Arthur Azevedo: relegado


………………..Arthur Azevedo: extraordinário, mas relegado

 

Digo e reitero : a meu juízo, Arthur Azevedo foi um dos melhores contistas  da literatura brasileira de todos os tempos.

Não obstante receber críticas – postumamente, é bom frisar: jamais em sua época —  a  obra de Arthur Azevedo ostenta, segundo eminentes estudiosos, importante papel na formação da literatura brasileira. Edgar Cavalheiro, por exemplo, sentencia  ser  “inegável, porém, que, no ramo que escolheu e cultivou com tanta graça e espírito, ele foi um mestre. Numa terra e numa época em que, no setor da literatura, era de bom tom apresentar-se envolto em roupagens severas ou dramáticas, Arthur de Azevedo escreveu páginas que são pequenos primores de jocosidade. Pintor repentista das pequenas comédias da burguesia brasileira dos fins do Império e inícios da República, nenhum outro o sobrepujou na arte de fixar o aspecto ridículo da vida íntima da sociedade de então, principalmente a de certos círculos da classe média do Rio de Janeiro(…) Era malicioso,mas não sarcástico. Sua ironia não tenciona ferir; apenas provocar o riso, um riso franco, amável, bonacheirão”. Herman Lima ,por sua vez, observa que “digna de nota especial é a contribuição de Arthur Azevedo ao nosso conto do começo do século,tão importante quanto a sua produção teatral diversa e vasta. Duma linguagem simples e correntia,numa forma despretensiosa a que não falta entretanto aquela graça imanente que faz de alguns de seus versos humorísticos verdadeiras obras-primas, o que mais distingue a arte de Arthur Azevedo nos contos é,de par com seu dom de narrador, a exceção que constitui o seu estilo desataviado,num tempo de prosa atormentadae carregada de ‘oropéis’”. Humberto de Campos sustentava que em Arthur Azevedo “o não- preciosismo da forma,o aparente descaso pela elevação do assunto ,sem o valor definitivo das altas categorias literárias, fazia dele um amável divulgador  de estórias , casos e situações e um gracioso retratista da vida de uma sociedade”; e no prefácio à edição de Contos cariocas de Arthur Azevedo (1928) registra “(…) foi o contista mais popular de sua época, e é,da sua geração, aquele que ainda hoje é recordado com simpatia mais funda e admiração mais espontânea … essa despreocupação valeu-lhe a glória que ninguém lhe contestou ou contestará,de tr sido o fixador amável do Rio de Janeiro,no seu período de transição, i. e. no período que registrou a grandeza e a queda da rua do Ouvidor”.

Afinal, a enorme popularidade de que gozou à sua época – tempo em que predominavam no panorama literário brasileiro figuras como Machado de Assis, Coelho Neto, Raul Pompéia, seu irmão Aluisio Azevedo, a ponto inclusive de seus contos serem até mais lidos do que os de Machado, na década final do século XIX e no início do século XX, e lidos pelas diversas classes sociais, etárias e genéricas, por homens e mulheres indistintamente — tudo isso exige por certo  talento e qualidade , no caso de Azevedo em tipo e forma  muito peculiares,muito característicos, muito especiais ,que não pode ser imputado apenas a circunstâncias de momento (sic) ou a ‘meras narrativas de cunho popularesco’ – com teor pejorativo — quase como anedotas ou ‘causos’ engraçados, ou apenas porque retratavam pessoas comuns, o habitante e o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro, a linguagem das ruas, os caprichos e as vaidades, também as frustrações, as desditas,as contradições da sociedade carioca,por extensão a brasileira, daquele período importante da história nacional ,de transição institucional,política,econômica e social, e de implantação de um novo regime de governo.

Não, Arthur Azevedo – apesar de considerado (pos-mortem )  um autor “superficial”,  “fútil”, e até mesmo “vulgar —  foi muito mais do que um prosaico contador de estórias e histórias, foi um documentarista muito específico do tempo em que viveu. Há na obra de Azevedo um conteúdo de crítica social muito intenso – notoriamente  quanto à escravidão ,assim como,aqui e ali, manifestações de cunho político. Seus textos revelam um arguto observador da vida social, um perspicaz comentarista de comportamentos e sentimentos humanos, um atilado crítico moralista –  existe uma moralidade intrínseca em cada um deles, no retratar a seu modo as comédias e tragédias, os dramas e o burlesco  dos homens não apenas de sua época mas de todas elas; seus protagonistas e personagens são  ‘criaturas de carne e osso’ com que nos deparamos cotidianamente nas ruas de qualquer  meio urbano , criaturas humanas com seus impulsos e bloqueios, seus sentimentos e emoções, suas imperfeições e contradições, suas idiossincrasias e dissimulações, seus defeitos e virtudes.

Azevedo pressentiu e colocou em seus escritos, quer contísticos quer teatrais quer croniquescos, as incisivas transformações pelas quais passava a sociedade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX — transformações políticas, econômicas, urbanas, manifestas inclusive nos comportamentos sociais e na própria literatura, na qual a ‘ideologia’ romântica, característica do Romantismo expresso sobretudo por Macedo e Alencar , dava sinais de esgotamento , o eixo da vida social e mesmo conjugal deslocando-se para fora do lar, a rua tornando-se o ambiente primordial da narrativa e da temática quer ficcional quer não-ficcional. Tais mutações foram exemplarmente entrevistas e assimiladas por ele em suas peças, suas crônicas e especificamente em seus contos, impondo em todos os textos, em maior ou menor grau, a transformação da perspectiva romântica em realista – no caso de Azevedo, condimentada esta por irresistíveis doses de humor, ironia e sátira.

Arthur Azevedo constituiu-se no tradutor perfeito de uma cidade não apenas em acelerada transformação, mas em vertiginosa ebulição. Suas narrativas captam e retratam o ambiente social da cidade exatamente na passagem do Império para a República, descrevendo as reações à Abolição, as polêmicas inerentes ao novo regime,a vida do funcionalismo público, o clima cultural, etc. via de regra por meio de protagonistas e personagens caricaturais, per se uma galeria formidável  em sua contística.E tem ele no leitor um interlocutor que também freqüenta as ruas e conhece o cenário, as ocorrências, os personagens, os enredos – e dessa interação origina-se, nasce, forma-se, consolida-se e sedimenta-se sua obra. Nela, o habitante da cidade é retratado em toda sua dimensão humana, inclusive em sua perplexidade e confusão ante os novos tempos e espaços que se abrem e se transmutam, ante as novas relações sociais e comportamentais que se estabelecem com a República. Os textos ficcionais e não-ficcionais de Arthur Azevedo na verdade constituem um significativo painel da própria sociedade brasileira de seu tempo, envolvendo diversos gêneros e criando novas possibilidades de criação literária, como contos e crônicas dramáticas, teatro em verso e prosa, contos em versos ; forneceu a matriz para uma espécie de contística carioca , pois a caracterização dos personagens é sempre de forma a construir o perfil do habitante e da cidade . Seus contos são considerados os introdutores das classes médias na literatura nacional, a oralidade com  papel preponderante nas narrativas — todos seus escritos, a rigor, se aproximam da representação de uma comédia, muitos  são piadas transcritas (“Sou um contador de histórias e tenho que inventar um conto por semana”). Tudo o que se passava nas ruas ou nas casas lhe forneceu assunto para as histórias.

Em seus escritos, desprovidos de maiores elaborações e floreios de linguagem,  longe de divagações metafísicas ou filosóficas,  emergem a graça e o riso a retratar mais do que as incongruências da sociedade(a brasileira, do entre-séculos), mais do que as contradições e ambigüidades do ser humano(o habitante do Rio de Janeiro),a própria efemeridade do mundo e da vida, o grotesco de comportamentos, ações  e sentimentos,o alegórico das relações sociais e pessoais. Mercê dos expedientes de humor, do anedótico, da comicidade, abordava os mais delicados assuntos das relações humanas sem infligir as chamadas regras do bom senso,sem escandalizar nem ferir susceptibilidades, sem melindrar os leitores de suas crônicas,poemas e contos ou os espectadores de seu teatro.

Talvez muito da crítica – ou descaso – com relação à obra de Arthur Azevedo e à sua qualificação como autor resida, no terreno social-comportamental, parte em sua imagem de ‘iconoclasta’ (no sentido de quem ‘ataca crenças estabelecidas ou instituições  ou que é contra certas tradições’) e  de  boêmio – embora integrado àquela “boemia literária”, criativa e produtiva, de que faziam parte, por exemplo, Coelho Neto, Olavo Bilac, Valentim Magalhães, Emilio de Menezes, Elísio de Carvalho;  parte, no terreno da política, a seu exacerbado florianismo de admiração e defesa incondicionais de Floriano Peixoto – tido como despótico e combatido por praticamente todos os intelectuais da época, alguns como Olavo Bilac e Guimarães Passos – ele, Azevedo, antes um ativista abolicionista e republicano de primeira hora; parte, na seara literária propriamente dita, a  seu despojamento estilístico, ao não-‘aprofundamento’, falta de movimentação narrativa ou de multiplicidade de situações de enredo, à ‘não-seriedade’ de sua temática – e nisso um ledo equívoco de interpretação, porquanto, já mencionado, sua obra contística  (idem a teatral e a  poética) abriga acentuada crítica social, provocando  reflexão sobre a cidade do Rio de Janeiro e da  sociedade urbana brasileira do final do século XIX e início do século seguinte.

 

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Trechos do livro:

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argúcia e astúcia femininas


coincidência

Em 13 de março de 1891 o sr. Nóbrega, conceituado negociante da nossa praça, completou quarenta e sete anos de idade e foi passar o dia no Corcovado,levando em sua companhia, além da senhora e duas meninas, o Arthur Caldeira,um bonito rapaz de vinte e um anos, estudante da Escola Politécnica, filho de um bom freguês que o sr. Nóbrega tinha em Paracatu, no estado de Minas.

Rosália , a mais velha das meninas, contava apenas dezessete anos, e estava – sem que os pais o soubessern – apaixonada pelo estudante . Entendia este que o velho provérbio “Amor com amor se paga” era a fórmula mais avisada da justiça humana, e correspondia com ternura à delicada paixão da moça.

Essas inocentes manifestações duravam havia  já três meses, quando Arthur Caldeira recebeu — naturalmente por artes de Rosália — um convite para o passeio do Corcovado. Imenso foi o seu prazer, pois com certeza esse passeio lhe proporcionaria ocasião de entender-se categoricamente com ela.

Assim foi Depois do esplêndido almoço que a família Nóbrega levara de casa e foi alegremente devorado sub tegmine de frondosa figueira brava, o estudante afastou-se um pouco em companhia das meninas, e, sem se importar com a presença da mais nova, que tinha doze anos, fez a Rosália uma declaração em regra, jurando-lhe fidelidade eterna. Ela prestou juramento idêntico, e as mãos apertaram-se fortemente.

E para que esses protestos ficassem gravados de modo que resistissem à  ação destruidora do tempo, Arthur Caldeira armou-se de um canivete, e a pedido de Rosália, abriu a seguinte inscrição no tronco de um ipê, que fora a testemunha discreta e majestosa daquela cena de amor:

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ART. E ROS.
13-3-91

 

Durante todo esse tempo o sr. Nóbrega e sua esposa cochilavam debaixo da figueira.

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Na volta para a cidade, tanto o pai como a mãe notaram que Arthur e Rosália se namoravam abertamente.

Dona Rita, a esposa do s. Nóbrega, quis chamá-los à  ordem :

– Deixa-os lá, deixa-os lá ! ponderou o marido. Queira Deus que as bichas peguem !  Ele é um bom rapazinho, está ali está formado, e é filho de um homem sério e bastante rico. Onde poderemos encontrar melhor marido para a pequena ?

Dona Rita concordou com o marido –e quando, no largo do Machado, a família, que morava em Botafogo, se separou do estudante, que seguia para a cidade, a boa senhora instou com ele para “aparecer lá por casa”, ir jantar aos domingos, etc .

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Um mês depois, Arthur Caldeira era noivo de Rosália. O pedido fora feito pelo pai, que viera expressamente de Paracatu, trazido por uma carta do estudante pedindo o seu assentimento à suspirada união.

Marcado que foi o dia do casamento, começu para Arthur e Rosália essa deliciosa e risonha quadra do noivado, pensando na qual mais tarde os maridos com raras exceções se convencem de que realmente o melhor da festa é esperar por ela.

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Mas a desgraça não  quis que chegasse para Arthur Caldeira e Rosália Nóbrega o almejado dia da festa.

Em janeiro de 1892, muito pouco tempo antes da época fixada para o casamento, o pobre estudante foi fulminado pela febre amarela, que o matou em dois dias.

Rosália recebeu um golpe tão profundo, sentiu tanto, tanto, a morte do seu noivo, que adoeceu gravemente, e durante dois meses esteve entre a vida e morte. Mas os cuidados da ciência, e ainda mais a ciência dos cuidados, conseguiram vencer a enfermidade e restituir à existência aqueles dezoito anos primaveris e formosos.

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Nessa idade as grandes dores depressa se deixam absorver pelo espetáculo contínuo da vida, pela renovação incansável e vivificante das coisas… Um ano depois da sua quase  viuvez, Rosália parecia absolutamente consolada; voltavam-lhe as alegrias despreocupadas de outrora; já de novo se comprazia no convívio bulhento das amigas, e ria-se, com o riso sonoro e cristalino das moças.

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Não tardou que a imagem de Arthur Caldeira se desvanecesse de todo no seu espírito, e que a substituísse outra –a de um negociante jovem ainda e já bem colocado, que se chamava Artidoro de Lima.

O namoro progrediu com rapidez incrível –e revela dizer que tanto o sr. Nóbrega como dona Rita fizeram o possível para estimulá-lo .

— Deixemo – los, deixemo –los ! Queira Deus que as bichas peguem !  Ele é um excelente moço, e está muito bem encaminhado. Onde poderemos encontrar melhor marido para a pequena?

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As bichas pegaram.

O casamento foi marcado para outubro de 1893 :  realizar-se-ia no dia dos anos de Rosália.

Mas sobreveio a revolta de 6 de setembro, e a acordaram todos em esperar pelo restabelecimento  da paz.

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Entretanto, em princípios de 1894,  Artidoro de  Lima declarou ao seu futuro sogro que estava farto  de esperar pela terminação da revolta: o seu amor nada tinha que ver com a política. Rosália por seu  lado ardia em desejos de se casar.

À vista disso, apressaram-se os preparativos, e em fevereiro Artidoro e Rosália eram marido e  mulher.

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Quando, no mês seguinte, o governo preveniu à  população do Rio de Janeiro que ia entrar a esquadra legal e dar  e dar um combate decisivo aos revoltos que se achavam no porto, Rosália ficou  bastante contrariada, porque 0o dia do combate coincidia com o aniversário natalício de seu pai, e não  podiam festejar-lhe o meio centenário…

— Depois, acrescentava ela, que maçada ! é  preciso aprontar malas, sair da cidade…

— Não, não, não !  obtemperou Artidoro. Não te assustes, meu anjo; o combate, se o houver, o que duvido, não poderá durar mais de duas horas. Não é preciso irmos para muito longe; basta que subamos ao Corcovado.

Rosália estremeceu, e murmurou:

— Pois sim.

E no dia 13 foram para o Corcovado.

Rosália encheu-se de melancolia e azedume. Ela estava naturalmente animada pela esperança da felicidade conjugal, pelo sentimento, ainda novo, dos seus deveres de esposa, pela virtude persuasiva ensinada  pelo amor de mãos dadas ao dever; mas a lembrança do pobre Arthur Caldeira voltava agora ao seu espírito com uma insistência implacável.

Ela sentiu-se misteriosamente acusada de ingratidão, e lembrou-se de que, naquela mesma data, naquele mesmo sítio, havia apenas três anos, jurara fidelidade eterna a outro homem ; e, num desejo esquisito de castigar-se, foi procurar o saudoso ipê em cujo tronco o morto gravara uma inscrição indelével…

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Foi Artidoro  o  primeiro que descobriu  a inscrição.

– Olha, Rosália … vem cá … vê que coincidência ! E apontou:

 

ART. E ROS.
13-3-91

 

– Estiveram aqui, nesta mesma data há três anos, dois namorados que tinham os nossos nomes Este Art. deve ser Artidoro e esta Ros. Deve ser Rosália.

– Talvez não … pode ser … e Rosalina…

– Ora adeus! seja quem for, façamos nossa inscrição. Ainda somos namorados.

E tirando um canivete do bolso, com duas incisões profundas transformou 1891 em 1894.

Acabada essa operação, Artidoro ficou muito surpreendido ao ver que Rosália chorava copiosamente.

Nunca percebeu o  motivo dessas lágrimas. Atribuiu-as ao estado interessante em que ela se achava…

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E a artilharia, ao longe, saudava ruidosamente a  vitória da legalidade.

 

 

 

 

[Onde encontrar o livro: imã editorial]

 

 

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Mauro Rosso é ensaísta e escritor. Publica agora Arthur Azevedo: cenas da comédia humana — contos em claves temáticas [ImãEditorial]. E-mail: rosso.mauro@gmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. Carlos Trigueiro, Mauro Rosso acertou na mosca. Arthur Azevedo foi notável testemunha do seu tempo – o que qualifica os grandes escritores, segundo Ernesto Sábato -. Seu texto desprovido de floreios e divagações filosóficas, sem perder o brilho anedótico, retrata as ambiguidades e contradições mundanas. A obra de Arthur Azevedo está mesmo por merecer maior destaque na Literatura brasileira, mas, talvez, esse esquecimento inglório, tal como ele retratou sob variadas formas, também faça parte das contradições humanas.
    23 julho, 2012 as 12:55

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