Anna Ross e o táxi branco


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Éramos pelo menos três poetas naquele táxi, tarde da noite, tentando encontrar ruas escuras e mais sinuosas no calor de São Paulo em novembro. Eu contava uma história real e tétrica, de um extravio, naquelas ruas. Anna absorvia mais, coletando partes do que se tornaria este poema que traduzo aqui, Sob o Cruzeiro do Sul. Faz muito tempo que isso aconteceu. Mas o poema transcorreu transformativo na memória de sua autora, e foi publicado no ano passado em sua nova coletânea de poemas, If a Storm, vencedor do Robert Dana-Anhinga Prize for Poetry. Seu livro anterior, Hawk Weather, recebeu o New Women’s Voices Prize da editora Finishing Line Press e o Jean Pedrick Chapbook Award do New England Poetry Club. Weather— a temperatura, parece mesmo ser o gavião da poesia de Anna Ross: o olhar afiado, preciso, o vôo silencioso e macio, o bote certeiro da ave de rapina. E pensando no amplo vôo que cobre tantos territórios poéticos, acrescento aqui a tradução de mais um poema do mesmo livro, este escrito em casa (Anna mora em Boston, Estados Unidos) no mês mais frio do ano. Dá para escutar os cristais de gelo trincando palavras.

 

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Sob o Cruzeiro do Sul

………………………..— São Paulo, Brasil

 

Estranhos neste hemisfério,
descobrimos um táxi branco

e adentramos a topografia, nosso atlas
desalinhado de hesitações.

Não uma montanha, mas as curvas da estrada subindo
aos materiais dispersos de um bairro —

telhados arqueados e enrugados
desfolham tufos de sacadas, e o suspiro vazado

de freios de bicicleta passa por
um homem que vende uma bebida malárica, cintilante

sob um toldo de alumínio.
O novembro equatorial se infiltra

e por um minuto penso que poderíamos
nos perder em distância aqui,

alegar um ao outro o último recurso, continuar dirigindo.
Num cruzamento, dois homens jogam cartas

perto de uma guarita vazia —
ninguém vigiando ou ninguém para vigiar —

enquanto a cidade estende suas constelações
em direção a outro horizonte.

 

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Aprendendo a Falar

 

A manhã de fevereiro depois da tempestade:

o pinheiro caído, simples impressão

contra a malha cinza de nuvem,

cada som descolado

de sua origem, e então esquecemos

gelo, carro — ouvimos apenas pop e trava,

um estilhaçar que se aproxima, e vai sumindo

em jatos circulares

 

ou o ciclo dos meses desabrochando

e zunindo no seu sono desperto.

Agora que suas palavras tomam forma

você se inclina sobre elas, indiferente, arremessando

cada sílaba para que signifique muro,

e nenhum muro.

 

 

 

Originais em inglês

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Under the Southern Cross

— Sao Paolo, Brazil

 

Strange to this hemisphere, we
discover a white taxi

and lead it into topography, our atlas
disheveled with hesitations.

Not a mountain, but the road slopes up
into the sifted materials of a neighborhood —

humped and corrugated roofs
drop beards of balconies, and the leaky sigh

of bicycle brakes pass by
a man selling malarial liquor, gold-lit,

under an aluminum awning.
The November equator leans in,

and for a minute I think we could
misplace ourselves in distance here,

claim each other’s last resort, keep driving.
At an intersection, two men deal cards

near an empty guard-hut —
no one watching or no one to watch for —

as the city stretches its constellations
toward some other horizon.

 

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Learning to Speak

 

February morning after a storm:

the slumped spruce a simple print

against a curdle of gray cloud,

each sound divided

from its source, so that we forget

icicle, car — hearing only pop and stutter,

their clatter nearing, then fading

like circling jets

 

or the cycle of months booming

and buzzing through your waking sleep.

Now, as your words take shape,

you hunker in them, senseless, hurling

each syllable at meaning like a wall,

and then no wall.

 

 

 

* Poemas extraídos do livro “If a Storm” (Anhinga Press, 2013). Republicado com permissão da autora. [http://www.annavqross.com/publications.html]

 

 

 

 

 

 

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Flávia Rocha nasceu em São Paulo em 1974. Jornalista, trabalhou nas redações das revistasBravo!, República e Carta Capital, e  Casa Vogue, entre outras publicações. É autora dos livros de poemas A Casa Azul ao Meio-dia (Travessa dos Editores, 2005) e Quartos Habitáveis (Confraria do Vento, 2011). Tem mestrado em Criação Literária pela Columbia University e é uma das editoras da revista literária americana Rattapallax. Editou antologias de poesia brasileira para as revistas Rattapallax (EUA), Poetry Wales (País de Gales) e Papertiger (Austrália). Fundou, com Steven Richter, a Academia Internacional de Cinema, onde desenvolveu o curso de Criação Literária coordenado pela escritora Veronica Stigger. E-mail: flavia@aicinema.com.br

 




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