A Terceira Mulher


A Terceira Mulher: Capítulo 3 – A pós-mulher no lar

 

Nessa última metade do século,  condição feminina mudou mais do que nos milênios anteriores: libertadas da servidão imemorável da procriação, exercendo uma atividade profissional, vivendo a sua liberdade sexual, doravante as mulheres perseguiriam as cidadelas masculinas. Nessa emancipação, podemos ver em ação a lógica das sociedades pós-modernas definida por Gilles Lipovetsky (2000): o processo de personalização, essa nova maneira de a sociedade se organizar e de gerir os comportamentos. Nesse livro, o autor deixa transparecer todo o seu trabalho sobre o individualismo contemporâneo, a atenuação das distinções e a indiferenciação nas sociedades pós-modernas. Interrogando-se sobre as angústias da modernidade, tenta, de forma aficionada, aplicar as suas hipóteses, senão teorias, à questão das mulheres. Essa obra é um longo sobrevoo da problemática das mulheres através da história, das ideias ou, ainda, através dos recentes estudos sobre a sexualidade das mulheres, da sua atividade de assalariadas ou da sua implicação na vida política.

Analisar a mulher pelo processo histórico ocidental é perceber que os discursos sobre ela foram se modificando no decorrer do tempo, diante de necessidades sociais e culturais. A única marca que persistiu como definitiva é a diferenciação entre os sexos nos papeis sociais, sempre a mulher esteve marcada como diferente e inferior ao homem. As identidades sexuais longe de desfazerem na história, elas se recompõem para atualizar com as dinâmicas contemporâneas. Ao pensar sobre a mulher e trabalho, temos duas grandes imagens que aparecem na história moderna que se resumem em Mulher do Lar e a Mulher Pós-Lar. Mas como veremos com os estudos de Gilles Lipovetsky, na contemporaneidade essas imagens encontram um espaço de valores capazes de conciliarem as ambivalências e formando a Terceira Mulher.

A Mulher do Lar foi uma imagem social construída e teve sua ascensão no século XIX. Diferente do senso comum que acredita que a residência sempre foi um espaço feminino, nos séculos anteriores as mulheres possuíam funções externas ao lar e a educação das crianças era bem relativa, sem muito apego e dedicação. A imagem da Mulher do Lar foi forjada com traços angelicais com a ajuda das Artes, como a literatura e a pintura, e livros de conselho sobre família e mulher. Essa imagem que colocava a mulher dentro da residência e a fazendo dedicar-se exclusivamente aos filhos e maridos estava em volta de uma áurea de sacerdócio, no qual reforçava a entrega e devoção, e negava a qualquer traço possível de egoísmo ou individualismo. Ela foi elaborada na recusa da mulher de si, ou seja, as mulheres estariam para o outro e não pra si mesmas.

Assim, se radicaliza a separação dos espaços e gêneros; enquanto que o homem fica com a esfera pública, a mulher é destinada a esfera do privado. Mesmo que para as classes sociais mais baixas essa distinção não tenha sido realmente concretizada, porque era preciso da colaboração das mulheres para aumentar a renda familiar, esse modelo para os gênero foi colocado como um ideal, tornando um traço de status social.

Para colaborar com o discurso da Mulher do Lar, foi construído um discurso negativo do trabalho externo feminino. Ele afirmava que esse tipo de atividade desqualificaria e desnaturalizaria as mulheres e ainda destruiria a essência da família. Para completar o combate ao trabalho feminino, esse era associado à licença sexual pejorativa.

No período pós-guerra, com os avanços da sociedade do consumo, o discurso da Mulher do lar é atualizado para atender essa nova demanda da modernidade capitalista. Percebe-se um apelo discursivo para a felicidade do consumo, em que a mulher do lar, adquire novas responsabilidades: o consumo, a juventude e a beleza.

Em oposição aos valores modernos que celebram a livre posse de si, a Mulher do Lar  mantem a ordem da comunidade doméstica. E longe de uma ociosidade aristotélica, as mulheres exerceram no interior dos lares atividades e tiveram grande responsabilidade. E essa racionalização da vida doméstica é um traço da modernidade. Vale ressaltar que mesmo com o confinamento, ocorreu um certo grau de atualização ideológica na modernidade para combater aspectos de uma tradicionalidade, pelo menos em dois aspectos: educacional (a educação religiosa foi combatida para a escola formar as novas gerações) e corpo médico (ocorreram grandes estudos e pesquisas para atualizar a rotina doméstica, como novas práticas alimentares e como cuidar das crianças).

Para adequar ainda mais a ideologia da Mulher do Lar foi inserida na cultura a valorização do trabalho doméstico como uma atividade de grande importância, pois as mulheres seria o agente de moralização das famílias. E esse discurso atuou tanto nas classes populares como nas burguesas.

Lipovetsky compreende que existe ambivalência dentro da imagem da Mulher do Lar na modernidade ao manter as diferenças nos papeis sócias, mesmo quando a palavra de ordem era igualdade. Mas a forma dessas oposições entrarem em harmonia foi o discurso de reconhecimento e celebração das funções do feminino, que legitimou o reconhecimento social, no lugar da exclusão e da negação. Obviamente, que nessa imagem sobre as mulheres, elas não possuem a capacidade de construírem suas identidades, estão longe da mulher-sujeito.

O segundo grande discurso sobre as mulheres é a que coloca no mundo do trabalho, nomeado por Lipovetsky, Pós-Mulher do Lar. Esse discurso ganha força e legitimidade nos anos 60, período pós-moderno, e vai colocar a imagem de esposa e mãe como sinônimo negativo do feminino.

Para essa nova imagem de mulher, o trabalho será elemento essencial. E não se pode pensar nessa atividade profissional apenas em segundo plano, deixando as atividades domésticas em primeiro lugar. Ele será um meio pelo qual as mulheres podem construir suas identidades e um meio de autoafirmação, além de instrumento de realização pessoal. Isso significa que as mulheres almejavam a possibilidade de serem protagonistas de suas próprias vidas, dando a ascensão a um individualismo feminino. Assim, elas entram no universo da meritocracia, isto é, elas querem vencer pelo seu esforço no trabalho. Mesmo que mulheres da classe operária ainda tenham uma relação mecanicista com o trabalho, Lipovetsky afirma que mesmo assim não se elimina a nova tendência do feminino de basear a identidade na dimensão do trabalho.

Ao pensar sobre a inserção da mulher no mercado de trabalho, Lipovetsky questiona a distância entre a conquista do direito feminino ao voto, mas só mais tardiamente, elas conseguem alcançar a vida profissional. Isso ocorre devido a mudanças culturais significativas em relação ao consumo e a harmonia com os valores modernos. Em relação ao consumo, a economia baseada no estímulo do possuir fez com que a renda da mulher auxiliasse a família para tentar alcançar o ideal consumista. E sobre os valores harmonizados, primeiramente porque a desvalorização da imagem da mulher doméstica ajudou a fazer com que o discurso se encaixasse com os valores modernos que centravam no prazer e na livre escolha e que celebrava a liberdade.

O consumismo tem forte relação com o sexo, isso é perceptível na erotização na publicidade, por exemplo. Assim, ocorre a promoção e profusão do sexo e de seus referenciais. Quando ele foi deixando de ser tabu, de forma lenta, a relação de mulher com o trabalho foi ganhando força, porque, ao mesmo tempo, a relação entre trabalho feminino e promiscuidade foi perdendo a associação. Ou seja, a vida profissional da mulher demorou em comparação a vida política, porque estava em jogo, o controle dos corpos – o poder masculino demorou a abrir mão da subordinação do sexo frágil.

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No primeiro modelo de mulher preconizado por Lipovestsky, o masculino ainda se sobrepõe ao feminino. Mulheres com direito a voto, podendo trabalhar mesmo ganhando menos em relação ao homem, entre outras conquistas que resultariam no conceito da pós-mulher da Pós-modernidade, são novidades do século XX. Desde os primórdios, quando se começou a registrar a História, a mulher é submetida ao homem. Lipovetsky explica que Eva foi a “primeira mulher”, pecadora e diabolizada na tradição judaico-cristã. Era ela a responsável pela infelicidade do homem. Já na Idade Média, a visão do sexo feminino é oposta à anterior. Uma espécie de anjo que acalenta e seduz com sua beleza o macho dominante. Foram séculos de opressão feminina que marcaram a “mulher-objeto” e até hoje deixam resquícios. “São estes fantasmas de suas antecessoras, de mulheres que carregam a culpa consigo, que as assombram”, diz Lipovetsky em entrevista na internet, citando sua obra A Terceira Mulher – Permanência e revolução do feminino (Companhia das Letras). Só a partir da emancipação foi possível afugentar alguns desses fantasmas e dar espaço “à mulher-sujeito”, como o filósofo define. “Nos últimos cinquenta anos, a condição feminina mudou mais do que a soma dos últimos milênios”, observa o autor. “A revolução feminina é inédita. A contracepção e o engajamento profissional da mulher jamais existiram. E não se trata de uma questão de sua natureza, foi uma construção social”.

É, então, à luz dessa visão mais dialética que Lipovetsky discute a emergência de uma terceira mulher. A primeira foi a mulher diabolizada quando sedutora, de um lado; desprezada e depreciada, porque alienada das funções ditas nobres porque masculinas, de outro lado. A segunda mulher, por sua vez, era adulada, idealizada, instalada num trono, mas ainda subordinada ao homem, pensada por ele, definida em relação a ele. Apesar de marcar uma inegável ruptura histórica, a terceira mulher não faz tabula rasa do passado. Trata-se de um novo modelo surgido nos séculos XVI e XVII que comanda o lugar e destino social do feminino e que “se caracteriza por sua autonomização em relação à influência tradicional exercida pelos homens sobre as definições e significações imaginário-sociais das mulheres”. Em traços sintéticos, os dispositivos que constroem o modelo da terceira mulher são “a desvitalização do ideal da mulher no lar, legitimidade dos estudos e do trabalho femininos, direito de voto, descasamento, liberdade sexual, controle da procriação: manifestações do acesso das mulheres à inteira disposição de si, em todas as esferas da existência (SANTAELA, 2017)”.

Essa terceira mulher, segundo o autor, é caracterizada pelo direito de escolha: casar ou permanecer solteira? Ter filhos ou investir na profissão? Ter produção de filhos independente? A pós-mulher da Pós-modernidade tem as rédeas dos próprios destinos nas mãos, embora ainda convivendo num mundo sob a batuta dos homens no mundo político, econômico e social. “Tanto a primeira quanto a segunda mulher estavam subordinadas ao homem; a terceira mulher é sujeita de si mesma” (LIPOVETSKY, 2000, p. 337). E o processo de emancipação e igualização com os homens é incontrolável. Em muitos países ocidentais, a mulher é livre para escolher se leva adiante a gravidez ou não, independentemente da vontade do companheiro. Em algumas profissões tipicamente masculinas, elas avançam: engenharia, computação, política.

Apesar de reclamarem, as mulheres não abrem mão de cuidar dos filhos, pois acreditam ser um cuidado primordial para a formação de sua prole. Com esse despojamento, participam de parte importante de suas vidas. Encaram, portanto, esse encargo também com prazer. Essa obra desperta um olhar panorâmico sobre a condição da mulher nos séculos XX e XXI e lança desafios e perguntas para o milênio que se inicia: avanços e recuos, reflexões necessárias, com senso crítico e realismo, sem floreios desnecessários. Vivemos, segundo o sociólogo francês Gilles Lipovetsky, os tempos da terceira mulher. A primeira foi recoberta nas trevas dos tempos primitivos, mais mulher que feminina; a segunda, feminina e submissa, fundou o que nos acostumamos a chamar de mulher; a terceira, herdeira de algumas já consolidadas conquistas das lutas feministas, insiste em ser feminina. Para surpresa de muitos, o fim da opressão às mulheres não baniu o feminino. A politização das queixas das mulheres ensinou-nos a identificar e combater o sofrimento feminino. Fica a dúvida de se a vocação ao amor, à maternidade, à sensibilidade, não passariam de restos do passado, velhos clichês.

Em poucas palavras, no terceiro capítulo, são três modelos de mulheres de Lipovetsky: a subjugada, a admirada e a emancipada. Persiste ainda uma condição desigual das mulheres, não obstante seu avanço nas áreas social, econômica e profissional. Apesar da injusta divisão tradicional das tarefas persistirem, elas enxergam tais atividades com prazer. O autor também não enxerga, nesse sentido, mudança nesse quadro à vista:  uma outra lógica da mulher seria esperada, então: conquistar sem perder. O consumismo feminino e o papel administrativo doméstico assumido pelas mulheres (com preponderância no cuidados dos filhos e do lar) é incentivado e imposta, de certa forma, pelo capitalismo. Exemplo palpável disso são as diferenças sociais explicadas ainda porque os homens mereceriam ganhar a mais uma vez que geralmente sustentam a casa. Modelos e identidades profissionais, não obstante dos avanços, reproduzem esse quadro: geralmente a maioria das enfermeiras, professoras, cuidadoras em geral são mulheres. Avanças no profissional e social sem abrir mão de participar da vida dos filhos, como os homens fizeram, seria então o grande desafio proposto para as mulheres e levantado por Gilles Lipovetsky.

O discurso feminista teve que denunciar as armadilhas de se fazer escrava da beleza, do jogo do amor e da maternidade compulsória. Porém, em sua versão sexista, elevou as pautas masculinas de poder e conquista a um padrão de bem universal, como se a solução para as mulheres fosse levar vida de homens… Uma leitura possível das posições de Lipovetsky é trabalhar masculinidade e feminilidade como discursos que se movimentam, não necessariamente atrelados a homens e mulheres. A idéia da “terceira mulher” constitui numa bela reflexão sobre o futuro possível da feminilidade. Em sintonia com seu objeto, o autor se furta de quaisquer certezas, procura apenas ser multifacetado e sensível (CORSO, 2017). Ao que parece, conseguiu.

 

 

 

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REFERÊNCIAS

A TERCEIRA MULHER. Reportagem. Delas – iG @ http://delas.ig.com.br/comportamento/2013-11-29/a-revolucao-feminina-e-inedita-diz-filosofo-criador-da-terceira-mulher.html. Acesso em 21 de maio de 2017.

BAUMAN, Zigmund. Modernidade Líquida. Plínio Dentzien (trad.), Rio de Janeiro:

Zahar, 2001.

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas. Estrategias para entrar y salir de la

Modernidade. México: Grijalbo, 1989.

CORSO, Mario 7 Diana. A psicanálise da Vida Cotidiana. Artigo. Disponível em: http://www.marioedianacorso.com/o-que-eles-tem-que-elas-nao-querem. Acesso em: 21 de maio de 2017.

LIPOVESTSKY, Gilles. A Terceira Mulher. Permanência e Revolução do Feminino. Maria Lucia Machado (trad.), São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SANTAELA, Lúcia. Disponível em: http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/10421/1/06_05_Lucia_Santaella.pdf. Acesso em : 21 de maio de 2017.

 

 

 

 

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André Cervinskis é jornalista, ensaísta, mestre em Linguística pela UFPB. Produtor cultural, com vários projetos aprovados pelo FUNCULTURA-PE na área de Literatura. Com várias premiações nacionais e internacionais, tem 13 livros publicados em autoria própria e coautoria. Colabora com o site Interpoética e o jornal U-carboreto, ambos de Pernambuco, e o periódico Correio das Artes na Paraíba. Mora em Olinda-PE e teve avós lituanos. E-mail: acervinskis@gmail.com




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