O untuê mestiço da poesia de Olinda Beja


 

Quando se transita por dois mundos, em certo momento se pisa ao chão de um mundo outro, criado concomitantemente ao ato de caminhar. Desse trânsito a escritora Olinda Beja parece entender: nascida em São Tomé e Príncipe, no Golfo da Guiné, e tendo vivido em Portugal grande parte da vida, sua poética traz as marcas dessa movência, reconstruindo, ou construindo ao seu modo, identidade, reconhecimento e permanência na intersecção de realidades simultaneamente opostas e complementares. Construída na tensão entre esses pólos, a poética de Olinda Beja celebra a festa da mestiçagem, aqui entendida como o encontro de elementos culturais que se agregam para formar uma outra coisa, uma outra cultura: uma zona de confluências que reconstroem uma África possível e ampliada para além dos horizontes da terra de origem, ao mesmo tempo em que lambuza a Europa com a língua materna e, assim, a conquista para si.

No poema Visão, por exemplo, o conflito é explícito e a violência do mundo colonizador é posta em xeque por um eu poético que se afirma na dissonância e rebeldia. “Quiseram fazer de mim uma europeia”(1), diz o primeiro verso do poema, e em sequência se enumeram os esquecimentos e brutalidades que saem do plano pessoal e se coletivizam para todo um continente: do corpo domesticado pelos refinamentos sociais à história dos vencedores que se sobrepõe à dos vencidos. Pela metade do poema, lê-se “Tentaram fazer de mim uma europeia”, ideia que traça um memorial sobre a dominação dos afetos como contraponto à loucura e variação representada pela negritude, dominação que se impondo como branqueação eugênica, se traveste em violência simbólica, atingindo mesmo as relações familiares. “Conseguiram fazer de mim uma europeia”, verso que abre a parte final, anuncia uma ruptura na medida em que expõe o fracasso do projeto de dominação. Paradoxalmente, conseguir é a ruína da intenção, conseguir é a vitória do constraste: “Conseguiram fazer de mim uma europeia / só que esqueceram de cortar / o cordão umbilical que ficou preso / nas raízes da velha eritrineira / que meu bisavô plantou em Molembu”. A resistência das práticas culturais evoca uma paisagem que se move nas duas direções, a da África deixada para trás e a da África vivenciada e reconstruída na subjetividade do presente.

Beja é dona de uma poesia solar, que agrega vozes, ritmos, o rumorejo da natureza e da paisagem cultural de São Tomé e Príncipe. Em entrevista (2), a poeta dá conta dessa região africana ainda mal conhecida. No passado, um lugar de péssima fama para o qual, desde o século XVI, eram enviados degredados que não raramente vinham a morrer devido à natureza inóspita que os atacava fosse por meio dos animais selvagens, como a temível cobra preta do café, ou pelos tremores da malária e outras doenças tropicais. No presente, uma sociedade ainda em construção e diálogo com sua história, em tensão permanente com os aspectos híbridos e mestiços de sua própria formação.

Sobre este assunto, tenho no prelo um conto intitulado “Lembras-te”, no qual eu coloco um habitante de São Tomé, um negro, no cais, a recordar o seu tetravô, que em 1680 lá aportou. E ele próprio, negro, se admira por ter aquela cor, uma vez que tem antepassados de todas as etnias e proveniências. Pela boca deste personagem faço uma análise histórica e cultural das raízes do povo são-tomense. O meu editor no Brasil advertiu-me para o facto deste conto poder constituir uma “revolução” em São Tomé e Príncipe. Mas é isso mesmo que eu pretendo…abanar as cabeças dos meus conterrâneos, fazê-los ver que não é por terem a pele totalmente escura que podem esquecer os seus ascendentes que vieram de Portugal, de Angola, de Moçambique, do Brasil, de Génova e que fizeram a sua viagem em sentido inverso. Toda esta gente foi para São Tomé, teve filhos mestiços que depois se acasalaram com negros e lá está… geraram negros com as mais variadas ascendências.

Para compor a trama mestiça dos seus poemas, a autora coteja elementos da oralidade, o tum-tum dos tambores, fragmentos de diálogos nos quais a língua portuguesa é deglutida e ruminada em novas conformações ou, como diz Pinheiro (2009), “os ‘descobertos’ respondem ao ‘descobridor’ incluindo-o na urdidura nativa”(3). Desse modo, fragmentos do oral e do vocabulário do português africanizado comparecem ao texto musicalizando-o, erotizando-o e, sobretudo, territorializando-o. Paul Zumthor (2010), por exemplo, fala sobre como a África realiza com sucesso um inventário de lembranças de um tempo mítico no qual música e linguagem eram uma mesma coisa (4). A poética de Olinda Beja é permanentemente atravessada pelo intertexto musical, seu poema salta à página e pede não apenas para ser dito, mas para ser cantado e, porque não (?), dançado. É uma poética para o corpo e intelecto em sua plenitude.

A língua e a poesia são, nesta poética, definidos como elementos constitutivos de jogos lúdicos nos quais frutas, plantas, animais, paisagens e pessoas se aderem, se incrustam uns aos outros e buscam, desse modo, dizer o real. Bachelard (1993) fala de imagens do “espaço feliz”, que é o espaço amado em toda sua fragmentariedade: “Ao seu valor de proteção, que pode ser positivo, ligam-se também os valores imaginados, e que logo se tornam dominantes”(5). Assim, o real não pode ser tomado como uma categoria imóvel determinante e determinada. Na poesia e na vida, real e irreal se mobilizam para reproduzir o inapreensível. Beja reconstrói seu espaço amado e louvado contando com a multiplicidade de elementos que o podem, ainda que em espelho, definir. Nesse sentido sua poesia filia-se também a uma tradição de poetas das coisas da realidade como João Cabral de Melo Neto, Sophia de Mello Breyner Andresen e Francis Ponge, para citar alguns. Nesse aspecto, compreende-se a premência de imagens que remetem ao espaço geográfico-social na obra da poeta luso-africana.

Se se toma como exemplo um poema como Sam Dóló, é possível observar essa imbricação de naturezas múltiplas.

Sam Doló foi a mulata mais bonita
do Riboque de Santana…
perna de lagaia
peito de fruteira
sorriso de goiaba
rebolar de maré…
Ai Sam Doló… Sam Doló!
Dizem
que quando o vento acompanhava a brisa
na sombra do cafezal
suas coxas ofereciam ternura a todo o falcão
que passasse no ar/e às vezes deixava
que suas asas de ouro e marfim
se abrissem aos sonhos transparentes
e brônzeos/levados pela tarde
até o riso do poente.
Ai Sam Doló… Sam Doló!
Mas um dia Sam Doló resolveu-se a partir
e a terra negra do Riboque do Santana
abriu-se à imensidão/da noite vazia e muda
e ainda hoje no pousio da tarde
nas estórias que dela se contam e recontam
os homens suspiram e dizem numa saudade…
Ai Sam Doló…Sam Doló!

Nesse poema, como em outros, paisagem sócio-cultural, natureza e ser humano se engastam, se encarnam um no outro. Sam Doló é a África na sua música negra reiterada de ais. Seu hibridismo abarca muitos aspectos: é ligada à terra por meio das pernas de raposa, ao mar pelo ritmado dos quadris, ao ar, pelo voo do falcão. Mas ainda é raiz, planta e fruto e não é possível pensar essa figura feminina, Sam Doló, sem lembrar uma outra personagem poética, a mulher não nomeada do poema Jogos Frutais, de João Cabral de Melo Neto. Diz o poema de Cabral: “De fruta é tua textura / e assim concreta; / textura densa que a luz / não atravessa. / Sem transparência: / não de água clara, porém / de mel, intensa.” (6). A personagem poética Sam Doló, por sua vez, além de fruta é a própria fruteira, ela encarna a terra (São Tomé e Príncipe) em sua totalidade.

Uma outra linha de força da poesia de Olinda Beja é a presença do mar. E nesse mar é possível perceber também aspectos mestiços. Confluem nas mesmas águas o sal das lágrimas de Portugal e África. O mar de Beja canta as distâncias, o degredo, a saudade e se encontra com o mar de Camões, de Pessoa, de Sophia, para citar alguns dos poetas que fizeram desse tema um dos grandes motivos da poesia portuguesa. Aqui, citam-se trechos de vários poemas: “Leve, leve se vive em minha terra / nas distâncias dos portos de outro mar” (do poema Cadência); “Como se fora o mar / a espraiar-se na vida / entre a foz e a nascente / do meu pensamento” (de Poente); “Mas olha… / se eu não puder nunca atravessar / o mar dos meus segredos revoltosos /e um dia a carta rarear / é porque meu peito está se abrindo / e aos poucos fica turvo o meu olhar / com saudades de você / e desse mar” (de Mensagem para Além-Mar). Se num poema como Edimar, por exemplo, encontramos, à maneira de Sam Doló, o mar antropomórfico, por outro lado em Ansiedade, o eu lírico saúda essa herança de confluências: “eles sabem que eu sou a transparência / do sangue lusitano que eles tiveram / a única ponte ainda sobrevivente / entre um e outro continente […]”.

Olinda Beja, referência para a compreensão da literatura de São Tomé e Princípe, nasceu em Guadalupe e foi viver em Portugal aos 3 anos de idade. Atualmente mora na Suíça. Habitante entremundos, a poeta se afirma negra e branca, branca e negra, em trânsito crítico permanente entre essas realidades. E é nesse trânsito que compõe a urdidura de seus escritos. Sobre ela diz Alda do Espírito Santo, poeta de São Tomé e Princípe, falecida em 2010: “A poesia de Olinda Beja é o reflexo de uma cadência de insularidade do seu eu circundante para o povo ilhéu que a viu nascer e para os hemisférios do mundo para onde a poetisa pretende fazer ressoar o timbre das virtualidades de uma história coletiva”.

Profundamente contemporânea de si mesma, Olinda Beja reflete sobre seu tempo, sobre seu povo, sua história. Seu conceito de mestiçagem não é acidental. É político e fundamentado na apreensão da paisagem cultural na qual está inserida. Como o untuê, fruto sãotomense conhecido pela viscosidade, no fazer poético de Olinda Beja mestiçagem e hibridização não se podem desgrudar de quem ela é. É uma poesia inquieta e, sobretudo, inquietante.

 

 

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Notas

1. Olinda Beja, Aromas de Cajamanga, São Paulo, Escrituras, 2009, p. 14.

2. Lurdes Macedo e Jorge Adolfo Marques “A lusofonia é uma ave migratória. Entrevista a Olinda Beja, escritora e poetisa são-tomense”, Anuário Internacional de Comunicação Lusófona, Coimbra, CECS, 2011.

3. Amálio Pinheiro, O meio é a mestiçagem, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2009, p. 10.

4. Paul Zumthor, Introdução à Poesia Oral (trad. de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat, Maria Inês de Almeida), Belo Horizonte, Editora UFMG, 2010.

5. Gaston Bachelard, A Poética do Espaço (trad. de Antonio de Pádua Danesi), São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 19.

6. “Jogos Frutais”, in João Cabral de Melo Neto, Antologia Poética, 7.ª ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1989, p. 262

 

 

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[Publicado originalmente na revista Letras Com Vida, do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa]

 

 

 

 

 

 

Micheliny Verunschk é autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy 2003), O Observador e o Nada (Edições Bagaço, 2003), A Cartografia da Noite (Lumme Editor, 2010) e b de bruxa (Mariposa Cartonera, 2014). Foi finalista, em 2004, ao prêmio Portugal Telecom com o livro Geografia Íntima do Deserto. Publica em 2014 seu primeiro romance Nossa Teresa -vida e morte de uma santa suicida(Editora Patuá, com patrocínio do Programa Petrobras Cultural), vencedor do Prêmio São Paulo de 2015. É doutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Literatura e Crítica Literária, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

 

 

 


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