Assim você me mata


 

Eu cresci ouvindo Eli Corrêa. Minha mãe e meu pai trabalhavam em um mercadinho e nos deixavam com a Dona Cida, um amor de pessoa que ouvia as músicas da Kátia enquanto mancava entre a limpeza da casa e as pilhas de roupas a passar. “Ai que saudade de você!” era a trilha sonora. Eu não conseguia desgrudar a atenção dos casos contados por Eli Corrêa. O radialista ia se alternando na interpretação de todas as vozes da trama, ia ficando aflito e aflito até que alguém morria e ele narrava o final da carta assim, todo triste, todo com saudade. Em seguida, tocava uma do Amado Batista. Aquelas cartas fazem parte da pré-história de meus contatos com as histórias. Com o tempo comecei a imitar o locutor. Pegava um gravador de fitas cassete do meu pai e narrava também meus enredos fatais, inventando minhas canções. Assim fiquei com o Brega encarnado em mim, ainda sem saber. Um dia abri o bilhete enviado por Deus: querido você é drama, você é Brega, assuma o que é seu; siga seu caminho sem se importar com as jacas que possam lhe servir de pantufas.

Eu não vou gastar o seu tempo discutindo o sexo dos golfinhos. Dar definições concretas e fechadas sobre o que é o Brega é tão difícil quanto responder de onde viemos e para onde vamos. O Brega é mutação. Como toda palavra, abriga disputas ideológicas, podendo habitar os terrenos pedregosos do preconceito, mas, também, abarcar com riqueza e propriedade o que há de mais marcante na nossa cultura popular.

O Brega é uma estética sem medo de acetinados e cores vibrantes, de gritos e rendas, onde o amor é regado a perfume que não sai na lavagem de máquina. A heroína usa veludo furta-cor, colecionadora de bibelôs, carrega no rímel para direcionar os olhos e evidenciar as lágrimas. No pescoço, traz pérolas de plástico — todo colar é para ser arrebentado. O herói é o boêmio, o cafajeste sem culpa que, assim como o Brega, tem certo charme blasé, não liga muito para o que falam dele, sorri por trás dos óculos escuros de armação dourada. Todo Brega é um pouco tragédia coberta de melodrama. Há um humor de pierrô vestido de arlequim. Mas no fundo, todo Brega é um bufão, expõe uma sociedade que faz pose, mas que defeca e sofre porque ama e quer ser amada, porque tem manias e coloca variações de pinguins sobre as geladeiras.

O Pop, o Chic e o Cult de hoje podem ser o Brega de amanhã. O Pop vira Brega depois de beber demais, depois de perceber que enquanto ganhava rios de dinheiro, seu amor foi embora deixando um par de cornos. O Chic vira Brega quando resolve economizar e abrir mão de tomar banho com água mineral. O Cult é o Brega teorizado. E ainda tem gente que diz: o Brega como arte é Kitsch — eu diria que é quando ele custa caro, tem rico querendo pegar o brega para si, mas não tem jeito, o Brega nasceu numa bem dada no quartinho da empregada.

A filosofia do brega brota da conversa de bar. É a melhor representação desse povo miscigenado, que muda ao sabor do verão. O Brega é mistura, antropofagia. O Brega é líquido. A prova dessa liquidez são os contos aqui reunidos. Alguns dos autores desafiados por mim homenagearam todo esse universo já conhecido do Brega; outros vagaram por caminhos inesperados e curiosos. Tentei organizar a ordem dos textos pensando nesses caminhos e, mais do que isso, almejando que o livro como um todo contasse uma só história. Entre a homenagem e a quebra, você tem aqui uma amostra de que o Brega é muito mais do que eu poderia tentar dizer, você tentar imaginar e, acima de tudo, ele pode ser fonte inspiradora para ótima literatura.

 

 

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TÍTULO: Assim você me mata

ORGANIZAÇÃO: Claudio Brites (org.)

ISBN: 9788562370588

IDIOMA: Português

EDIÇÃO: 1

ANO DE EDIÇÃO: 2012

PÁGINAS: 204

FORMATO: 14×21 cm

GÊNERO: Literatura Brasileira – Contos

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AUTORES: Adrienne Myrtes, Alessandro Garcia, André de Leones, Caio Silveira Ramos, Daniel Lopes, Eric Novello, João Anzanello Carrascoza, Kizzy Ysatis, Luciana Miranda Penna, Marcelino Freire, Marcelo Maluf, Natércia Pontes, Pedro Salgueiro, Petê Rissatti, Plinio Camilo, Reynaldo Bessa, Ricardo Delfin, Santana Filho, Valério Oliveira, Xico Sá.

 

Sobre  livro na CBN: http://cbn.globoradio.globo.com/programas/show-da-noticia/2012/12/16/LIVRO-ASSIM-VOCE-ME-MATA-REUNE-CONTOS-INSPIRADOS-NO-UNIVERSO-BREGA.htm

 

 

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Claudio Brites é editor da Terracota, além de trabalhar como freelancer para outras editoras. Formado em Letras, Mestre em Linguística, atualmente cursa Psicologia. Como escritor, já publicou textos esparsos e organizou algumas coletâneas, entre elas Cartas do fim do mundo (ao lado de Nelson de Oliveira), que contou com a participação de Márcio Souza, Menalton Braff, Moacyr Scliar, Raimundo Carrero, entre outros. Em 2010, publicou um romance em coautoria, A Tríade. Seu romance, Talvez, foi contemplado pelo Programa de Ação Cultural — ProAC 2011 — da Secretaria Estadual de Cultura e está no prelo. Twitter: @claudiobrites.




Comentários (3 comentários)

  1. Fernando Rocha, Em princípio, eu homem da famigerada pós-modernidade, quase caí no equívoco da definição: este é brega, este não… mas ao terminar de ler a obra, percebi que o brega é onipresente literariamente, pois para escrever é preciso estar sensível, e quer coisa mais brega do que dar vazão à sensibilidade neste mundo tão embrutecido. Dos contos que integram a coletânea, destaco “A solidão do carrasco”, de Daniel Lopes, o sentimento religioso, o peso da tradição de um cidadão de um vilarejo, o orgulho do filho, itens que fazem parte de um enredo poderoso.
    20 dezembro, 2012 as 11:20
  2. Olivia Cruz, Li, me diverti e amei. Quanta gente intressante encontrei. Da malícia ingênua de Paula Klee (Paula Klee), à paixão desesperada de Belinha (O Beijinho), o amor aloucado do mestre (Nóbrega), a anã bedel maluquete…revezei humor, deboche e sensibilidade. E ainda descobri ‘Sobre como Frederico perdeu os Sapatos’. Mais do que recomendo.
    20 dezembro, 2012 as 12:27
  3. Julio Gouveia, Feliz seleção de textos que – modo geral – sao de muita qualidade.
    21 dezembro, 2012 as 8:10

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