Canções de amor


 

 

A escritora, ficcionista, poeta e ensaísta Conceição Evaristo entrega-nos mais um livro e, quando isso acontece, temos que parar tudo para lê-la. Conceição vem reconfigurando, livro após livro, o que me atrevo a chamar de nova literatura negro-brasileira, uma literatura que além da temática (as vivências à margem de uma grande parcela da população, não por acaso negra), do recorte biográfico de seus autores, da enunciação negra de seus produtores (mais do que seu lugar de fala, a dicção estética de seu lugar existencial e histórico), busca e se realiza com uma qualidade artística notável.

Conceição vem ensinando à nossa sociedade racista e classista aspectos de uma vivência que muitos prefeririam omitir ou aniquilar (literal e metaforicamente) de nosso horizonte social e histórico.

Estamos diante de uma narradora que, além de exímio fabular, exercitou com perspicácia a dádiva da escuta atenta e compassiva. A escuta desses falares cheios de vida e sofrimento inundou seu eu-lírico e confundiram-se com sua história pessoal e familiar.

Conceição, com seus causos e relatos, atua como uma tradutora consciente da inevitabilidade da traição, mas, no seu caso, a poesia (ou pra ser mais exato, a poética dolorida da existência negra) não se perde, muito pelo contrário, se acentua. Seu dom de narrar está em seu estilo de recontar, seu poder de organizar o universo de vivências alheias e, como um demiurgo da escrita, torná-las suas.

Sua “escrevivência”, como ela a denominou, vem se desenhando desde sua estreia em 1990, quando publica alguns contos e poemas nos Cadernos Negros. Foi a primeira vez que a li, ao lado de poemas de outro malungo, o incontornável Cuti, no Cadernos Negros de, não por acaso, nº 13. Um dos poemas ainda me acompanha:

Os sonhos

Os sonhos foram banhados
nas águas da miséria
e derreteram-se.

Os sonhos foram moldados
a ferro e a fogo
e tomaram a forma do nada.

Os sonhos foram e foram.

Mas crianças com bocas de fome
ávidas, ressuscitaram a vida
brincando anzóis nas correntezas
profundas.
E os sonhos, submersos e
Disformes
avolumaram-se engrandecidos
anelando-se uns aos outros
pulsaram como sangue-raiz
nas veias ressecadas
de um novo mundo.

Seus sonhos e realizações avolumaram-se de lá para cá. Sua trajetória de Belo Horizonte até o Rio de Janeiro, e de lá para o Brasil e o mundo, foi urdida pela escrita e reflexão teórica com uma graduação em Letras pela UFRJ, o trabalho como professora da rede pública de ensino, um mestrado em Literatura Brasileira pela PUC do Rio de Janeiro (com a dissertação Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade), e um doutoramento em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (com a tese Poemas malungos, cânticos irmãos).

Publica, em 2003, o romance Ponciá Vicêncio em que já se nota sua habilidade narrativa e o acento de seu projeto estético: dar voz aos excluídos, remanescentes de escravizados e mulheres espoliadas nas periferias dos grandes centros urbanos. A memória e as narrativas orais que a autora ouve desde a infância são os fios de uma trama não linear carregada de tocante lirismo.

Em 2006, nos oferece o romance Becos da memória, aquelas pungentes memórias “não oficiais” de favelados em processo de remoção. O ponto de vista narrativo, mais uma vez, é o feminino.

Em 2011, lança o livro de contos Insubmissas lágrimas de mulheres que traz experiências de mulheres negras que se fundem com as próprias experiências da autora.

Seu próximo livro, Olhos D’água, de 2014, foi finalista do Prêmio Jabuti na categoria “Contos e Crônicas”. São contos que entrelaçam histórias de mulheres e homens negros que “sofreram e sofrem diferentes tipos de violência e depreciação”. A personagem que é o fio condutor das narrativas precisa buscar a cor dos olhos de sua mãe, descobrir sua própria ancestralidade, pois somente dessa forma conseguirá enxergar a si mesma.

Chegamos a 2022, ano do livro que temos diante dos olhos e do coração: Canção para ninar menino grande. O desafio de “perseguir uma escrevivência” continua. Como agarrar a vida “e escrevê-la em seu estado de acontecimento”?

Conceição tece as histórias que Juventina Maria Perpétua, a Tina, lhe contou. Através da contação de Tina, as histórias de várias mulheres que cruzaram com ela também são contadas.

Tina inicia e fecha a narrativa. A vida de todos se mistura com a dela. E todas as mulheres perpassam e configuram a errática história amorosa e sexual de Fio Jasmim, o encantador e sedutor de mulheres, aquele que tem “a moleira aberta e nenhum juízo”.

Fio Jasmim é um jovem negro que carrega o rasgo infantil de não ter podido fazer o papel de príncipe na escola por ser negro. O fio da meada da história carrega a atração mágica do perfume do jasmim.

O Fio não é estranho à Conceição, assim como as mulheres que passaram por sua vida. Conceição foi uma das mulheres de Fio Jasmim? Representaria a figura paterna que lhe escapara como afeto? Tudo tem que ser considerado. São muitas vozes a provocar a autora e a nós, leitores; como não ouvi-las? Como não celebrar o amor e suas demências com as mulheres dessa novela?

A autora imiscui-se na trama ao final ao arrematar que já não sabe mais se a invenção é de Tina ao lhe contar ou dela ao escrever. Em todo caso, ela já nos alertara na epígrafe do livro: “É ainda um júbilo à vida, que me permite embaralhar tudo: vivência e criação, vivência e escrita. Escrevivência”.

Fio Jasmim é um homem típico, garanhão e viril, cheio de si, que tem como tema de suas conversas com outros homens as mulheres, apesar de nada saber sobre elas. Ele, o eterno menino príncipe desejante, treinado pelo pai para conquistar as mulheres, só encontra o vazio, o seu próprio, ao fim de cada gozo. Para ele, o êxtase não se manterá nunca.

Diferentemente dele, as mulheres da história vão gestando uma relação de solidariedade com suas vivências compartilhadas, a aceitação da paixão e a dor-delícia de parir e criar os filhos. Algo que Jasmim não foi formado nem para imaginar.

Apesar de suas inúmeras traições à Pérola Maria, mulher que elegera por esposa em cerimônia religiosa e civil, nunca pensou em se separar dela. Teve nove filhos com ela, mas muitos outros se espalharam pelo mundo com as várias mulheres que conheceu (no sentido bíblico do termo). Uma delas, a Dalva Ruiva, quis ter filhos com ele para que eles “perdessem a alvura que a pele dela continha, e se enegrecessem com a melanina do pai”.

No entanto, durante a narrativa-partitura composta por Tina (musicista e compositora), também acompanhamos a jornada de Fio Jasmim rumo a uma pitada de revelação de si e do outro (melhor seria dizer, das outras):

Quando Fio Jasmim escutou da boca de uma mulher uma contida confissão de amor, que não era dirigida para um homem e sim para outra mulher, ele quase não acreditou. Já tinha ouvido de mulheres que não gostavam de homens, mas não conhecia nenhuma delas que gostasse de mulher. Aliás, ainda pequeno, ouvia algumas vezes sobre uma prima distante, que causava um zum-zum-zum na família. Diziam que a moça havia deixado o noivo, às vésperas do casamento, para ficar com uma mulher. Fio cresceu e nunca mais ouviu falar de prima Eulália. Quanto a homem gostar de homem, ele conhecia de perto alguns poucos, ninguém da família. Jasmim até brincava que gostava deles, pois eram homens do tipo que nunca competiriam pelas mulheres com ele. E, mesmo se competissem, ele ganharia, pois o dono da virilidade era ele. Era essa a visão que Fio Jasmim tinha a respeito das relações amorosas entre pessoas iguais. Foi preciso a vivência de Distinta de Sá para que ele entendesse que duas mulheres podem se amar entre si até o infinito. E, mais do que isso, a dor de um amor não vivido e a angustiante preocupação de Eleonora sobre o que seria a vida da mulher que ela queria tanto, se ela era feliz ou não, provocou em Fio um pensamento nunca experimentado antes. As mulheres que tinham passado por sua vida e as duas que ainda estavam com ele eram felizes? Elas eram felizes? E ele era?

Conceição Evaristo continua nesta novela seu grande projeto literário. Continua a configurar sua escrevivência, mas com um tom ficcional ligeiramente diferente. Há um matiz de fábula no tecido das histórias que indicam o caminhar para uma maturidade estética e a crescente maestria da escritura.

Seguimos ávidos e ansiosos por seus trabalhos vindouros, seus “mosaicos afetuosos [e doloridos] de experiências negras” em um Brasil que parece começar a olhar de frente para o legado de sua história de genocídios.

 

CANÇÃO PARA NINAR MENINO GRANDE
Conceição Evaristo
Pallas
134 págs.
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Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta e editor do site Musa Rara (www.musarara.com.br). Fundou e editou o histórico site de literatura, Cronópios. Estudou música e psicologia e graduou-se em Letras (USP). Seus textos críticos aparecem no Jornal Rascunho e no site Musa Rara. Tem 12 livros  publicados. Lançou em 2020, Pandemônio (poemas) pela Kotter Editorial e, em 2021, Fibonacci blues – uma novela fractal, pela mesma editora. Em 2022, lançou Negrura, também pela Kotter. Apresenta  o programa CONFRARIA DA PALAVRA na Kotter TV. E-mail: sonartes@gmail.com

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