A tessitura de um Cosmo


A tessitura de um Cosmo em Refusões de Marcelo Tápia

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Vida difícil é a do apreciador da poesia brasileira contemporânea: se lhe escapa o lançamento de uma obra nova qualquer ou desconhece os hotspots literários, a chance de adquiri-la diminui exponencialmente, tão limitado é o alcance das publicações de poesia no país. É desconfortável pensar que, na terra que produziu poetas da verve de Drummond, Francisca Júlia, Haroldo de Campos, Sousândrade, Glauco Mattoso, Augusto dos Anjos, Gilka Machado, Pedro Xisto, entre outros tantos, obras que com certeza ocuparão o futuro cânone da literatura brasileira sigam escondidas nos lares de poucos sortudos compradores e presenteados seletos. Custeados muitas vezes por seus próprios autores, poucos são os livros de poesia impressos em número generoso de cópias. Isso, somado ao desinteresse geral do público leitor, contribui para um círculo vicioso em que, infelizmente, pouco se escreve, pouco se publica e, por consequência, menos ainda se lê poesia de qualidade nos dias de hoje.

Senti isso na pele, ainda na época da Graduação em Letras, ao optar pelo estudo da poesia feita por nossos contemporâneos. Não fosse a generosidade de muitos poetas – aproveito o espaço para agradecer-lhes –, que me concederam raríssimos exemplares, não me seria possível acessar grande parte das obras produzidas por nossos selos de literatura. Era comum ouvir de meus colegas mais velhos a frase “esse aqui quem não comprou, não comprará”, ou ainda a terrível “esse aí que está procurando está esgotadíssimo!”. Dou-lhes ainda, leitores, uma pequena amostra do desespero sofrido por este pobre pós-graduando, e listo o preço de alguns tomos essenciais, ditado por sua raridade: Primitipo (1982), do próprio autor resenhado, não sai por menos de R$ 1.000,00 em lojas de livros raros; Caminho (1979), de Pedro Xisto, por R$ 800,00; Poemobiles de Augusto de Campos e Júlio Plaza (1976), por R$ 3.200,00… A lista e os valores só aumentam e, com eles, a tristeza.

Neste ano de 2017, porém, temos um motivo especial para alegrar-nos: Refusões (publicado pela ed. Perspectiva) vem tornar a obra até então completa de Marcelo Tápia um pouco mais próxima do leitor brasileiro, em mais de 400 páginas portando uma das melhores poéticas desde a revolução do Concretismo dos Irmãos Campos e de Décio Pignatari. Reunindo seis livros completos do autor, mais poemas esparsos e textos que analisam sua obra, Refusões cumpre a tarefa de dar à poesia de Tápia seu lugar de direito, as prateleiras e mãos do amante da boa literatura. É, antes de tudo, poema objeto, livro que transcende a ideia simples de juntar obras independentes entre si em um único lugar, pois toma, na verdade, o conceito de antologia por seu sentido primeiro, o da poesia helenística, que equipara a arte do arranjo floral (ánthos = flor e lógos = relação, organização) – o belo organizar de belezas individuais – a da costura de recolhas de poemas. Tápia o faz, porém, não por meio da adição de filigranas ou gravuras às páginas, como fosse medievo, não adorna sua obra com acessórios, mas repete ainda nisso os gregos da biblioteca de Alexandria, transforma o singelo ato da disposição dos livros individuais em obra de arte. Ao iniciar o volume com os versos do inédito Expirais (2017), inspirados nos ritmos oblíquos da música erudita contemporânea, e concluí-lo com os não menos engenhosos poemas concretos de Primitipo, o autor contraria a ordem cronológica habitual às coletâneas de poesia e nos apresenta sua obra em movimento reverso, a partir do presente em direção ao passado. Faz com que o leitor assuma, portanto, perspectiva igual a do astrônomo empenhado na investigação do cosmo.

Graças aos avanços da Física e das ciências naturais, sabemos hoje ser o brilho das estrelas do firmamento, capturado por nossas retinas curiosas, coisa de centenas de milhares e até milhões de anos atrás. São tão grandes as distâncias do universo observável que a luz, mesmo com sua velocidade extrema, leva infindáveis eras para percorrê-las, de modo que olhar para o céu é ver a fotografia cada vez mais distante de seu passado. Quanto mais fundo penetrarmos nossa visão nas profundezas do espaço sideral com nossos olhos, lunetas e telescópios, mais a alçaremos na direção do instante inicial da Criação. Ao equacionar o cérebro humano ao nosso modelo cosmológico atual, podemos ver, portanto, o livro de poemas como a captura de um estágio singular dos múltiplos desdobrares de uma mente humana em desenvolvimento, análogo à imagem de uma galáxia distante em que poemas individuais pairam como nebulosas repletas de estrelas, servindo-lhes seus versos de sistemas planetários e suas sílabas tônicas e átonas de planetas, satélites e asteroides. A anticronologia no dispor das obras em Refusões, dessa forma, é imitação de nosso próprio universo em expansão, por meio da qual Tápia se revela poeta vivo e em pleno trânsito, cujo livro mais atual não deve ser visto como seu último livro, não a conclusão de seu caminho poético, mas seu momento mais atual, seu agora incapturável.

A poética de Marcelo Tápia reflete o mesmo misto de precisão, diligência e engenho, bem como os temas universalizantes, extraídos da análise da disposição de sua antologia, em seus critérios composicionais e conteúdo. Dentre os inúmeros tópicos em arte poética que se pode enumerar em sua obra, encontramos, por exemplo, um forte diálogo com a mística e a religião judaica (“O Vaso Quebrado” – Expirais – que traz conceitos inspirados na Kabbalah); com a literatura grega (“A Princesa e o Viandante” – Valor de Uso – que traduz à contemporaneidade o encontro de Odisseu e Nausicaa do canto V da Odisseia); ritmos descontínuos como os de Cummings (exemplo da poesia fragmentada dO Bagatelista) ou fluidos como os de Pessoa (notável aqui o preâmbulo ao livro Valor de Uso, “algo para nada”); propostas de novos paradigmas de versificação para a língua portuguesa, baseados na literatura antiga (como denunciam os poemas jâmbicos e trocaicos em Expirais); e composições tanto em poesia verbal quanto concreta (mesclando-se ambas em poemas como “Ond” e “Respingo”, poemas visuais metrificados em Primitipo). Trata-se de poesia, como se pode perceber, sapiencial, em profundo diálogo com a literatura e com as ciências naturais e humanas, em que o poeta é celebrado como produtor de linguagem e ampliador de intelectos.

É na própria natureza do fazer poético, para além da obra, que reside a prova mais cabal da mente do poeta como cosmo em expansão. Cosmo – invoco novamente os gregos em meu auxílio – é organização (de khosméo = organizar), arranjo, portanto, estrutura tão cuidadosamente ordenada que quase denuncia (ou assim desejamos ardentemente) ter sido obra de um intelecto e não fruto do acidente. Ao escrevermos poesia, ou seja, ao produzirmos um novo cosmo de sentidos, é como se imitássemos por meio da linguagem o proceder deste intelecto hipotético – imagem e semelhança que nos fizemos dele próprio ao inventá-lo –, transformando-nos em demiurgos de nossos próprios mundos, regidos somente pelas leis que criamos. Consciente, portanto, da essência criadora da poesia e da função do poeta, Tápia não apenas os tematiza ao propor o louvável projeto poético de suas Refusões – leitura indispensável a qualquer amante da poesia –: faz antes colocar às vistas do leitor, do hoje etéreo à gênese fixa, os pulsares, quasares e galáxias de seu próprio universo poético, nessa época em que clamamos no escuro por boa literatura.

 

 

 

 

 

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Rodrigo Bravo é mestrando em Linguística (2017), bacharel (2016) em Letras Clássicas e bacharelando (2017) em Letras – Hebraico pela Universidade de São Paulo. Professor, tradutor e pesquisador em linguística com ênfase em tradução do discurso poético, literatura comparada e esticologia. Desenvolve pesquisa junto ao Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo. Membro do Grupo de Estudos de Poéticas Experimentais da Universidade de São Paulo (GEPOEX). Curador e Organizador do Recital Forme de Forma e da exposição “TransFormações”, na Casa das Rosas (SP) (2017). Membro do conselho editorial da série literária Neûron, na editora Córrego.. E-mail: prof.rbravo@gmail.com




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