A tradição lírica


……………………A TRADIÇÃO LÍRICA ou No mundo non me sei parelha


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Na nossa tradição entranhadamente lírica, o poeta é condenado a viver trancafiado nas quatro paredes do próprio ego, a repetir ad nauseam o único verbo que lhe é dado conjugar, para valer: eu sou. (Ego, mei, mihi, me, me – como aprendi a recitar, ainda no tempo das calças curtas.) Pode parecer pouco mas na verdade é muito: tarefa de Sísifo. O ego é uma caverna escura e sem fundo, que o poeta lírico, espeleólogo do vazio, explora com indisfarçável júbilo, insciente de que, quanto mais insista, mais longe estará do que tanto almeja: o predicativo adequado à forma verbal de sua predileção.

Eu sou o quê? Já no limiar da nossa Era, Fernando Pessoa atinou com a única resposta possível: Não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada.

No entanto insistimos, vimos insistindo há séculos. Por isso, ensimesmar-se deixou de ser, há muito, desculpa ou artifício, vindo a ganhar status de segunda natureza: para o poeta lírico, trancado no oco da caverna escura, a autocontemplação é tão natural como respirar, embora a partir do século xviii, ou a partir da grande rebelião romântica, os ares por ali sejam cada vez menos respiráveis.

“No mundo non me sei parelha”: não sei de ninguém, no mundo, que se assemelhe a mim… Não é o que afirma o Pai de todos os poetas líricos da língua, esse inefável Paio Soares de Taveiros? Ah, se tivéssemos o depoimento de dona Maria Pais Ribeiro, a Ribeirinha, a dedicada “mia senhor branca e vermelha”, que teve de ouvir calada a jactância do mais velho dos trovadores: Saiba Vossa Mercê que a mim ninguém se iguala! Que preciosos comentários ela faria!

Mas, sabemos bem: lirismo é solilóquio do ego travado em si mesmo, mas que não dispensa a plateia, embora não conceda a esta a menor chance de se manifestar, Haverá grande mal nisso? Aparentemente, não. Assim tem sido, desde sempre, e assim continua a ser. Gonzaga, na cola de Paio Soares, não diz à sua doce Marília: “Eu tenho um coração maior que o mundo”? O mesmo Pessoa do ceticismo radical não assevera: “Eu vejo que não tenho par nisso tudo neste mundo”? (O cenário, como se vê, nunca é a casa, um canto qualquer do quintal ou da rua: é sempre a largueza imensurável do “mundo”.) Mas se afirmá-lo não é difícil, prová-lo já é outra história – dando-se de barato que a Ribeirinha, a Marília Bela ou a Musa definitiva do engenheiro naval Álvaro de Campos –  essa que consola, que não existe e por isso consola; como se todas elas estivessem de fato interessadas nas provas de que o poeta é o sujeito único, inigualável, que diz ser.

Para isso temos a caverna sem fundo, de onde brota o manancial inesgotável da forma verbal eu sou, multiplicada ao infinito. Se todos soubessem que a única resposta possível é mesmo não sou nada, teríamos só um fiozinho d’água e não o caudaloso rio da ensimesmada tradição. Afinal, há perguntas que têm resposta certa e infalível, já outras não – como esta, “Quem eu sou?”, do poeta sem parelha. Perguntar pode ser ainda mais interessante caso não se saiba que não há resposta. O que vale é estar a caminho e não chegar aonde quer que seja. A tradição garante que o lirismo autocentrado é o tao da arte literária.

Autocentrado? Bem, aí já começamos a resvalar para outra esfera, não propriamente estético-literária, mas, digamo-lo com simplicidade, a da cortesia e da civilidade. O ensimesmamento lírico não raro anda de braço dado com vaidade, carência afetiva, autocomiseração, chantagem emocional, narcisismo, egolatria, megalomania; a convicção, em suma, de que todo mundo – não só a Ribeirinha, a Doce Marília e a Musa consolatrix – está deveras interessado nas miudezas que brotam do oco da caverna. Escorado nessa ilusão, o poeta se julga no direito de impor a quem quer que seja a presença do seu ego inflado, como se para além dele nada mais houvesse de interessante no mundo. Viagem sem fim e sem retorno?

Parece que não. Há saídas, sempre houve. Nada obriga o poeta a viver mergulhado em si mesmo. Será preciso lembrar que voltar-se para fora, pelo menos uma vez ou outra, não é nada difícil? Nem é necessário inventar personagens e dar voz a cada uma delas, como fazem os poetas dramáticos, ou como fez o criador dos heterônimos, com seu drama em gente.

Mas “personagens” não são imprescindíveis. Basta falar das coisas, qualquer coisa, aí fora, que tenha existência em si, independente da existência (ou não) do poeta desparelhado. Se alguma dúvida restar, é só repetir com Rimbaud: Je est un autre. E o leitor que trate de entender que, além de dizer eu sou, o poeta também pode dizer eu é – frase, aliás, gramaticalmente correta. É só perceber que, na frase famosa, eu é uma terceira pessoa, não é só a pessoa que fala mas também a pessoa de quem se fala. O duplo do mesmo.

Por mais que ela nos aborreça, por mais que nos incomode, não há nada a fazer contra a tradição. Ou melhor: há, sim. Na verdade, não temos feito outra coisa, nos últimos 150 anos, a não ser vilipendiá-la. O resultado, quando bem sucedido, é renovar, oxigenar e confirmar essa mesma tradição, que aí prossegue, firme e forte, como há séculos. Não obstante (não há como escapar do paradoxo) é preciso insistir em combatê-la – fogo amigo –, ainda que isso reforce o inimigo. Acomodar-se à tradição, diria Mário de Andrade, seria um parar mais detestável que a morte.

 

 

 

 

 

 

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Carlos Felipe Moisés é autor de, entre outros livros de poesia, Círculo imperfeito, Subsolo, Lição de casa e Noite nula. Como crítico literário, publicou, entre outros: Literatura, para quê?, O desconcerto do mundo e Poesia & utopia. Traduziu Sartre (O que é a literatura?), Marshall Berman (Tudo o que é sólido desmancha no ar), Proust (Retratos de pintores e músicos) e vários outros ensaístas e poetas contemporâneos. Especialista em Fernando Pessoa, sobre quem publicou vários livros, é responsável pela curadoria da exposição “Fernando Pessoa: plural como o universo”, no Museu da Língua Portuguesa (SP), no Centro Cultural Correios (RJ) e na Fundação Gulbenkian. E-mail: carlos_moises@uol.com.br




Comentários (3 comentários)

  1. ISABEL CINTRA NEPOMUCENO, Carlos Felipe Gosto muito do e da forma com que você aborda assunto tão interessante, compartilhando com tanto prazer sua vivência e visão poética do micro diante de si mesmo, ao mesmo tempo que altamente superestimado o ego não se vê apenas inserido no macro, mas achando-se o próprio. Deliciando-me com este capítulo, mais uma razão encontrei para querer publicado logo, logo esse livro . “O que vale é estar a caminho e não chegar aonde quer que seja”; esta é a única verdade para mim, que traduz em si a razão de ser. À pergunta “Quem eu sou?” eu responderia, Uma andarilha a contar estrelas, tropeçando em pedras. Adorei!
    31 agosto, 2012 as 3:53
  2. Daniel Lopes, “Je est un autre” Rimbaud. “Sempre evitei falar de mim, falar-me. Quis falar de coisas. Mas na seleção dessas coisas não haverá um falar de mim?” (João Cabral de Melo Neto) O eu é um poro por onde a obra se torna palavra. Todas as obras aguardam, feito uvas no cacho, em estado de dicionário. Sempre foram, são e serão, mas era necessária uma biografia exata que a trouxesse ao mundo. Não é o poeta que da à luz a obra, mas a obra que traz o poeta pelos seus caminhos. Não há um eu, há um caminho, quase sempre doloroso, e falar desse caminho é falar da verdade por onde outros passaram e passarão. O eu é o mundo. Deus habita os corações partidos, diz o profeta Isaias.
    2 setembro, 2012 as 19:31
  3. chico lopes, Moisés: Você sempre pertinente…E eu sempre repensando coisas a partir das coisas que você sugere. Prazer de te ler aqui. Continuo achando que é impossível que as coisas externas não nos reflitam, por mais que sonhemos com a objetividade de Cabral (que, afinal, nem me parece fria, mas profunda e veladamente emotiva, e só). Quanto à chamada “vida interior” do poeta, é fato que isso é usado muitas vezes como uma distinção tola, ultrapassada, e que, se formos pensar bem, vida interior pode ser muito mais “vácuo atormentado” (Drummond) do que qualquer outra coisa. Em tempo: ou da prosa, mas continuo amando poesia.
    5 setembro, 2012 as 11:51

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