Anônima intimidade


…………………..Michel Temer – Anônima intimidade

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Diferentemente dos poetas a respeito dos quais venho escrevendo desde que, no final de 2015, retomei minha coluna aqui na Musa Rara, não conheço Michel Temer pessoalmente. Certo dia, em 2012, não me lembro do que eu fazia na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, quando vi uma fila enorme: tratava-se do lançamento de Anônima Intimidade, do Michel Temer; o vice-presidente do Brasil estava lá autografando seu livro de poemas – não imaginava que Michel Temer fizesse poesia.

Conheci Michel Temer, como a maioria dos brasileiros, por meio da televisão. Em 1984, quando ele ocupava o cargo de secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo, assisti a uma entrevista sua no programa Canal Livre, da rede de televisão Bandeirantes. Durante a Ditadura Militar, os cargos de secretários da segurança pública eram ocupados por policiais militares. Em 1984, em plena abertura política, foi reconfortante ver um civil na frente da segurança pública; no lugar de torturadores e coronéis espumando como animais raivosos, estava ali um homem que, embora bastante conservador, sabia falar com calma e tinha ideias articuladas.

Não pretendo me deter aqui em sua carreira política, ainda mais em sua atuação na vice-presidência do Brasil; não sou cientista político, sou formado em Letras, prefiro falar de literatura. Falando de literatura, foi com interesse que li Anônima intimidade: esperava encontrar ali mais um jurista garboso, vociferando contra modelos e bandas de rock. Contrariamente, me surpreendi com alguns recursos poéticos utilizados por Michel Temer, bem distantes das belas letras, recursos que o aproximam mais da poesia contemporânea que do Congresso Nacional.

Não vou afirmar que Michel Temer é um poeta da envergadura do Ademir Assunção, do Delmo Montenegro ou do Claudio Daniel; apenas vou mostrar como sua poesia pode ser interessante por, justamente, incorporar procedimentos das poéticas contemporâneas. Para tanto, vou mencionar três deles:

(1) em alguns poemas, valendo-se de um recurso frequente entre os concretistas, Temer faz versos com palavras isoladas, insistindo no mesmo campo morfológico. No poema Eu, todos os versos são compostos por adjetivos formados a partir do sufixo -ado/-ido e pelo prefixo de-; em Por quê?, o poeta repete o mesmo advérbio interrogativo e todos os verbos são conjugados na primeira pessoa do presente do indicativo.

 

Eu
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Deificado.
Demonizado.
Decuplicado.

Desfigurado.
Desencantado.
Desanimado.

Desconstruído.
Derruído.
Destruído.
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Por quê?
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Por que não paro?
Por que prossigo?
Por que insisto?
Por que lamento?
Por que reclamo?
Por que ajo?
Por que me omito?
Por que desabafo?
Por que levanto?
Por que indago?
Por que questiono?
Por que respondo?
Por que este infindável
Por quê?

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(2) ao contrário de textos longos e palavrosos, muitos dos poemas de Temer são curtos, com vocabulário simples, como são os haicais de Leminski ou os versos de Cacaso:

 

Alegria
.

É possível
Com alegria
Fazer poesia?

 

Saber
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Eu não sabia.
Eu juro que não sabia!

 

(3) em alguns poemas,Temer convoca outras semióticas, como o cinema e a fotografia, dialogando com elas. No poema Piano, além da menção ao filme À noite sonhamos, que trata da vida de Chopin, Temer compara os atos de tocar piano e datilografar. Em Engano, o poeta tematiza duas crises caras à poesia pós-moderna, a crise do sujeito e crise da representação, recorrendo à figura do espelho para cuidar da primeira e, à fotografia, para cuidar da segunda.

 

O piano
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Piano. Filme
À noite sonhamos,
Vida de Chopin.
Cornel Wilde. Merle Oberon.
E a “polonaise”
Tocada ao lado de George Sand.

O pingo de sangue
No teclado branco.
Tuberculoso. Chopin.

Encantei-me.
Sonhava à noite.
E queria aprender.
Ser Cornel Wilde, Chopin.
A cidade pequena.
Não havia escola
Nem piano
Insisti.
Matricularam-me
Numa escola de datilografia.

Tocava o teclado
Da velha Underwood
Com os dez dedos
Como se fosse piano.

Obtive o diploma
De datilógrafo
Aos nove anos.
Como se fosse pianista!
.

Engano
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Serei eu no espelho
Ou serei aquele
Que a minha mente exibe?
Haverá coincidência
Entre a imagem no espelho
E eu próprio?
Na foto,
A desconformidade.

Não sou, nela,
Aquele que vejo
No espelho.

 

Ao lado da incorporação da poética contemporânea, Temer também faz poesia social, como é costume no Brasil desde a ditadura militar. Em  A menina e o sonho, o poeta traça comparações inusitadas entre as vicissitudes sociais de uma mocinha camponesa e a queda gradual de seus seios que, ainda novos, balançam sob o vestido, agitados pelo trote dos cavalos.

 

A menina e o sonho
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Na charrete. Carroça com sola de borracha
Ao lado do pai.
Na estrada esburacada.
Por isso, balançando,
Chacoalha o corpo,
Balançam os seios da menina
Com cabelo lavado,
Cacheado e negro.
E os olhos tristes,
Mas cheios de sonhos.
Será que percorrerei avenidas?
Longas? Limpas?
Em carros de luxo
Onde meus seios não balancem?
A charrete, o cavalo
Serão simples recordação?
Chegarei lá?
Ou ficarei aqui?
Onde minha pele envelhecerá
Pelo sol forte da roça,
Pela aspereza da poeira,
Pelo corte do canavial,
Pela colheita do café,
Pela gravidez que me engordará,
Pelos seios que cairão,
Pela tristeza que me assumirá,
Pela decepção que me
Assaltará.

 

Há inda, em Anônima intimidade, alguns poemas eróticos. Em Das águas, o poeta é seduzido pela Iara encantada, saída do rio Amazonas, mas que, ao flutuar no espaço e dialogar com Gabriel Garcia Marques, transcende o nacionalismo das primeiras figuras.

 

Das águas
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Com leveza
Extrema leveza
Sai das águas
Do Amazonas
Como se fosse
Uma deusa.
Angelical
Flutua no espaço
Como se saísse
Do Cem anos de solidão
Movendo o rosto
Faz a garça
Soberana e graciosa
Saída dos arrozais.
O olhar
Enevoado
Saído dos sonhos
Do Oriente.
Eu, sucumbido,
Seduzido
E sem saída.

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Por fim, não quis fazer propaganda política de nenhum partido, apenas quis mostrar algumas qualidades inesperadas na poesia de um jurista conservador; qualidades que, muitas vezes, não se encontram mais em poetas jovens, aparentemente rebeldes e pretensiosamente revolucionários.

Talvez, se ao invés de ter cursado a Faculdade de Direito da USP, Michel Temer tivesse se formado em Letras, na FFLCH-USP; se sua pós-graduação na PUC fosse em comunicação e semiótica, orientada por Haroldo de Campos; se ele pertencesse ao PSTU ou ao PCO – e não estou sendo irônico quando cito esses partidos, merecedores de respeito –; se seu livro tivesse sido editado pela Patuá; enfim, se ele andasse conosco e não andasse com ELES, sua poesia, com certeza, teria ido bem mais longe.

Daqui a duas semanas, eu volto para falar da edição do poema Formigueiro, de Ferreira Gullar, inédito desde 1955 e, finalmente, publicado no ano passado.

 

Visite meu site http://seraphimpietroforte.com.br/

 

 

 

 

 

 

 

 

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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de:Semiótica visual – os percursos do olharAnálise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicaçõesAnálise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SMIrmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto fogePalavra quase muroConcretos e delirantesOs tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com




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