Amor: uma palavra & muitas letras


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Conheci o Carvalho na FFLCH-USP. Na época, eu ministrava cursos de pós-graduação de semiótica visual; o Carvalho fazia mestrado, ele foi meu aluno. Sou suspeito para falar do Carvalho; somos parecidos: ambos professores de letras, gostamos das mesmas literaturas, lemos os mesmos livros, fazemos poesia… partilhamos alguns papeis.

No lançamento do Canto verde das maritacas, do Edson Cruz, eu reencontrei o Carvalho no bar do Eduardo Lacerda e ele me deu de presente seu livro de poesias Amor: uma palavra & muitas letras, de 2014.

O título se realiza no livro em, pelo menos, dois sentidos: (1) o significado mais óbvio, aquele em que os poemas expressam o amor, o tema principal do conjunto; (2) o significado que acredito ser o mais adequado à poética do Carvalho, o sentido em que as letras, ainda tematizando o amor, são letras de canções.

Antes de confirmar isso, é preciso fazer duas observações: (1) não se trata do Amor com letras maiúscula, próximo do metafísica, nem é o amor trágico dos românticos – o amor do Carvalho é ligeiro, é o amor “descolado” dos epicuristas pós-modernos –; (2) as letras de canções às quais o Carvalho se refere são, na maioria dos poemas, letras da MPB.

Vou mostrar a intertextualidade entre poesia e canção em cinco comentários sobre Amor: uma palavra & muitas letras:

(1) muitas vezes, Carvalho melhora canções da MPB; em sem seus pés, é evidente a alusão a Sapato velho, de Mu, Claudio Nucci e Paulinho Tapajós, mas sem a pieguice da letra original:
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sem seus pés

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sem par
sem ele
sou
como
aquele velho
par
de sapatos
abandonado
em monterey
com o barro
da memória
o desenho
dos seus dedos
os segredos
dos seus passos
o cansaço
dos cadarços


eu sei
quanta historia
de dor
& de gloria
entre o solo
& a sola
.

(2) encontrei duas variações do tema da recusa ao sexo, que lembram Se, do Djavan:

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não dá!
.


pra dizer
o que
mais

pra fazer
a não
ser
apagar
pra
não ver
o que

pra pagar
mas
não dá
pra ter?
.

.
não fode nem sai de cima

.
você se ferra
mas não entende
não se entrega
o que não se vende
se você quer trégua
não enfrente
você berra
mas não se rende
se você quer guerra
vá em frente

a gente só enterra
quando se desprende
ou você encerra
ou reacende
você erra
mas não aprende

não há primavera
sem semente
quem olha pra terra
não vê estrela cadente
.

(3) encontrei referências a marchinhas de carnaval:

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chove, mulher!

cai
cai
garota
garoa
gota
a gota
na minha
boca
deixa
eu ver
você
chover
pode
cair
vou
te curtir
numa boa
vem
me molhar
mulher
eu tô
à toa
pode
chover
eu já
vou
tirar
a roupa
.

(4) há uma profissão de fé, em que Carvalho cita explicitamente canções da MPB:
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abre-te, césar

que minhas
retinas
cansadas
de ver
as ruínas
depois
de erguer
os impérios
não se fechem
para ver
as meninas
e crer
nos mistérios
.

(5) há um pouco de rock, citando The Who:
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who are you?

se toque
touch me
see me
feel me
te cantei
no meu
filme
mas você
não
ou-
viu-me!

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Por recorrer constantemente a canções, os poemas de Carvalho podem parecer letras à espera de músicas. Contudo, mesmo sendo em potencial boas letras para futuras canções, seus versos se sustentam sozinhos; isso raramente se dá com letras de canções. Não vou me deter nos motivos dessas relações letra de poema vs. letra de canção – isso é tema para teses e dissertações –; creio que os poemas de Carvalho se sustentam sozinhos porque, antes de seguir as regras composicionais das canções, eles são compostos como poemas.

Em abre-te césar, é possível, desfazendo os enjambements, encontrar versos metrificados:

5 sílabas: que minhas retinas
8 sílabas: cansadas de ver as ruínas
8 sílabas: depois de erguer os impérios
10 sílabas: não se fechem para ver as meninas
5 sílabas: e crer nos mistérios

Com os enjambements, Carvalho intensifica o suingue que o poema, em sua prosódia, já possuía.
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Além da canção popular, Carvalho também alude a outros temas. Separei dois deles:

(1) ao enfatizar as relações poéticas entre significados e significantes, ou seja, fazendo paronomásias, Carvalho enfatiza o sistema linguístico,
fazendo com que, por meio de metalinguagem, o poema fale de si, mesmo que implicitamente:

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desvirtual

delete
esse chato
do chat
chute
esse puto
do orkut
expulse
esse cara
do face
jogue
este jegue
do blog
da tela
da terra
pra fora
do myspace

.
(2) Carvalho tematiza, no decorrer dos poemas, a bissexualidade, dedicando poemas tanto para meninos quanto para meninas:

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antes tarde?

meu medo
meu rapaz
é que
quando
você disser
eu cedo
seja tarde
demais
.

matar a saudade

não adianta
não dar
trela
trocar
de idade
identidade
mudar
de cidade
ela vem
atrás
maldita
saudade

pode
atirar
nela
atirar
da janela
tirar
a pele
jogar
na panela
mandar
pra estratosfera
não dá
pra matar
esta maldita
saudade
dela
.

Por fim, quem conhece o Carvalho sabe que sua performance poética é, antes de tudo, ele mesmo.
.
Na próxima postagem, vou falar da poesia do Amador Ribeiro Neto.

 

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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olharAnálise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicaçõesAnálise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SMIrmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto fogePalavra quase muroConcretos e delirantesOs tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com




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