A poesia de Augusto de Campos


……..A revolucionária e provocativa poesia de Augusto de Campos

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Não há arte revolucionária sem forma revolucionária”, Vladimir Maiakóvski

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Nada mais injusto (e míope) do que acusar a Poesia Concreta de alienada. Falou-se e insistiu-se muito nesse tema: “forma vazia, impasse, alienação”. Chegaram a chamá-la de “rock and roll” da poesia. Mas que nada. Como disse o personagem Amigo da Onça na capa do livro-manifesto “Teoria da Poesia Concreta”, dando uma banana gestual a todos esses incansáveis críticos: “Tó pra vocês, oh, chupins desmemoriados!”

O assunto mereceu até alguns textos reflexivos, como o artigo “Algumas proposições para se pensar a relação entre Poesia e Política na Poesia Concreta Brasileira”, de Gonzalo Aguilar, escrito para o livro-catálogo “Poesia Concreta, o projeto verbivocovisual”, escrito para a exposição sobre os 50 anos do movimento. O texto relembra a famosa polêmica entre Augusto de Campos e Roberto Schwarz, em 1985, por ocasião da publicação do poema “Pós-tudo” na Folha de São Paulo, mas o que nos interessa é o que é dito logo no seu primeiro parágrafo:

“A política não é uma questão que costuma ser associada aos poetas que certa vez formaram o grupo Noigandres. Com efeito, a crítica propendeu a se concentrar nos achados especificamente poéticos de suas obras e a defender uma ética de trabalho de mais de 50 anos, durante os quais a experimentação e o risco foram conservados com assombrosa integridade. Assim, na coletânea de ensaios “Sobre Augusto de Campos“, editada por Flora Sussekind e Júlio Castañon Guimarães, o melhor livro já publicado sobre a obra do poeta até a presente data, nenhum dos 23 textos está focado na dimensão política.”

Em um estudo onde trata da “Crise da Utopia, Crise das Ideologias”, Haroldo de Campos afirma: “nos anos 60 houve a sedução dos inícios da Revolução Cubana, o aguçamento do debate político, a repristinação de uma perspectiva histórica fascinante: a renovação poética entrevia, outra vez, a possibilidade de (como Octavio Paz gosta de dizer) “encarnar-se” na transformação social, como no começo da Revolução Russa, nos anos febris do cubofuturismo, do construtivismo, da revista “LEF”, das “janelas ROSTA, do poema-cartaz e da tipografia experimental de combate. Traduzimos Maiakóvski, recriando-lhe os poemas em toda a sua complexidade técnica; repusemos em circulação o seu lema: “sem forma revolucionária, não há arte revolucionária.” (…) aberto ao universal: uma “poesia para”, capaz de utilizar, na perspectiva do engagement, as conquistas técnicas da “poesia pura”. (…) Veio o golpe de 64, o recrudescimento ditatorial de 68, os longos anos de autoritarismo e frustração de expectativas no plano nacional: poesia em tempo de sufoco.”

Assim, muito mais revolucionários na sua forma de comunicar do que a chamada poesia engajada dos anos 60, os poemas concretos se posicionaram com vigor, inventividade e desafios formais diante dos fatos conturbados da época pré e pós-golpe militar de 1964. Em determinados momentos, quando a barra pesou mesmo, chegaram a se aliar ao que havia de mais avançado na MPB, o Movimento Tropicalista, Caetano Veloso à frente.

Na já citada exposição sobre os 50 anos do movimento, montada há dois anos, vimos que poemas como “Servidão de Passagem” de Haroldo de Campos, (nomeio o nome/ nomeio o homem/ no meio a fome); “Na boca do lobo” (Ronaldo Azeredo) e “Apertar o Cinto”, de José Lino Grünewald; todos do início dos anos 60, explicitavam a abordagem de temas políticos sem abrir mão da pesquisa formal. Em meio à turbulência política e social que antecede o golpe militar de 64, esses poetas vivem o chamado “ salto participante” da Poesia Concreta. Um dos grandes exemplos desse momento é o poema-cartaz “cubagramma” feito por Augusto de Campos, onde pode-se ler com toda clareza que “Cuba Sim” e “Ianque Não”. É desta época o poema “Brazilian Footbal, que ilustra essa matéria.

Em 1965, Augusto de Campos publica o poema-colagem “Psiu”, um crítica aberta aos atos institucionais que prendiam, caçavam e desapareciam com democratas e humanistas que se posicionavam contra o golpe que rasgou a Constituição brasileira. No centro do poema a frase que saia de uma boa: “Saber viver, saber ser preso, saber ser solto”. É desta mesma época outros poemas-petardos e provocativos do mais visual dos poetas concretos. Refiro-me aos poemas “olho por olho” – este dito seria usado, já nos anos 70, no Manifesto do sequestro do embaixador dos Estados Unidos, escrito pelo jornalista Fernando Gabeira -; “SS”, “o anti ruído”, e “luxo”.

Depois, Augusto e Haroldo de Campos se dedicaram as traduções dos revolucionários poemas russos, entre eles e com destaque para Vladimir Maiakóvski, feitas em parcerias com o professor Boris Schnaiderman; e o posicionamento pessoal de Augusto pelos tropicalistas com textos teóricos e o clássico poema “Viva a Vaia”.

Em 1986, já em pleno processo democrático brasileiro, com José Sarney na presidência da república e Celso Furtado no Ministério da Cultura, Augusto de Campos dá uma histórica entrevista a revista de poesia experimental “Bric-a-Brac” que editávamos em Brasília. Nesta longa entrevista, Augusto faz um balanço dos 30 anos da Poesia Concreta e toca em assuntos fundamentais para se compreender essa trajetória. Vinte anos depois, essa entrevista a “Bric-a-Brac” ainda é atualíssima. Publicaremos aqui alguns trechos, enquanto continuamos lutando para levar todas as edições da revista, com todo o seu conteúdo, para o território mundial da web.

Se recordar é viver, vamos vivenciar alguns desses momentos:

 

Oswald de Andrade

“Eu me lembro muito bem da participação de Oswald, já sexagenário ou quase. Era um participante muito ativo das discussões em torno da poesia, brigava muito, era um defensor solitário do modernismo. A propósito, a Pagu, em de seus artigos que transcrevo no meu livro sobre ela, pinta um quadro muito vivo dessa participação, quando compara Oswald ao Trotsky defendendo a revolução permanente. Uma figura solitária incessantemente revolucionária diante daquele quadro que era, digamos, acomodatício e conformista, visto sob a perspectiva segundo a qual a geração de 45 regia contra um clima mais ou menos libertário do modernismo e tendia a retornar às formas fixas como o soneto, com uma certa conduta de seriedade dentro da escola literária. Isso, até certo ponto, correspondia a um arrefecimento daquele sentido de rebelião, que tinha ficado tão evidente na época heróica do modernismo.””

 

João Cabral de Melo Neto

“A gente sempre tendeu a considerá-lo à parte, de uma forma quase marginal, à geração de 45. Ele tinha uma relação até certo ponto ambígua, entendendo que a geração de 45 era algo à qual, por fatalidade histórica, pertencia. Mas estilisticamente a gente sabe que a coisa é um pouco diferente, porque a poesia dele não representava um recuo, uma posição de compromisso com formas anteriores ao modernismo, mas antes um tipo de direcionamento novo, de ordem mais  propriamente construtiva, mas que dificilmente se assemelharia às técnicas de estruturação do verso pré-modernista. A antimusicalidade do João Cabral o levou sempre a afastar-se muito dos padrões mais tipicamente parnasianos ou parnaso-simbolistas, que eram aqueles aos quais volviam os principais integrantes da geração de 56.”

 

Ezra Pound e a renovação das estruturas poéticas

“Acho que o fato de morar em São Paulo, onde havia as livrarias importadoras, como a Pioneira, que estavam muito ativas na época, facilitou isso. A primeira edição dos “Cantos” do Pound nós adquirimos em 1949 e o nosso conhecimento do Pound precedeu ao dos intelectuais franceses em cerca de dez anos pelo menos. Havia aí talvez o problema de que culturas hiperdesenvolvidas, com uma tradição já sedimentada, tendiam a um certo solipsismo cultural, e ficaram nos seus próprios idiomas, ao passo que nós, brasileiros, subdesenvolvidos, terceiro-mundistas, tínhamos aquele espécie de fome universal, antropofágica, que nos levava a querer rapidamente digerir tudo que tinha sido produzido nas mais diversas culturas para encontrarmos o nosso espaço, o nosso momento de intervenção.”

 

Ruptura com Ferreira Gullar

“A ruptura se deu pouco depois da eclosão do movimento concreto. O Gullar procurou desidentificar-se através do movimento neoconcreto. Acho que essa divisão foi muito artificial, porque na realidade se você pegar os quadros que a Lygia Clark, que o Ivan Serpa e que o Aluísio Carvão faziam na época e comparar com os quadros do grupo de São Paulo não vê muita diferença. Mesmo nalguns poemas do Gullar, como o “Mar Azul”, há muita semelhança com a Poesia Concreta que nós fazíamos.

Acho que o Gullar não se conformava muito em embarcar num movimento que já estava teorizado. Então procurou se desidentificar. Aqui em São Paulo nós estávamos muito animados com um trabalho em equipe e o comportamento do Gullar era muito personalista. Ele procurou de todas as maneiras possíveis e imagináveis desidentificar-se de uma maneira até artificial. O grande ponto da discórdia apontado era o de que havia um excessivo racionalismo na nossa produção. Agora eu acho que descobrir racionalismo em poemas que usam duas ou três palavras é meio difícil, é uma coisa imponderável. ”

 

Maiakóvski

No caso específico do Maiakovski houve fatores do acaso, como a existência de uma pessoa maravilhosa como o Boris Schnaiderman, que é o nosso professor de russo, que tem toda uma paixão pela literatura e pela poesia soviética e que nos possibilitou ter um acesso direto ao material da linguagem poética da vanguarda russa, que é uma das mais importantes do nosso século (XX). (…) Era mais fácil obter informações sobre as vanguardas inglesa, francesa do que descobrir a voz vanguardista de Maiakóvski. Ou de poetas russos como Velimir Khlébnikov, Boris Pasternak, como os grandes poetas da vanguarda russa. (…) Claro que Maiakóvski trazia junto a questão ideológica o encargo social do artista. Então, naquela época (anos 60), nós tentamos incorporar essa experiência ao nosso trabalho, sob a perspectiva do lema maikoviskiano: Sem forma revolucionária, não há arte revolucionária.””

 

John Cage

“Cage é mais radical. Ele usa de um processo em que a emoção não entra. Ele faz uma escolha. É feita a escolha do material que ele quer usar. Esse material é submetido a processos de acaso através do I Ching. Não entra nenhum tipo de subjetividade. (…) Minha maneira de trabalhar é mais com esse processo de filtragem de alguma coisa que pode ter a ver com emoção. Eu não procuro, mas não evito a emoção como sistematicamente faz o Cage. Eu aceito essa emoção, mas ela tem que entrar dentro de uma certa estrutura, dentro de uma certa organização sem a qual ela deixa de ser interessante. (…) Mas acho que poesia não é feita exclusivamente de racionalidade. Se ela lidasse só com o racional não seria poesia, provavelmente seria uma reflexão, uma análise crítica, não é isso? Ela lida com material sensível. Ela entra justamente onde o racional se revela impotente para abarcar esse universo. O Cage aceita que processos não sintáticos podem levar muitas vezes a uma desestruturação total da sintaxe. Ele lembra que quando as pessoas estão apaixonadas elas falam por sentenças, às vezes emitem ruídos ou exclamações….quando as pessoas estão emocionadas elas nem falam, às vezes elas se comunicam por gestos. Então há formas de expressão não verbal que podem transmitir modos de você se comunicar que não sejam exclusivamente aqueles ordenados pela lógica da sintaxe, não é isso? ”

 

Nova versão de poema de Augusto de Campos:

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DESCOMEMORAÇÃO
nova versão de BRAZILIAN “FOOTBALL” (1964)
[by Augusto de Campos]

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Em 1964, o Times Literary Supplement de Londres abriu suas páginas para a poesia concreta brasileira, em número dedicado às novas vanguardas da segunda metade do século passado (Changing Gard 2). A publicação ocorreu no nº 3.262, de 3 de setembro de 1964, do famoso suplemento literário. Com uma introdução de Décio Pignatari divulgaram-se vários poemas do grupo. A minha contribuição consistiu no poema “cidade” e mais três outras obras, entre as quais o anti-segregacionista BHITE & WLACK (for nights only), que compus em inglês, embora creditado por um lapso como traduzido por Edwin Morgan, e o satírico BRAZILIAN “FOOTBALL”, em que eu jogava com as palavras GOAL e GAOL (versão inglesa de JAIL) para denunciar o golpe militar que feriu o Brasil. Felizmente para minha saúde, parece que os “gênios da raça” que tomaram o poder não liam o Times londrino…

 


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Luis Turiba é pernambucano, criado no Rio de Janeiro, radicado em Brasília. Fundou a revista de poesia experimental BRIC-A-BRAC, em Brasília, em 1985. Na poesia, tem militância ativa há mais de 30 anos. Publicou seu primeiro livreto, Kiprokó, em 1977, no Rio de Janeiro. Em Brasília publicou Clube do Ócio, em 1980, Luminares, em 1982; Realejos, em 1988; a antologia Cadê?, em 1998; e Bala, em 2005. Em 2010, lançou dois livros em Brasília: “Meiaoito”, pela coleção Oipoema; e o infantil “Luísa, Lulusa: a atriz principal”. No jornalismo, trabalhou em O GLOBO e na Manchete, no Rio de Janeiro, ainda na década de 70. Chegou em Brasília em 1979, onde trabalhou na Gazeta Mercantil, no Jornal do Brasil, no Jornal de Brasília, no Correio Braziliense, onde cobriu a campanha das Diretas e a eleição de Tancredo Neves. Fez assessoria de imprensa para a Assembléia Nacional Constituinte e foi da equipe do Ministro Gilberto Gil no MinC por quatro anos. Publicou um livro com os principais discursos do ministro Gil, editou dois DVDs: Gil na ONU e Programa Mundial da Capoeira. Foi vencedor da Bolsa Literária FUNARTE em 2008, pelo qual escreveu seu livro “Meiaoito”. E-mail: turibapoeta@gmail.com




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