Algarobas urbanas


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Uma sugestão: antes de começar a ler esta coletânea de contos, baixe para o seu iPod todas as canções indicadas pelo autor. Old friends, com Simon and Garfunkel. Sanar, com Jorge Drexler. Alfonsina y el mar, com Mercedes Sosa… Isso mesmo, vai baixando uma por uma. Só então, tendo ao fundo essa trilha sonora de fundamental importância, comece a ler este livro. Você logo perceberá que a música e a literatura estão intimamente ligadas na vida de Reynaldo Bessa.

A maioria das narrativas é uma viagem ao passado, ao encontro dos antigos afetos perdidos. Por isso não estranhe a atmosfera ora azul-escura ora cinza, a melancolia gotejando na varanda, a nostalgia marcando o andamento e as andanças desses personagens tão solitários. Não se assuste. Contra o desencanto da memória ficcional há sempre a pujança dionisíaca dos trovadores modernos. A canção que acompanha cada história vibra, aquece, mesmo quando atravessa o cenário sombrio do baixo astral. A literatura tem esse poder de modificar as outras artes: perto dela não existe música triste.

Aproxime-se. Deixe o delicado enlevo penetrar você. Observe as complicadas relações familiares em Oh! esses acordes menores e O dia em que o silêncio falou mais alto. Tente recuperar um pouco das amizades perdidas em G & M e . Delicie-se com as mulheres misteriosas e sedutoras de Ainda algumas lembranças II e Are you lonesome tonight? Acompanhe de perto a decadência física em Branco, branquinho, o desencontro sonolento em Noite estranha e o horror hospitalar em Charuto. Viaje numa dessas Kombis inesquecíveis (mas perigosas) em Os domingos e o carro de Apolo e Olhos verdes, sarcasmos e despedidas. Esses contos e os outros deste livro tocam a corda mais sensível de nossa fantasia. Por isso certos parágrafos doem tanto. Há alfinetes neles. Há imagens pontiagudas e poéticas, que laceram as retinas do leitor.

Reynaldo Bessa sabe injetar na prosa o lirismo mais inquietante. Não podemos esquecer que ele também é um poeta de mão cheia, autor da coletânea Outros barulhos (prêmio Jabuti de 2009 na categoria poesia).

Entrar neste labirinto de lembranças e invenções é fácil. O leitor só precisa se acomodar num canto confortável e deixar a prosa e a música preencher sua mente.

Nelson de Oliveira (escritor)

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BRANCO, BRANQUINHO

Sim, é um belo vestido de noiva: branco, branquinho. Exatamente como queria seu pai. Ele costumava dizer… Tem que ser branco, brrrrrraaaanco mesmo. Porque nem todo mar é verde e nem todo céu é azul, assim como nem todo branco é branco. Sim, é mesmo um belo e branco vestido de noiva. Sorriu. O grande espelho a olhava obediente. Arregalava ao máximo os olhos pra que ela coubesse toda nele. Ela, ali, sorrindo e se remexendo dentro do belo vestido… Branco… Branquinho, como queria seu pai… Exatamente como ele queria. Colocou as mãos na cintura, depois flexionou levemente uma das pernas. Voltou a ficar ereta. Levou a anca direita um pouco pra frente, fez o mesmo com a anca esquerda, mas antes disso trouxe a anca direita para trás. Claro! As mulheres sempre conseguem o que querem, mas isso, não. Isso elas “ainda” não conseguem. Mirando-se de esguelha, deu aquela máxima viradinha de bunda – que é quando a mulher fica quase na forma de um DNA – pra tentar vê-la completamente. Olhou, olhou. Desmanchou o DNA. De frente de novo. Só ela e o espelho. Deu quatro passos para trás. Perguntou-se se quatro era um número de sorte. Pensou em dar mais quatro: símbolo do infinito, deitado, claro! Mas primeiro precisava imaginar o oito em pé pra só depois poder deitá-lo. Não conseguia imaginá-lo já deitado, tumbado, acostado. E não havia tanto espaço ali, por isso ficou nos quatro mesmo. Olhou-se de longe. Mãos na cintura. Depois, seguindo o ritmo de uma marcha nupcial que só tocava em sua cabeça, começou a aproximar-se do paciente espelho. Tantantantan,….. Tantantantan…… Olhos…….. marejando…. tantantantan…. Olhos marejados…… Tantantantan, Tantantantan. Ficou tão próxima do espelho que seu hálito o embaçou. Simmmmmm, eu o aceito… Pensou ter dito isso e depois beijou o espelho. Alguém conseguiria ser tão frio quanto um espelho? Perguntou-se, mas não deu trela alguma pra resposta. Afastou-se. Mãos na cintura ainda. Tentou sorrir: a primeira, a segunda. Havia um sorriso ali, mas este era como alguém que acabara de despertar e não queria se mostrar totalmente. Que belo vestido de noiva, hein? Papai ficará branco de tão branco que é o vestido. Ficará satisfeito. De tanto olhar para si mesma, por um momento, breve, brevíssimo, chegou a pensar que não era ela, ali, diante daquele espelho repleto de corpos refletidos em sua memória de espelho: mulheres -, algumas muito jovens, outras nem tanto – que diariamente se postavam ali, cara a cara com ele, sem nem lhe perguntar como tinha sido o seu dia ou como estava o seu humor de espelho. A gente pensa cada coisa. Suspirou. Deixou os braços caírem ao longo do corpo. Se não fossem os ombros, teriam caídos ao chão. Casamento, casamento: esse era um daqueles sonhos em que ela teve que, contra a vontade, jogar fora, feito aquele filho que a gente ama muito, mas é obrigada a entregar pra morrer no front. Casamento agora estava fora de questão. Foi-se o tempo. Ele nunca espera. O tempo tem um tempo próprio e num tá nem aí pro nosso tempo.

Sim, os homens vieram e muitos, mas se foram, e todos. Homens têm receio de “pegar” compromisso. Casamento, casamento: seu pai não esperava mais isso dela. De tanto esperar ele nem percebeu que já não mais esperava. Isso agora era como uma foto que de tanto desbotar se transformara em algo tão confuso que ninguém fazia mais a menor questão de olhar. De onde surgiram todas essas rugas? O que aconteceu com seus belos lábios? E sua bunda empinada, em que havia se transformado? Para onde tinha ido? Fechou a cara, depois jogou os dois braços às costas como se quisesse puxar os cabelos que caíam um pouco depois da nuca. Foi descendo o zíper: uma Muralha da China em suas costas. Da nuca ao cóccix. Desvencilhou-se do vestido como se saísse de uma cápsula do tempo. Bom ou ruim, já não mais sabia. Apenas um tempo.

Colocou o vestido no manequim da vitrine e ele pareceu mais animado, mais vivo, ali com todos os outros vestidos. Ela o mirou mais uma vez, quem sabe a última. No dia seguinte, talvez, uma cliente o levasse. As mulheres já são complicadas demais, quando o assunto é casamento, então… Bom, era sem dúvida um belo vestido de noiva, essa ou mesmo outra cliente acabaria levando-o. Com certeza permanecerá pouco tempo na vitrine e seu pai ficará bastante satisfeito. Suspirou… Sorriu… Foi até a cozinha e tomou um café frio. Já à porta, desligou todas as luzes e por alguns segundos contemplou todos aqueles vestidos brancos. Agora nem tão brancos, nem tão branquinhos assim, mas mesmo no escuro ela sabia que eram belos vestidos de noiva. Sonhos ou desilusões na cor branca. Pensou. Deu de ombros. Com um hermético molho de chaves e uma prática adquirida em todos esses longos anos, trancou a porta. Desejou que todas as suas lembranças tivessem ficado lá dentro também, todas elas, no silencioso escuro da loja, como todos aqueles vestidos.
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Ao som de: Sanar – Jorge drexler

 

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Reynaldo Bessa é músico e escritor. Já lançou cinco CDs. O mais recente com músicas suas sobre diversos poemas de autores como: Drummond, Leminski, Alphonsus de Guimaraens, entre outros. Tem parcerias com diversos renomes da música brasileira. Já foi gravado pelo grupo IRA! (A canção “Por Amor” dele e Zé Rodrix) e por Rita Ribeiro (Devastador – de Bessa e Marcelo Abud) Em 2008 lançou seu primeiro livro “Outros Barulhos – Poemas” (Prêmio Jabuti 2009 – Poesia)  Atualmente, o artista está gravando seu sexto trabalho (um disco comemorativo dos seus 20 anos de carreira) e lançando seu mais novo disco “Algarobas urbanas” – contos. Site: www.algarobas.blogspot.com E-mail: contato@reynaldobessa.com.br




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