Aleluia, Sylvio Back!


Por Rodrigo Fonseca

Dono de uma filmografia de fibra poética radical, sem parentelas evidentes em nossa tradição audiovisual, o diretor Sylvio Back, hoje um dos poetas mais ativos na construção de uma lírica erótica na literatura brasileira, acaba de ganhar o título de doutor honoris causa, concedido pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), uma das maiores do país. A titulação acadêmica é um gesto de reconhecimento ao legado do realizador de “Lance Maior” (1968) e de “Aleluia, Gretchen”, sensação no Festival de Chicago de 1976. Aos 82 anos, no auge de seu vigor criativo, ele tem a antologia de poemas “Silenciário” para lançar. Dela veio a joia abaixo, escrita num jorro pelo realizador dos preciosos “O Contestado – Restos mortais” (2010) e “Lost Zweig” (2003):

o porão

o que dizer de um porão
com três paredes se havia
uma claraboia baça e um
bordado de arame em arco
nada que anunciasse o fim
os ovos são cortados à faca
enquanto fundos de garrafa
açulam lábios e línguas e a
fumaça corrói os agasalhos
finos de uma estiagem tal
que sobe do lago vizinho
onde peixes boiam balofos
a retina atolada como se
visse a quarta parede ela
ficou no além-mar onde
estrelas tombam maceradas
pelo olvido asseio reluzente
os dedos da irmã recontam
o eco de saltos pés passos
na esperança que o sono
devolva o verão vez por
outra sempre uma saudade
pra frente com bolo café
geleia de amora da casa
de bonecas tão alta quanto
a roda gigante do calendário
um navio que possa singrar
as ruas de Curitiba sem
despejar lodo no abajur
chinês na pia o vaso fedido
cujo sifão seca todas ilusões
de a cama junto à porta
um dia correr para o centro
crente que jamais as pernas
caíssem ao léu da insônia
na preguiça matinal açoite
de pneus pó ratos calotas
em zigue-zague mancos
biombos simulando sutis
aconchegos cheios de mãe
o avental encardido fogo
à marmita quem dirá que
o frio é tato a broa dormida
rançosa a manteiga (salve
-se o queijo bichado) alemão
é assim mesmo pois a vida
não virá nem agora nem
depois talvez não venha
jamais só como atalho da
última maldita parede basta
o breu do teto os recantos
descolados da trincheira
trovão de sol lascas da noite
que precisam do amanhecer
são ares patinando pra sair
do céu a penumbra do cão
arranha olhos medonhos
e deixa a todos atônitos
o porão recomeça o seu
périplo sem dó nem piedade


Sylvio Back, inédito do livro no prelo, Silenciário.

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Com projeto de filme à vista, e uma minissérie a tirar do papel, Back tem novas investigações sobre as contradições do Brasil para levar a múltiplas telas. Confira a seguir suas reflexões sobre a realidade das Letras e do Cinema nestes dias de 40ena, em resistência ao coronavírus.

Como você avalia a importância dessa honraria para sua obra? O quanto a história de Santa Catarina cruza a sua obra?

Back:
Como primeira reação, levei um tremendo susto! Nunca esperava uma láurea dessas. Sim, fiquei aguardando comunicado oficial da Universidade Federal de Santa Catarina para me dar conta do tamanho da honraria. E, mais, o título de “Doutor Honoris Causa” é concedido por uma das dez mais importantes universidades do país, justamente, pelo conjunto da minha obra literária e cinematográfica dedicadas à arte e à cultura catarinenses e brasileiras. Um luxo, pois não? São 25 livros (poesia, roteiros e ensaios) e 38 filmes (ficção e documentários). Claro, com destaque para a realização de longas-metragens tematizando eventos do Estado, como “Aleluia, Gretchen”, sobre o poeta Cruz e Sousa (1861-1898) e a Guerra do Contestado (1912-1916), .docs sobre a imigração polonesa, Revolução de 30, a extinção do pinheiro e do índio na região. Uma obra de imagens, versos e sons atravessada pela alma telúrica de Santa Catarina, filho que sou de imigrantes judeu húngaro e alemã e natural de Blumenau. Esse DNA genético é o meu melhor patrimônio moral e estético, pois se espraia por toda minha obra.

Qual é a dimensão política de sua estética?

Back:
Sempre procurei não levar o espectador pelas mãos em meus filmes, sejam .docs, sejam ficções. Para isso, já bastam as instituições, da família às religiões, da escola/universidade às Forças Armadas, da arte “chapa branca” às palavras de ordem terroristas de maiorias e/ou minorias, toda e qualquer tralha ideológica que as matizam em direção às provectas utopias. Adoro deixar o espectador órfão a fazer sua cabeça. Faço um cinema “antiutópico”, uma obra aberta onde cada olhar é uma descoberta, um achado, um aviso, um desconforto, um basta à redenção mítica! Um cinema na contramão do estatuído, um cinema que desconfia. E isso vale à direita e à esquerda. Minha formação de jornalista (fui o primeiro copydesk da imprensa paranaense lá pelos idos dos anos 1950), sem nenhuma premeditação, acabou por nortear essa vocação pela liberdade de expressão e de opinião que vem desde “Lance Maior” e culmina, por enquanto, no recente “O Universo Graciliano”. Nenhum espírito de horda consegue me constranger. Tanto na poesia, em especial, a erótica onde, imodestamente, segundo a crítica, mantenho primazia no espectro literário do país, quanto no cinema. Sei, sim, o quanto isso tem me custado em surdas omissões, “esquecimento” por parte dos críticos e historiadores oficiais do nosso cinema, além de escandalosos descartes de uma obra com quase cem láureas nacionais e internacionais. Um conjunto que energiza a ideia fundadora de que o autor é sempre inferior à obra na medida em que ela, por força do acaso, o ultrapassa em cada verso ou fotograma. Faço minha a antológica frase do belo autor de “Zorba o Grego”, Nikos Kazantzákis (1883-1957), que epigrafa meu livro de contos eróticos, “O himeneu”, publicado ano passado: “Não espero nada. Não temo nada. Sou livre.”

Que longas mais e melhor marcaram a sua formação como diretor? Em que momento de sua trajetória vc percebeu ter uma obra em construção?

Back:
Jamais botei o olho no visor da câmara procurando reencontrar enquadramento que homenageasse algum dos mestres que, ao longo de sessenta anos, fizeram meu espectro estético. Aos 82 anos, da minha geração, talvez eu seja o único a falar “Ação!” sem nunca ter sido assistente de nenhum diretor, nem ao menos ter assistido a uma filmagem. Tenho orgulho desse autodidatismo: aprendi cinema vendo e lendo filmes! Assim, meu paideuma cinematográfico vai desde o cinema americano (que há um século, pela tecnologia, formata mentes e corações da maioria dos cineastas) aos filmes da Nouvelle Vague, dos mestres italianos, suecos, alemães, aos ingleses, japoneses, soviéticos e russos e que tais, Mas onde consigo encontrar uma identidade unívoca é no nosso amor desbragado ao cinema. A sensação de obra por construir me acompanha desde o curta inagural, “As moradas” (1964). São décadas de idas e vindas da ficção para o documentário, e vice-versa, do cinema à TV, nessa imponderabilidade do que se constitui o fabro cinematográfico no Brasil. Cada título é como se fora um doutorado, agora, sem nenhuma premeditação, celebrado com este impensado “Honoris Causa”, cuja outorga compartilho com as dezenas, por que não, centenas, de talentosos colaboradores que ao longo de décadas construíram comigo esta filmografia que alcunho de “cinema torto” dado seu indisfarçável tônus iconoclasta e corsário em termos de conteúdo e linguagem.

Quais são seus próximos projetos como realizador ou como poeta?

Back
: Incorporo aqui o espírito proativo do genial Shakespeare: quando a peste negra varria Londres, ele escreveu, além de poemas eróticos, “King Lear”! Portanto, não cedamos à inércia e ao pessimismo durante essa horrível quarentena. Trabalho a todo vapor em projetos a vir a lume em breve! Sabemos que não é de bom alvitre (dá azar!) anunciar o que se está criando ou se planeja fazer. O que posso adiantar: está no prelo minha obra poética reunida (a erótica encontra-se toda em “Quermesse”, da Topbooks, de 2013). Trata-se de florilégio com cinco livros publicados desde quando me inaugurei poeta em 1986, e um inédito, “A maior diversão” (56 poemas), sob o título geral de “Silenciário”. Ainda nessa seara, acabo de concluir meu primeiro poema longo, “Curitiba merencória”, na mesa de editor para decidir se vira livro. No cinema, com esta paralisia angustiante de financiamentos e incentivos, aguardo aprovação de recursos para filmar o docudrama, “A história é teimosa” e concluir a minissérie “Véu de Curityba”.


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