Babilônia em Sampa


 

De Babilônia e outros poemas – RUY ESPINHEIRA FILHO
Patuá, 2017.

 

BABILÔNIA

Ontem não vi você em Babilônia
Num fragmento de argila, em escrita cuneiforme,

cerca de 3.000 anos a.C.

Ao saber da notícia, revivi
aquela noite funda em que escrevi
(afogava-me um pântano de insônia):

Ontem não vi você em Babilônia.

Só o que restou de tudo: um fragmento
de tabuinha que escapou do vento
do Tempo. Sob o pó, pulsando, a insônia:

Ontem não vi você em Babilônia.

Foi a última vez que lhe escrevi
e nenhuma resposta recebi.
Ainda respiro o que chorei na insônia:

Ontem não vi você em Babilônia.

Os arqueólogos me decifraram
e, milênios além, se emocionaram,
por ser só amor e dor a voz da insônia:

Ontem não vi você em Babilônia.

Era o bastante. O Tempo na tabuinha
quase tudo apagou da história minha,
porém deixou o essencial da insônia:

Ontem não vi você em Babilônia.

E assim contam-se vida e seus escombros
que um dia se partiram nos meus ombros.
E na alma, desde então, só noite e insônia:

Ontem não vi você em Babilônia.

 

.
SONETO DO AMIGO MORTO

a Mário Vieira da Silva,
in memoriam.

Abre o vinho e nos serve, o amigo morto,
e brindamos com doce alma de Porto.
Rico de vinhos, sempre, o amigo morto:
da Argentina, do Chile, França e Porto.

Tão jovem que ele está!… Bebo do Porto,
fitando com ternura o amigo morto.
Corado, alegre, o claro amigo morto
presta homenagens às marés do Porto.

Um cálice, e outro, e outro… O amigo morto
segue em viagem aos portos que há no Porto.
Tão bem vai navegando, o amigo morto,

que sorrio, admirando-o porto a porto,
perguntando-me, à luz da alma do Porto,
se acaso não sou eu o amigo morto…

.
VIZINHANÇA

Nesta manhã o vento faz dançar as folhas
e os galhos,
mas firme e tranquila continua a casa
do joão-de-barro,
recentemente inaugurada
sobre uma trave alta de poste de iluminação,
acima da cobertura da lâmpada
(para não haver perturbação da noite),
com vista para o campo verde
e o mar azul.

Mora melhor do que eu
o casal das alturas,
sem as taxas, cada vez mais facinorosas,
de água, luz, condomínio,
telefone, TV,
entre outras. E,
especialmente melhor,
sem problema de espaço para a
biblioteca.

Há dias vi os dois em plena construção,
colhendo barro no jardim,
esvoaçando
numa alegria de casa nova
e lua-de-mel.

Claro que em breve haverá pequeninos
rompendo cascas,
exigindo alimento,
abrindo asas para a vida…

Sim, estou feliz
tendo esses belos vizinhos.

E, confesso,
com certa inveja deles,
que não só moram como se lançam à vida
melhor do que eu…

.
CANÇÃO DAS PERDAS

Sim, essas perdas só perdas serão
quando não mais pulsar o coração.

Quando parar, então perda nenhuma:
perdido, não terei mais perda alguma.

Assim, enquanto arder o coração
as perdas nele sempre viverão.

O Mundo, de mistérios poderosos,
revelou-me a Verdade – e aprend

que, enquanto vivo, os anjos invejosos
não levarão de mim Annabel Lee.

 

 

 

 




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