Prato Frio


 

Contar uma boa história e movimentar a imaginação do leitor gerando a possibilidade de outras vidas é desapear do cavalo, mas seguir galopando com toda a velocidade: crina contra o vento, respiração e suor. Apenas fechando as pálpebras, sintam as fibras e os músculos se queimando.

No peso dessas páginas que tens nas mãos, tu serás pai e filho. Encontrarás o dilema de nosso país descrito com total precisão, o drama de conjugar o amor pleno com o simples direito de existir, de sobreviver.  Reynaldo Bessa, autor deste livro, está no hall daqueles grandes escritores que possuem a sensibilidade de absorver diferentes realidades e nos presentar desvelando cenas dos rincões mais interiores de nosso Brasil.

Adentres essa porta, essa narrativa, como se tu chegasses ao mundo, aos dourados das tardes sem pressa. Conhecerás a indomabilidade de Demétrius, o facho escancarado de Tereza, Índia movida de encantamento pela velha arara, o barulhinho da explosão dos insetos no lampião e essa luz que alumia tal qual saudade.  Reynaldo conseguiu criar um universo de personagens singulares, mas que ao mesmo tempo existem, são presentes, estão no dia a dia, nas paisagens que, desapercebidos, esquecemos de contemplar.

Estilo é algo que todo artista busca e das coisas mais complexas de se apropriar. Muitos tangem esse lugar, mas não chegam a produzir uma voz própria. Reynaldo tem estilo e sua voz potente não se reduz em florear sentenças, mas movimenta os sentidos, nos leva a ser para além do que somos. Isso é belo e aterrador. A verdadeira literatura reverbera no corpo e quando nos deparamos com construções assim

A estrada era toda uma existência”,

“Refiro-me mesmo aos tropeços da vida, a cair dos meus desígnios.”

ou ainda

“Hábitos difíceis de abandonar quando o espírito se molda na forma rotunda da obediência, na aspereza da subserviência de joelhos carcomidos, nos olhos para o chão dos pássaros sem voos, na timidez, na lida dura, na queda iminente. Estas, todas, filhas das privações, da ignorância, da miséria, da lama.”

é impossível ficar alheio, atravessa a pele, chega num lugar mais de dentro que até então desconhecíamos. Há um escritor em sua máxima potência entremeado nas palavras, nas questões fundamentais que permeiam nossos dias.  “Prato frio” está recheado do começo ao fim de momentos sublimes, é um exercício de humanidade.

Num mar de livros publicados todos os anos, este jamais ficará à deriva, salvará muitos afogados, tenho certeza. No escuro da noite, nos ajudará a cantar.

 

Tiago Fabris Rendelli, editor e escritor

 

***

 

“[…] Entrei ali como havia chegado ao mundo. E enquanto toda aquela água morna caía sobre minha cabeça, braços, pernas e pés, sentia que uma outra de mim escorria pelo ralo. Ia embora para morrer nas entranhas da terra. Eu não era mais Sula. Ficara uma outra. Agora eu era Índia. Lembrei-me, nesse momento, olhando para mim no espelho, que meu pai havia me dito que minha vó era índia. Disse ainda que eu tinha todos os traços dela: os olhos, o nariz, a cor da pele, os cabelos de graúna, a estatura, a voz, tudo, até o jeito de andar. Então, de alguma forma, eu a via em mim. Não, eu não a conheci. Meu pai disse que ela morreu quando ele era ainda um rapazote com uma baladeira no bolso. Mas eu sabia que era um pouco dela ali, da mesma forma que, algumas vezes, encontramos o sorriso de um pai ou de uma mãe no rosto de um dos filhos. Eu via o fogo do qual a minha pequena chama havia se desprendido. Via meu povo, minha aldeia, meu chão. Ouvia os estalos das fogueiras, os cantos lamentosos, doídos, palavras rilhadas numa oração de esperança e dor ao mesmo tempo. Via um rosto tomado de rugas iluminado pela lua. Tudo isso não me vinha como uma imagem. Não. Estava mais para um pesado manto sobre os meus ombros. Não como o peso de um fardo, mas sim, de uma responsabilidade, de um reconhecimento, de um encontro comigo mesma […]”

 

 

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Reynaldo Bessa é professor, músico, escritor e poeta. Em 2008 lançou seu primeiro livro Outros Barulhos – Poemas (Anome Livros) – (Prêmio Jabuti 2009). Pela Patuá, em 2011, publicou Algarobas Urbanas (contos).  Em 2013, lançou “Cisco no olho da memória – poemas” (Terracota), – Menção Honrosa no Prêmio Internacional da UBE-RJ – (Prêmio entre a comunidade lusófona) – 2014. Ainda em 2014, publicou o romance: Na última lona (Penalux). Pela mesma editora editou ainda: Do pássaro voando ao contrário – (poesia), “A noite além de escura” (contos), e Esta Vida Ou Outra Invenção (Poesia) – 2021. O autor tem poemas traduzidos para o inglês, espanhol, francês e grego. Escreve para sites, blogs e jornais de literatura e música.  O autor, lançou recentemente o seu segundo romance “Prato Frio”, (editora Urutau). Em 2024, lançará “Quando eu roubava cavalos”, crônicas, (editora Patuá).


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