempre é pomba
sempre funciona pomba
gira

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(5) Nos poemas, ocorrem diálogos constantes com o modernismo brasileiro na vertente proposta por Oswald de Andrade. Em “klaxon”, além da composição por sílabas sugerindo onomatopeias de buzinas no último verso, há a referência do título à famosa revista modernista:
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som tevê enrosca o mesmo som
imagem tevê engasga mesmo som

tom tevê engalha mesmo cedê rom
por estas & mais aquelas é que é de bom tom

com som can tem com tem tem são tam bém tom bem sem som

.
(6) Amador não se esquece da poesia social, bastante exercida no Brasil pelos poetas que se posicionam contra o fascismo da burguesia nacional. Eis o poema “falta água e falta”, no qual Amador protesta tanto contra realidades hostis vividas no campo, como as secas, quanto contra injustiças sociais da cidade, como as das periferias suburbanas:
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falta água e falta
água tens e não tens
os surfistas de são miguel paulista quebram ondas
nos tetos dos trens
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(7) Por fim, Amador recorre, em seus versos, a variações linguísticas; eis os versos finais de “tabuleiro”:
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(…)
quer tomar
caju

ah é né
pois tome hôme

troncho
tome-tome & some &

adispoi
num vá dizê

ô

ie
.

Engenhosamente, Amador se vale de processos próprios das vanguardas, como as palavras valises da composição nominal, mas também de variações linguísticas, mais próximas da literatura regional.

Diante das listas, compostos nominais e variantes linguísticas, vanguarda e regionalismo, diálogos com o modernismo e a MPB, invocações pagãs e protestos contra o fascismo, o que esperar da poesia de Amador Ribeiro Neto? O poema “descobrimento”, poema manifesto de sua poética pessoal, responde muito bem a essa questão:
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descobrimento

guarda-roupa da história com h e neocapitais
fantasias teias telas cabos teles naves tels veias nets poeiras
sertão vip varandas antenadas na copa dos revistas in
morenos pretos brancos amarelos seixos
farolizando macaxeiras pra matar fome com farinha de mandioca
história música cidades crenças ourivesarias artesanatos contrabandos
oceanos sertões caviares ouropéis rapaduras campos descompassos
guarda-fantasias guarda-enredos guarda-estruturas guarda-sons
que são
frente às descobertas da poesia hein cabral

.
Além de expressar todos os processos discursivos determinados antes, o poema aponta para a função que Amador dá a todos eles em sua proposta poética. Para desenvolver isso, antes de tudo, é preciso esclarecer a qual regionalismo Amador Ribeiro se alia.

O regionalismo é plurívoco: (1) há poetas como o Amador, que olham para o futuro, buscando por outros territórios brasileiros, entre eles, territórios discursivos, como aqueles que a língua portuguesa e os discursos deveriam cuidar de ocupar – por exemplo, os espaços das comunicações de massa; (2) há nacionalistas ingênuos, confusos, e, comumente, bastante reacionários, que buscam em estereótipos folclóricos a verdadeira cultura brasileira. Entre os primeiros, estão aqueles que internacionalizam o Brasil – Hermeto Pascoal, Airto Moreira e Nana Vasconcelos fizeram isso tocando panelas; entre os segundos, há aqueles que apoiam ditaduras e golpes de estado. Essa seria a diferença entre Chico Science e Ariano Suassuna – Amador, com certeza, está do lado do músico.

Em suas listas, o Brasil insere-se no mundo; sua linguagem, predominantemente nominal, ocupa o mundo da comunicação, demarcando campos semânticos nos quais o Brasil ecoa no mundo através da palavra, “frente às descobertas da poesia”. Vale a pena, para confirmar essa poética, verificar a conciliação entre o mundial e o regional em dois poemas exemplares dos pontos de vista do Amador: (1) “pulso”, em que o Brasil se expande via mundos virtuais, mas mantém sua própria voz; (2) “pífaros de caruaru”, em que a música regional brasileira ressoa na poesia de vanguarda, inaugurada com o modernismo:

 

pulso

o dormir o
excaféin

o microcomputador o
meu com tantinternet

a proesia lixa o
estrala foices

&
deleta a falsivivacidade sem-terra da razão

o brother o
mermãozinho do caralho tá fodaço pra caralho sô

.

pífaros de caruaru

um som i um som u
flauta apita no atabaque das consoantes
fica soando fino um u ínfimo último
sinal ambulância caixinha sirene antimusical

a menina de treze anos e vai evém
a bolsa d’ água arrebenta marginal do tietê
enchente
congestionamento 84 quilômetros outdoor
o cordão ensanguentado estira-se
ao longo ao pleno ao vago ao cheio

um som i um som u apagando-se
ou gregório ou oswald ou cássia eller
chega
pagu

.
Gostaria, ainda, de enfatizar mais dois temas da poesia do Amador Ribeiro Neto: as drogas e o homo erotismo, ambos bastante eufóricos. Em “sequência de cinema”, no lugar de rebeldia dos militantes – sempre benvinda –, a larica revela, com humor, o desleixo com o apartamento:


sequência de cinema

o fiteiro faz filme com acende a seda do fumo
cada bargana cada beck cada uma muamba dá
dois três sabe-se lá quantos quantas bolas & depois bofes

geladeira abaixo dispensa abaixo
enlatados embutidos doces em calda abaixo
espaguetes ao ponto com molho de salmões
só escapa abaixo o bacalhau dependurado
em vez de detergentes e perfumadores
o apé precisa de um supermercado completo

.
Em “namorados”, o sexo homoerótico participa da utopia gay em que todos são felizes, o dia dos namorados se eterniza no hedonismo – “amanhã vai ser outro dia 12” –. Além disso, a comparação do falo com os edifícios – “paus em pé empire eucaliptos perigo pegar” – é bem legal!
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namorados

arte pia válida cozinha walita
o nome corvo café feijão carne de sol arrumadinho & bolo de
senão por que maria cream fox freezer pano de chão postmodern platos
onda waffers mornomorango
cobertura tom
ele toparará a piscina chantilly
disco rígido faz baby filme mambrana lembrança
margarina gasalina funciona-se
yes he does ele encara
chama o cara
chama o cara
ele quero ser ele vaco profana virginando madona santa stone
berrando sozinho fudidinho
lindos negros tintos o
lhos de mãe menininha do
gato que ele assanha
arranha apanha barganha
&
geme no sim sem sim com
telhada na tua pele vermelha
fogueirardor
em cima de evém evém evém
cu é o cazzo cu é o céu
cada vez mais pra além de tudo
&
a porra deite cheire faz suar
ô meu nossa que deuslícias
de
paus em pé empire eucaliptos perigo pegar
pra now dear
evém evém vindo vindo vindo
balança
amanhã
vai
ser
outro
dia
12

.
Por fim, resta comentar, mesmo que brevemente, a segunda parte de Barrocidade. Barrocidade é divido ao meio pelo poema visual “sem sem sem com” – todos os poemas citados anteriormente pertencem à primeira parte –. Além da divisão por meio do poema visual, os títulos de todos os poemas da segunda parte são nomes de poetas, músicos, outros artistas, revelando, por meio das homenagens, as influências do poeta.

Comentar essa segunda parte, porém, é tema para outras postagens.

Na próxima postagem, vou falar da poesia da Andreia Carvalho Gavita.

 

 

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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olharAnálise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicaçõesAnálise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SMIrmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto fogePalavra quase muroConcretos e delirantesOs tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com




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