Memórias nômades


Re(cor)dar, muitas vezes é o nó do agora – Memórias nômades no livro “Cabo Branco e outros lugares que não estão no mapa”

 

“O que ela me fez sofrer, o que ela me deu de prazer, / O que de mim ninguém tira/ Carne da palavra, carne do silêncio, / Minha paz e minha ira / Boca, tua boca, boca, tua boca, cala minha boca”. Esse trecho da música “Este amor”, de Caetano Veloso, composta e dedicada para sua ex-esposa Dedé Gadelha, nos apresenta o “AMOR” como um lugar de salvação, de porto. De alguma forma recordar tem muito do que dizem os versos acima. Por isso quero tê-los conectados a percepção do recordar, combustível, muitas vezes, implacável para movimentar as coisas do coração, até porque a origem da palavra recordar é “re-cordis”, que se traduzida ao pé da letra seria uma espécie de “voltar ao coração”. Nesse sentido, recordar pode também nos ofertar os mesmos efeitos da bela letra do filho de Santo Amaro, visto que recordar: nos “fazer sofrer”, “dar prazer”, é a “carne do silêncio”, promove a “paz”, mas também pode nos o incitar “ira” e até o calar da boca. Tudo isso pode ser acionado quando adentramos ao campo das reminiscências.

Os sentidos associados e as noções em torno do recordar são complexas. Contudo, tal noção traz em seu bojo a memória, que age na condição humana como a capacidade de evocar experiências, fatos, eventos bem como informações pretéritas. Para Platão, por exemplo, a recordação se constituía em um processo de acessar modelos de conhecimentos pré-existentes, por meio do diálogo e da reflexão. Já Aristóteles, a entendia como algo que está conectada à experiência e à associação de ideias, que intercambiadas pela memória desenvolviam a perícia de conter, feito uma represa, e, assim, lembrar-se de experiências com suas anterioridades. Desse modo, Aristóteles compreende que a recordação são quando todas essas ideias são despertadas em nossa mente. Na contemporaneidade, vale lembrar o que Maurice Merleau-Ponty e Jean-Paul Sartre, no debate da filosofia da mente e da filosofia da cognição, apontam que a recordação se abrasa diretamente com a consciência e a subjetividade.

Ainda na esteira do pensamento contemporâneo, destaco o livro “A memória, a história, o esquecimento”, de Paul Ricoeur, que nos conduz, de maneira detida, a  questões importantes que envolvem a memória/recordação. Nele Ricoeur, apresenta seu posicionamento em cinco partes importantes:  o espaço habitado; o tempo histórico; o testemunho; o arquivo e a prova documental. Nesse campo se inclui também as lembranças de lugares nos quais moramos, visitamos e, segundo esse filósofo, não podem ser desprezados, visto que acionam nossas memórias íntimas e/ou compartilhadas. São elas que tecem concomitantemente lembranças de uma espacialidade imediata, bem como as espacialidades de lugaridades distantes, mas que consegue apresentar trilhas habitáveis.

Apontando todas as reflexões acima, posso dizer que as lembranças do eu lírico em cada verso do livro “Cabo Branco e outros lugares que não estão no mapa” (Arribaçã, 2022) de Linaldo Guedes são tessituras que agem como uma espécie de taxonomia da memória e vai linkando, para alguns, um mosaico. Um alargamento das multi/pluri/espacialidades da nossa existência concreta e simbólica. Mais do que um “mapa”, vocábulo presente no subtítulo, estamos lendo uma cartografia, não em um sentido de plantas ou croquis. Todavia, estamos diante de uma cartografia de afetos de desejos, de afecções que invadem a carne corporal dos poemas e de quem os lê:

 

“sanhauá
sangra de paixão na paraíba

e a paraíba faz círculo em torno no sanhauá

-onde ecoa o assovio do tempo que se arrasta.”  ( sanhauá, p. 19)

 

Ou como em:

 

meus amigos guiaram ruas em itinerários
das acácias

alguns estão longe na retina
no sabor de jambo em paralelepípedos vermelhos
do jaguaribe

 

“No sabor de jambo em paralelepípedos vermelhos”! Nesse verso temos a memória associada ao paladar, associada a anamnese de infância. Por meio do “gosto” do “aroma” é capaz de mobilizar lembranças profundas, uma potencialidade inquirida via o degustar de uma experiência pretérita do eu lírico, mas que nas camadas sobrepostas, de lá até aqui no presente, ganham sua força poemática no inquérito da recordação. Ler esse verso, me fez lembrar Prost e sua Madeleine, que no clássico “Em Busca do Tempo Perdido” tornou-se um dos principais ícones da literatura para a memória, para ideia de recordação. O sabor do jambo, faz com que o eu poemático provoque um movimento “involuntário da memória”, dando um start na jornada memorialista da qual se embebe boa parte dos versos do poeta Linaldo Guedes nesse seu mais recente livro. O sabor do jambo evocado no verso é uma prova de que o tempo não fica completamente perdido, todavia ele pode ser reencontrado, recuperado pela memória. De alguma forma, o jambo age no poema como um portal. Vejo o jambo como uma moeda com duas faces. E no caso desse verso, a transcendência e a imanência são as faces do sabor que remete ao fantástico mundo presentificado no bairro do Jaguaribe.

Ainda pensando no “jambo” e seu “sabor” fomenta, no contexto particular de um poema para o contexto geral do livro, uma ferramenta que se firma como uma postura identitária. Já que por meio do sabor do jambo, à medida que ele revive memórias, ele não apenas recorda os amigos e o próprio evento de andar nas ruas do Jaguaribe, mas é uma espécie de um autoexame, “uma espécie de divã vérsico”. E a partir dele nos oferta a ideia de que a recordação/memória o ajuda entender a si mesmo, bem como a elaboração do seu eu ao longo do tempo.

Também é certo dizer que “no sabor de jambo em paralelepípedos vermelhos”, mesmo diante de tudo que expus até aqui, é a composição entre à fragilidade da realidade percebida. De modo, que nos aponta tanto a fluidez bem como a subjetiva dessa mesma realidade, visto que ela está sujeita as influências de nossas memórias, de nossas percepções ante as experiência humana.

A partir dessas ideias expostas, lembro versos do poeta Hildeberto Barbosa Filho: “ Quem habita o poema / perde-se na geografia. / Não existem fronteiras / no reino das palavras. / No reino das palavras / são múltiplos os acidentes. / Lugares não têm ponto fixo, / o tempo se dilata / e todo princípio é incerteza”. Tais aspectos são preponderantes em “ Cabo branco e outros lugares …” : 1) perde-se na geografia: 2) a falta de fronteiras, 3) os acidentes no caminhar da memória; 3) a falta de fixidez; 4) a dilatação do tempo e do espaço; e 5) a incerteza, todos relacionadas a não só a existência do eu lírico, mas da própria existência humana.

São demarcações de uma lavoura hodierna, elaborada por lembranças de uma infância que passou, de momentos cotidianos que já foram e não são mais. Olhar de um AQUI, que em segundos – seja na leitura ou na vida – já se torna passado. Daí o impasse entre “a história, a memória e o esquecimento”, do qual nos fala Paul Ricoeur.

Nesse sentido, faz jus destacar que a memória opera com um bisturi que corta, que promove seleções que ao mesmo tempo protege e nos expõe. Além disso, vale reforçar, que toda lembrança, de uma forma ou de outra, é também um ato “narrativoficcional” e, por que não?, também poético: “subo degraus no hotel globo / para decorar a cidade baixa / (ai,ai, ai …) / lá em baixo, o porto do capim/ acena e chora por mim” ( Arte déco, p.22 de Cabo Branco e outros lugares…).

A memória, a história, a lembrança e estrutura um modelo nomadismo: *) tal qual um balduíno e suas tendas; *) tal qual a diáspora nordestina – enfocada em alguns poemas; promovem movimentações, encadeamentos de passos que correm na fundamentação de trajetórias, de entras e saídas. Enxergamos um nomadismo que não pertence apenas às vozes evocadas nos poemas, mas também são nossas vozes que se misturam numa “playlist cartográfica”.

Trânsito. Tráfego. Emulam nos poemas de Linaldo Guedes. Boa parte deles são constituídos de movências. Instituídos de passos que seguem, ora reticentes, ora lentos-leves-livres-presos-encharcados-secos-lisos, em outros momentos um ponto de interrogação. E nesse conjunto, além das imagens remetidas a Cabo Branco, suas areias brancas e águas quentes o livro nos apresenta um sincretismo, não só religioso, como aponta o termo, mas também marcado pelo hibridismo entre: a) infância; b) adolescência; c) adultescência; f) ingenuidade/obscenidade/erotismo/amor. Todos esses elementos agem em forma de fricção, de porosidade. E no “entre” é a poesia que teima, que resiste, que recinte. “Trazem outros mares que jogam suas ondas em sua lida, como um pai beliscando uma agulha”, parafraseando o próprio Linaldo Guedes. Pois:

 

de um lado, o rumo do litoral
paisagens, areias, biquinis, belezas
e a certeza de que tudo é um mar
( de brisa)

de outro, rumo ao centro
buzinas, pedintes, assaltos, acinte
e certeza de que tudo é um mar
( de caos)
(Avenida Epitácio Pessoa, p. 23)

 

Ou como se pode compreender também no poema “ Cabo Branco e outros mares”, do qual indico os seguintes fragmentos:

 

trago medos da barreira de cabo branco
saudades de barracas e agueiros
meu pai beliscando uma agulha
o menino que corria nas areias do sol

trago a memória do sal de tambaú
e do impotente hotel, cartão postal da maresia
lembranças do mercado, dos bares, da lua
o menino lambendo os dedos afrodisíacos

trago a solidão escura de manaíra
e do descampado vazio de seu calçadão
cantigas do nada para pescadores da vida
cantigas de espumas nos pescados dos pratos
[…]  ( p.26)

 

É de teimosia a poética contida neste novo livro de Linaldo Guedes. É a poesia que teima, que lima/lixa/ranha/estica as imagens cruas, fortes e que impactam o leitor, como em: “Girassóis do Mangue”, “Ludicidade”, “Monólogo de um gentio”. O insólito também ergue-se, de uma profundeza que viceja no livro. “Foi quando passei da ponte do sanhauá / que vi restos da orelha de van gogh / (sangue no rio) / mangues de diálogos com zola / girassóis de caranguejos / meninos e as mãos. E a lama!”.  Os versos lançam mão da intertextualidade como uma forma de irromper a denúncia ante ao descaso e de como a arte pode ser uma arma para tanto, sem ser panfletária.

A intertextualidade também é uma modalidade da memória individual, visto que ela se constitui como uma maneira de promover interações. Mesmo que se pense que essa memória é algo reservadamente pessoal, isso não é verdade. O livro “ Cabo Branco…” demonstra que é uma confluência memorial de todos que tomem contato com a obra, mesmo que esses todos  nunca tenham visitado e estado nos mesmos lugares descritos pelo eu lírico. Contudo, sem dúvida alguma, o que vemos só enxergamos as construções figuradas pelas elaborações coletivas, culturais, sociais e históricas.

Outras interfaces confluem no interior do livro para um campo de analogias, de metonímias que remetem não só aos elementos artísticos dos poemas, faz referência ao FORA do poema. Uma marca preponderante na escrita de Linaldo, desde “Os zumbis também escutam blues e outros poemas”.

Além de todas essas características apontadas, chamo a atenção para os poemas das páginas pretas. Essas páginas pretas promovem uma outra dicção ao fluxo do livro. Coincidência ou não, os mesmos estão quase sempre figurados em números de páginas ímpares. São nove páginas que acoplam tais poemas, que ofertam ao leitor um tom mais ácido, mais críticos. Neles a ironia se eleva com mais potencialidade: “quando o brasil nasceu já havia outras tintas por essas árvores”; “quando o brasil aprendeu os versos já existiam”; “quando o brasil se libertou já havia outras cores escravizadas”; “ quando brasil rezou o milagre já tinha morrido”; “Pindorama”.

Como se observa, todos os títulos têm uma relação direta com a realidade histórica, social e cultural do Brasil, o que desenha para nós leitores uma parte do perfil formador da nossa sociedade.

Portanto, “Cabo Branco e outros lugares que não estão no mapa” é um livro de poema que se destaca com um “lugar” do aconchego da memória, que nos faz andar não só em um mapa da Paraíba, mas circular em uma cartografia que habita todos/as/es que toma contato com os versos de Linaldo Guedes. Além disso, seus poemas é uma estratégia interessante para pensarmos a complexa interação entre recordação, identidade, tempo, fragilidade da realidade e os possíveis insights profundo sobre a natureza da memória em nossas vidas e na sociedade de maneira geral.

 

 

 

 

 

Johniere Alves Ribeiro é doutor, professor, escritor, poeta e crítico literário. Paraibano, reside em Campina Grande.


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