A importância da Poesia


 

O que os poetas têm a dizer sobre a Poesia? Quais as leituras fundamentais para se imantar com o fazer poético? Quais as principais dicas pra quem deseja se tornar um poeta?

O livro, organizado pelo poeta Edson Cruz e prefaciado pelo escritor e professor da USP Antonio Vicente Pietroforte, conta com a participação de 70 poetas. Confira o prefácio e a relação dos poetas participantes, abaixo.
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À espreita das Musas

Por Antonio Vicente Seraphim Pietroforte

 

Certo dia, recebo do amigo Edson Cruz o convite para fazer o prefácio da Musa Fugidia. O Edson entende de Musas: o organizador do site de literatura Musa Rara [www.musarara.com.br] organiza o livro Musa Fugidia. Por entender das Musas, Edson sempre foi bastante heterodoxo no papel de agitador cultural; apesar de suas escolhas pessoais, ele dá espaço a todos os modos de fazer poesia. Se isso está explícito nos colunistas articulados por ele ao redor da Musa Rara, também se verifica nas páginas da Musa Fugidia, em que 70 poetas foram invocados para responder a três indagações: (1) o que é poesia para você?; (2) o que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?; (3) cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético, justificando suas escolhas.

A importância da Musa Fugidia não para, entretanto, apenas em suas indagações formais e filosóficas, uma vez que, tanto fazer poesia quanto refletir sobre ela, são atividades políticas. Por isso mesmo, gostaria de começar o prefácio refletindo sobre qual o papel de empreitadas como as do Edson Cruz e de outros militantes da literatura.

Dizer que a poesia não serve para nada é afirmação bastante infeliz. O que seria “servir”? No caso, penso “servir” significa “ter utilidade”? Mas utilidade para fazer o quê? Não é difícil perceber, pelo menos, dois modos básicos de valorizar objetos: (1) eles podem servir para alguma coisa; (2) eles têm fins em si mesmos. Urinóis servem para urinar, já o Chafariz, de Duchamp, é obra de arte. Desse ponto de vista – diga-se de passagem, ponto de vista bastante simplório –, a obra de arte não serve para nada e, no limite dessa argumentação infantil, apenas coisas práticas – aquelas que servem para alguma coisa – podem circular em sociedades liberais, capitalistas, enfim, regimes burgueses. Por isso mesmo, em tempos da burguesia, os artistas comerciais – aqueles que, por transformarem suas obras em mercadorias, vendem-se para vender – tendem a ser desvalorizados pelos “verdadeiros” artistas.

Não vou, porém, enveredar por essa discussão; quero, apenas, fazer dois destaques: (1) a arte não é, simplesmente, um objeto e seus valores; (2) a arte, sem se perder nas malhas do capitalismo e da sociedade de consumo, serve para muitas coisas além de fechar-se sobre si mesma. A palavra “objeto”, por designar quase tudo, termina, em suas generalizações conceituais, não designando nada, muitos menos algo – “algo” é outra palavra suspeita – tão complexo como é a arte. Minha argumentação não vai, todavia, por aí; ninguém conseguiu definir arte porque cabe a ela – nossa musa fugidia – escapar das definições.

Quanto à sua utilidade, entre tantas, pelo menos para mim, a arte ajuda a fugir de estupidez porque ela melhora a qualidade dos meus pensamentos e reflexões. Em momentos tenebrosos, quando canalhas neonazistas e fanáticos religiosos buscam tomar o poder por meio de bancadas políticas e de movimentos supostamente nacionalistas, a verdadeira arte sempre se impõe, mesmo quando proibida. Por isso mesmo, iniciativas como a Musa Fugidia são, antes de tudo, manifestos políticos e, porque não dizer, revolucionários, pois, antes de pretenderem mudar sistemas sócio-políticos, estimulam as inteligências, o primeiro passo para quaisquer mudanças significativas.

Retomando as indagações propostas pelo Edson, a primeira – “o que é poesia para você” – é bastante difícil, não porque não haja resposta, mas porque há muitas delas. Embora faça prosa e poesia, nunca considerei o que seria fazer arte literária. Sempre que penso o que é poesia, penso em termos de linguística e semiótica, minha formação acadêmica e profissão desde que me formei em Letras, em 1990.

Para os linguistas, talvez a reflexão mais significativa a esse respeito – tanto para confirmar, quanto para discordar dela –, seja a de Roman Jacobson de que o poético se faz quando há projeção das equivalências, do eixo da seleção, no eixo da combinação dos elementos de quaisquer linguagens. Trata-se de afirmação técnica, mas nem por isso ela deixa de ser instigante para quem se dá ao trabalho de entendê-la e, consequentemente, meditar sobre ela.

Em linhas gerais, as línguas e demais semióticas são formadas por sistemas de signos; quando tais semióticas se manifestam, há uma articulação entre selecionar os signos do sistema e combiná-los entre si. Restringindo-se apenas às línguas naturais, é fácil observar como há equivalências entre esses signos, que se aproximam por meio de, pelo menos, três grandezas: (1) a dos significantes prosódico-fonológicos, gerando rimas, aliterações, assonâncias, pés de versos estabilizados; (2) a dos significados conceituais, gerando metáforas, metonímias, comparações, polissemias; (3) a dos signos, gerando anáforas, elipses, quiasmos, anagramas. Quando tais propriedades, intrínsecas aos sistemas de signos, são realizadas nas muitas combinações entre eles – pois são nessas combinações que as figuras de linguagem lembradas se manifestam e podem ser sentidas e entendidas –, a poesia surge.

Não se trata de aprisionar a poesia em fórmulas incompreensíveis, mas de lembrar seu verdadeiro estatuto: o de ser o fundamento de todas a linguagens. A observação de Jacobson mostra, a seu modo, como as linguagens são formadas em suas infinitas equivalências, que são os fundamentos de articulação dos sistemas de signos, isto é, os princípios de suas existências semióticas. Desse ponto de vista, as linguagens não são sistemas denotativos de referências às coisas do mundo, que às vezes podem se tornar poesia; as linguagens são poesia e, vez ou outra, são utilizadas para fazer referências. Ao se falar sobre o mundo, valendo-se de algo que não é ele, já há poesia; em outras palavras, Jacobson mostra o quanto o poético é a base da significação humana.

As reflexões de Jacobson vão além das palavras e das frases, indo ao encontro das dimensões dos discursos e da argumentação. Desse modo, em suas equivalências textuais, a significação da poesia se torna, potencialmente, também infinita, sendo, apesar de possível definir seus princípios, impossível definir seus fins. Jacobson, em sua fórmula, reflete sobre a criação e a liberdade, justamente aquela em que poesia pode ser definida entre tantos discursos afins, contrários, contraditórios, entre tantas harmonizações e polêmicas.

As questões seguintes – “o que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira” e “cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético” – são complementares em, pelo menos, um aspecto: entre o que os iniciantes devem fazer, está, com certeza, ler; em suas leituras, aparecem poetas, poesias, textos de referência. As duas questões podem, talvez, ser combinadas em uma única: de que poeta você gosta mais? Bem, isso depende…

Desde de 2005, ajudo a organizar recitais e entrevistas com escritores; muitos deles afirmam gostar dos concretistas, do Roberto Piva, da Ana Cristina César e do Glauco Mattoso. Ora, isso que é atualmente busca de sínteses, esquizofrenia pós-moderna, pluralismo histórico ou ecletismo estilístico, reflete, também, fenômenos linguísticos e semióticos. As diferenças ideológicas entre Piva e os concretistas não são difíceis de verificar; por isso mesmo, é possível salientar suas diferenças semióticas.

Enquanto os concretistas tendem a desmontar as linguagens verbais, articulando-as com linguagens visuais, Piva e as poesias beat e surrealista emuladas por ele, predominantemente pensadas em fluxos prosódicos, aproximam-se da música e das artes performáticas – a poesia beat explicita suas relações com o jazz; Jorge Mautner, poeta semelhante a Roberto Piva em alguns aspectos, faz poesias e canções. Em termos linguísticos, os concretistas lidam diretamente com os níveis fonológico, morfológico, sintático e semântico das línguas, valendo-se das semióticas visuais para intensificar isso. Já os poetas beats investem no fluxo oral em performances e declamações, muitas vezes seguidas de improviso, com variações em torno de temas que podem ser frases, assonâncias etc. – o conhecido Uivo, de Allen Ginsberg, emulado por Piva no poema Os anjos de Sodoma, está baseado na oração “eu vi /substantivos/ que /oração subordinada adjetiva/” e seus desdobramentos –. Em termos semióticos, concretistas enfatizam as descontinuidades da língua, desmontando palavras; poetas beats enfatizam suas continuidades, inserindo a palavra em fluxo entoativos – costumo chamar poetas linguistas aos primeiros e poetas pregadores, aos segundos.

Entre essas duas formas de fazer poesia, há poetas que preferem organizar os fluxos entoativos em versos metrificados – seriam os poetas arquitetos – e, contrariamente, aqueles que, em vez de segmentar as palavras, buscam aproximar a poesia da fala coloquial – seriam os poetas conversadores –. São as tendências de, respectivamente, Glauco Mattoso e Ana Cristina Cesar.

Em termos semióticos, entre poetas linguistas, conversadores, pregadores e arquitetos, a poesia segue por, pelo menos, quatro regimes de composição, cada um deles com propriedades específicas. Em linhas gerais: (1) o poeta linguista, ao insistir na desmontagem do sistema verbal, tende a trabalhar conteúdos metalinguísticos, utilizando a linguagem para falar da própria linguagem; (2) o poeta conversador, com versos livres e figuratividade menos abundante, geralmente trata de temas engajados; (3) o poeta pregador, ao insistir no fluxo discursivo, deriva para conteúdos delirantes; (4) o poeta arquiteto reutiliza e inova formas já consagradas. Não se trata de aprisionar a poesia em outra fórmula, mas de mostra como, por meio de poucos processos discursivos gerais a abstratos, a ela se multiplica e varia infinitamente.

Conhecendo os regimes de engenharia poética, é possível responder “qual poeta você gosta mais”: depende do regime adotado, pois cada regime solicita, dos leitores, modos diferentes de apreciação. Entre os poetas linguistas, eu prefiro Ernesto Manuel de Melo e Castro e Ana Hatherly; dos conversadores, gosto bastante de Ferreira Gullar e Fiama Hasse Pais Brandão; dos pregadores, sem dúvida escolho o Roberto Piva; entre os arquitetos, admiro três: Bocage, Glauco Mattoso e Pedro Xisto.

Escolher os regimes não envolve apenas escolher modos de fazer poesia; envolve dialogar com críticas, manifestos, teorias literárias e, como não poderia ser diferente, lições de poética e de criação literária. A respeito das sugestões de leitura, que são também lições de arte, além dos poetas brasileiros e portugueses citados antes, eu recomendaria ler: (1) dos poetas linguistas, é indispensável conhecer Stéphane Mallarmé – refiro-me aqui à composição de “Um lance de dados jamais abolirá o acaso” – e e e cummings; (2) entre os conversadores, Bertold Brecht e, é claro, Charles Bukowski; (3) dos pregadores, sem dúvida recomendo ler Walt Whitman e Allen Ginsberg; (4) dos arquitetos, Ariosto, Dante e Petrarca são geniais.

Pois bem, partir de algumas generalizações para prefaciar a Musa Fugidia – a definição poético-linguística de Jacobson e a minha abordagem semiótica dos regimes de engenharia poética – foi como busquei evitar fazer escolhas movidas por minhas opiniões pessoais e, com isso, perder de vista a importância do livro, que é, justamente, sua pluralidade. Por ser fugidia – como encaminha Jacobson em sua formulação –, a poesia não pode ser definida – o que é poesia para você – apenas em um discurso; suas definições devem se perder nos numerosos diálogos em que se busca por ela. Por ter muitas faces – seus muitos regimes de composição – e para ser devidamente representada, muitos devem refletir sobre ela, ressignificando-a em seus variados pontos de vista.

 

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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte é poeta, prosador, editor e professor livre-docente em Linguística pela USP. É autor de inúmeros livros na área acadêmica e literária.

 

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No lançamento haverá um diálogo em torno das questões do livro e do tema: A Importância da Poesia em Tempos de Banalização e Desumanização.

Participações: Ademir Assunção, Antonio Vicente Pietroforte, Claudio Willer, Ernesto de Melo e Castro, Marcelo Ariel e Paulo Cesar de Carvalho. Mediação: Edson Cruz

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70 poetas

Ademir Assunção
Adriana Zaparolli
Adriano Espínola
Affonso Romano de Sant’Anna
Alexandre Guarnieri
Alfredo Fressia [Uruguai/Brasil] Amador Ribeiro Neto
Ana Elisa Ribeiro
André Vallias
Aníbal Beça
Antonio Carlos Secchin
Antonio Cicero
Armando Freitas Filho
Augusto de Campos
Carlito Azevedo
Carlos Felipe Moisés
Claudio Daniel
Claudio Willer
Douglas Diegues
Elisa Andrade Buzzo
Ernesto de Melo e Castro [Portugal] Eunice Arruda
Felipe Fortuna
Flávia Rocha
Floriano Martins
Frederico Barbosa
Francisco Alvim
Glauco Mattoso
Guilherme Mansur
Horácio Costa
Jairo Pereira
João Rasteiro [Portugal] Jorge Rivelli [Argentina] Jorge Tufic
José Kozer [Cuba/EUA] Lau Siqueira
Linaldo Guedes
Luis Serguilha [Portugal] Luiz Roberto Guedes
Luis Turiba
Marcelo Ariel
Marcelo Tápia
Marcio-André de Sousa Haz
Marco Aqueiva
Marcos Siscar
Maria Estela Guedes [Portugal] Micheliny Verunschk
Nicolas Behr
Nicolau Saião [Portugal] Paulo César de Carvalho
Paulo de Toledo
Paulo Henriques Britto
Reynaldo Bessa
Ricardo Aleixo
Ricardo Corona
Ricardo Silvestrin
Rodrigo Garcia Lopes
Rodrigo Petronio
Ronald Augusto
Rubens Jardim
Ruy Espinheira Filho
Sebastião Nunes
Sérgio Medeiros
Sérgio Vaz
Sylvio Back
Tarso de Melo
Tavinho Paes
Ulisses Tavares
Vicente Franz Cecim
Washington Benavides [Uruguai]

 

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Pra adquirir o livro: https://editoramoinhos.com.br/loja/musa-fugidia/
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Evento no face:
https://www.facebook.com/events/151618558815253/

 

 

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