A tesoura e o vínculo


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“Então… decidiu que não mais viveria;
e, sufocando em si os espíritos, sem dizer palavra,
cerrou os punhos e morreu…”

Boccaccio, Decameron,
Oitava novela da quarta jornada.

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O prontuário médico ficou em cima do criado-mudo. A janela está aberta, um dedo de vento entra e tenta virar a primeira página. Mas ela só estremece, não vira. Em cada uma das páginas, uma coluna à esquerda empilha nomes, outra à direita, números. Do exame das colunas todas o médico concluiu há pouco: nenhuma anormalidade. Disse isso mal olhando para a cara da paciente, antes de uma enfermeira chegar, avisar qualquer coisa, ele sair apressado, dizendo que voltava logo, largando ali o prontuário nas mãos do vento.

Na cama do outro lado do quarto, uma velha de voz sumida recebe duas visitantes que falam alto sempre e estão falando alto agora e assim falarão até as quatro; ainda não são três e meia. O lanche da tarde da paciente está esquecido na bandeja, também no criado-mudo. No mesmo criado-mudo hoje já se enregelou o seu almoço, retirado por quem trouxe o lanche.

Aquém da janela, portanto, o quarto, a velha, a paciente, duas visitas da velha; além da janela, o sol, reverberando na favela do Heliópolis, mostra à paciente quadriláteros de semitons: casario. Quase como os que ela fazia-fazia-fazia no sanatório: um ponto, dois pontos, três pontos, quatro pontos, depois uma linha, duas, três quatro, unindo os pontos, quadrados descorados dentro de quadrados descorados, debaixo do céu de qualquer deslugar, tudo dentro duma moldura-janela, quadriláteros vazios, sem camas, pacientes ou prontuários. Quadros perdidos.

O vento agora consegue derrubar o prontuário, que cai em adejo de pomba ferida, cortando a conversa das visitantes da velha. Uma delas se levanta, vem, recolhe, devolve as folhas grampeadas em ordem ao criado-mudo, sorri, põe um copo em cima, pergunta: Quer ajuda para comer? Ela não responde, continua olhando para a direção da janela-moldura, segundo crê a mulher, que volta sem graça à sua cadeira. Cochicha com a outra, que comenta: Não teve visita. A velha, em cujo prontuário consta úlcera de duodeno, olha mortiça. Quem trouxe ela aqui? — pergunta a que recolheu os papéis. A outra encolhe os ombros. A velha diz com voz sumida: uma vizinha. O que ela tem? — pergunta a primeira. A segunda encolhe os ombros. A voz da velha nada diz, sumiu.

O médico. Volta, retoma o prontuário, examina de novo e diz: — Está tudo nos conformes, dona, dona… — Acha o nome, mas não lê alto porque, quando bate o olho no olho dela, não acha o olhar dela, acha o olhar dela perdido, perdido demais, nunca viu olhar tão ausente, que talvez esteja na janela, vira-se para lá, dá com uma moldura conhecida da favela do Heliópolis, mas não dá com o lugar do olhar da mulher, que talvez esteja para além da janela… na dúvida ele volta ao prontuário: — A senhora entrou aqui desidratada e hipoglicêmica. Quanto tempo ficou sem comer? — Ela não responde, nenhum aceno de cabeça, nenhum movimento de mão, aquele olhar dela, que ele não sabe onde está, ele não vai procurar mais, não quer se desequilibrar tentando achar um olhar num lugar geográfico e ter de admitir que esse lugar não existe, existindo talvez no fundo de sua própria memória. Continua: — Com a medicação tudo voltou ao normal, vai ficar no soro até amanhã cedo, vou lhe fazer uma prescrição. Regime reforçado, hem… Enfim, não tenho mais por que segurar a senhora aqui… A senhora não comeu o lanche? Também não o almoço? Se continuar assim vai ter outra crise, vai voltar para cá, a senhora precisa comer, não vai ser possível viver à custa de medicação. A senhora me entende? A senhora está me ouvindo? … … …Tem alguém que possa vir buscá-la amanhã cedo?

Se o olhar dela estivesse no nada ele saberia onde está, mas o olhar dela está na desistência, ele não sabe o que fazer. Então sai e no corredor decide rabiscar no prontuário uma indicação de psiquiatria.

O sistema de saúde pública não consegue puxar o fio das biografias. Da passagem dela pelo sanatório não ficou registro. Daquilo que os parentes próximos e distantes chamaram há alguns anos de loucura de menopausa ficou alguma lembrança na memória dos mais velhos. Do resto só ela sabe. Ninguém, mas ninguém mesmo, entendeu aquela autoacusação. O marido morto na cama, às oito da manhã, ela chama a polícia e diz que o matou. O corpo é levado ao IML, ela espera de olhos secos, sentada a um canto da delegacia, calada, olhando o chão, imóvel, sem respostas, sem perguntas, os exames são feitos, ele morreu de infarto. Ela afirma que não. Os médicos, que sim. Morreu dormindo, diziam. Ela, que se enganavam, que — estava ele dormindo — tinha pegado a tesoura da mão da mulher que se recortou na janela. Sim, a mulher apareceu numa janela-moldura à meia-noite: lá fora, as luzes da cidade, cá dentro a penumbra de um quarto. E a mulher disse, entregando a tesoura: três pontos, ligados por três retas, um triângulo. Então ela foi até ele e lhe deu quatro tesouradas no peito: um, dois, três, quatro pontos, depois uma, duas, três, quatro retas-rasgos de tesoura unindo os pontos, quadrado encarnado no peito dele.

Deitou-se ao lado e esperou amanhecer.

Não lhe davam ouvidos. Alguns riam: não havia ferimento algum no peito. Os parentes riam: casada com um brucutu, um troglodita, sonhava tanto com a morte dele, que um dia acertou. Bingo! Mas ela dizia sem parar, matei-matei-matei, dei quatro tesouradas no coração dele. Riam irmãs, cunhados, primos. Quando cansaram de rir, buscaram o psiquiatra, porque não dava mais para ficar ouvindo matei-matei-matei da boca de uma parenta, sem certo constrangimento. Do sanatório saiu pacata, silenciosa, cordata, trancada.

Como querem hoje esses seres de jaleco branco desvendar seus mistérios com análises bioquímicas? O que é uma crise de hipoglicemia depois de décadas de reprovações, demissões, estupros, tormentos, alucinações?

Dormiu? Não sabe. Já não se enxerga a favela de Heliópolis: a janela está fechada. A noite já anda crescida, finalmente, depois do demorado cair de tarde, do lento jantar da velha, das poucas colheradas que de sopa por ela engolidas, do recolher dos pratos, da tevê ligada, do som da tevê a inundar o ambiente sem escoar, entrando duas horas a fio pelos ouvidos surdos da velha como filete de água em cano entupido; depois foi preciso ouvir a preleção da enfermeira: a senhora comeu tão pouco! Desse jeito vai ficar fraquinha de novo, precisa comer etc. etc. Tudo suportado com paciência, até que movimentos e barulhos fossem desbotando aos poucos, tevês desligadas uma aqui, outra ali, vozes dos corredores se retirando devagar, deixando só passos sem fala, luzes minguando, uma aqui, outra ali, portas se fechando, só ficando algum eco quebradiço ali, acolá, muito além da porta.

A janela fechada, a velha dormindo.

Ela sabe que lhe falta cumprir a parte mais importante: romper o tenaz vínculo da alma com o corpo, como lhe disse também a mulher que se recortou na janela. Mas sem tesoura. A maneira mais nobre de morrer é pela ação da força da alma sobre o vínculo. Ação que é um ato de vontade, ato intenso, capaz de vencer as resistências da lei de conservação. Enfim, um ato positivo, o de engendrar o rompimento a que dão o nome de morte, e não o ato negativo de matar a vida negando-lhe substância, como fazem quase todos, quando geram doenças, dão um tiro na cabeça, cortam os pulsos, tomam veneno ou deixam de comer. Quase ela comete esse erro, por um triz não definha na desvontade e deixa de comer, arriscando-se a morrer de inanição, e não de volição. Agora, que está reanimada pelos remédios, precisa se impor, ou desistir de vez. Precisa fazer fluir para o centro vital todas as forças da alma, de modo que elas se engolfem num ponto infinitamente pequeno e, por excessiva pressão, se transmudem num cristal insuportavelmente duro, incompatível com a vida.

Será esta noite. E amanhã cedo, quando a enfermeira entrar, vai abrir a janela, falar com ela e, sem estranhar a falta de resposta, vai puxar uma ponta de lençol e pegar sua mão para medir a pressão. Então vai encontrá-la fria. Só aí vai reparar que seus olhos abertos estão fixados para sempre na janela-moldura aquém de Heliópolis.

 

 

 

 

 

 

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Ivone Benedetti nasceu em São Paulo. Estudou na Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo. Ali também defendeu tese de doutorado em 2004, pelo Departamento de Letras Modernas, Francês: Charles d’Orléans, tradução de uma poética, em que fez um estudo da obra desse poeta medieval francês e da tradução de sua poesia. É tradutora e escritora. Trabalhou para várias grandes editoras brasileiras, entre as quais WMF Martins Fontes, L&PM, Objetiva, Paz e Terra, Estação Liberdade, além de vários institutos e fundações: OSESP, Tomie Ohtake, Bienal. Pela WMF Martins Fontes integrou a equipe de produção de vários dicionários, entre os quais o dicionário Martins Fontes de italiano-português. Em 2009 estreou como ficcionista, lançando o romance Immaculada, pela WMF Martins Fontes, que foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2010, categoria estreante. Em 2011 lançou o livro de contos Tenho um cavalo alfaraz, também pela WMF Martins Fontes. Tem contos publicados na revista Cult e no jornal Rascunho. Está em fase de finalização o seu segundo romance, ainda sem título definido. E-mail: ivonecbenedetti@gmail.com Site: http://www.ivonecbenedetti.com.br/




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