A máquina



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10 de maio – Às 11:30 meu criado Fargo morreu. Trabalhávamos na máquina de suspensão do tempo quando um parafuso saltou das engrenagens atingindo sua garganta. Agora está o corpo diante de mim e não irei removê-lo até entender a razão de sua morte que creio estar vinculado à máquina. Seu relógio de pulso teve o espelho partido ao meio, e, é estranho que os ponteiros do segundo e do minuto sigam em direções opostas e não se encontrem no marco zero do relógio como se na linha vertical da rachadura houvesse um vazio. Há algo mais estranho que observei no relógio, o ponteiro das horas não está marcando onze, mas doze.

12 de maio – Retomei o trabalho na máquina de suspensão temporal. Apesar da imagem de Fargo morto ter me atormentado à noite, era necessário continuar a pesquisa. No laboratório encontrei um jovem sentado ao lado do corpo. Perguntei como fez para entrar; com o rosto fito no morto disse não saber como chegou ali. Estava inquieto, não desviava os olhos de Fargo e sem ainda voltar os olhos me perguntou o que aconteceu, respondi: Um acidente. Quis saber seu nome, não deveria. Ele disse: Fargo. Estarreci-me. Depois, com os olhos sobre mim, perguntou: Este morto sou eu? Fiz “sim” com a cabeça. Estava pálido; os lábios trêmulos; suava frio. Recomendei que fosse se deitar.

13 de maio – Fargo teve um sonho: Viu-se diante de um espelho e o seu reflexo o estrangulava. Depois me disse: – Eu sou aquele reflexo, doutor.

Embora Fargo acredite se tratar de um sonho, penso o contrário.

15 de maio – Meditei sobre o reaparecimento de Fargo e o seu sonho, descobri uma falha nas equações que fundamentam o funcionamento da máquina; conclui: Fargo é um efeito da paridade temporal que a máquina gera. A única solução que encontro é matá-lo. Deste modo, imagino recuperar o equilíbrio da equação.

16 de maio – Diálogo entre eu e Fargo no laboratório às 11 horas:

– Seu relógio de pulso tem uma rachadura intrigante no espelho, na linha do meio-dia. O que acha disso Fargo?

– Não sei o que pensou doutor. Para mim é apenas uma rachadura. Mas ao senhor, imagino que ela represente outra coisa.

– Sim. O espelho de seu relógio está rachado na linha do meio-dia, o que por si é intrigante. Se você observar, há de notar que esta rachadura não se assemelha a uma linha, mas a um rasgo sutil na substância da realidade. Afirmo, por perceber que o ponteiro das horas desaparece nesta linha. Além disso, os ponteiros do minuto e do segundo estão a desencontrar-se, a principio pensei tratar-se de um erro de mecânica, mas não, a verdade é que os ponteiros estão a desviar-se do centro da linha, evitando se anular, como duas partículas de massas iguais a se afastar do núcleo atômico. E o que reforça meu pensamento, é o fato de seu relógio ser idêntico ao de meu auxiliar Fargo, sem excetuar que os relógios encontram-se em condições iguais. A única diferença é a direção do desencontro dos ponteiros. Enquanto o seu se direciona para o leste, o de meu auxiliar para o oeste.

– Suas observações parecem coerentes, doutor. Mas não está claro para mim onde pretende chegar com estas colocações.

– Fargo, acredito que você é uma paridade temporal do meu auxiliar morto. E justamente por isto há um desequilíbrio na função do tempo que precisa ser corrigido.

– E a solução seria a minha morte.

– Sim. Mas não posso matá-lo, não tenho coragem.

– Não se importe, doutor. Eu mesmo o farei.

Fargo se levantou, foi ao cabideiro onde estava pendurado o paletó do meu auxiliar, pôs a mão direita no bolso do paletó e tirou uma pistola. Voltou para a mesa onde estávamos sentados, ajeitou a gravata, colocou o cano sob o queixo, fitou-me com um olhar certo do que fazia, depois sorriu, e, apertou o gatilho. Eram 11:30. Quando tombou no chão, a mão esquerda de Fargo se abriu, nela vi uma bola de papel amassado. Peguei o papel e abri; o que vi escrito não há tempo mais para explicar.

“Sr. Fargo, creio que a esta hora estarei morto, por isto escrevi este bilhete para lhe dizer algo, seu maldito. Deve ter, certamente, imaginado que com minha morte você salvaria a máquina, engana-se, porque não há como salvá-la, olhe a sua volta e há de entender o que digo. A máquina é um conjunto de espelhos. Desde o dia em que a construí não imaginava que surgiria milhares de mim no tempo. Contudo, no momento em que um dos reflexos escapou para fora, compreendi o propósito dela: duplicar. Além deste propósito claro à sua natureza mecânica, havia um outro que ignorei, a da aniquilação de um reflexo por outro reflexo, e, por fim,  do objeto da imagem. Estava certo para mim, eu havia inventado a minha morte. No dia em que o Sr. matou o outro reflexo, a quem chamava de seu criado, conclui que sofreria o mesmo. Aceitei, e isto, porque antes de morrer, deduzi que a imagem não existe sem o objeto. Portanto, Sr. Fargo, agora que estou morto, você irá desaparecer feito uma sombra.”

 

 

 

 

 

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Anderson Fonseca (RJ) é escritor, autor do livro de contos Notas de Pensamentos Incomuns (Ed. Multifoco, 2011). Escreve no blog ZWeiNBx (www.zweibx.wordpress.com). E-mail: luizdovalefon@hotmail.com




Comentários (3 comentários)

  1. Georgio Rios, Um bem elaborado conto, ritmo e força narrativa perpassam as linhas de A máquina,para mim um conto esenssial de ser lido.
    11 junho, 2012 as 19:11
  2. Poemas de San Valentin | Postales de San Valentin, […] muerto. Una palabra entonces, una sonrisa basta. Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto.Aquí podrás encontrar una recopilación de Poemas de San Valentín que podrás regalar a tu ser qu…>Su eternidad duró tanto que el polvo devino estrella; fue el silencio la más bella palabra que […]
    19 junho, 2012 as 0:18
  3. Ronaldo Ferrito, Muito bom, Anderson! Todos os contos estão excelentes!
    22 junho, 2012 as 1:09

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