A herança e a procura


 


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O escritor Chico Lopes, que publicou três livros de contos (“Nó de sombras”, “Dobras da noite” e “Hóspedes do vento”) e recentemente lançou a novela “O estranho no corredor” (editora 34/SP) na Livraria Cultura em São Paulo, lançará em sua terra natal, Novo Horizonte, SP, seu primeiro livro de memórias, contando de sua vida, sua formação artística e seus amigos de geração naquela cidade. O livro chama-se “A herança e a procura”, tem 167 páginas, foi editado pela editora Ler de Brasília e traz na capa um óleo pintado pelo próprio autor.

O lançamento será no dia 8 de junho, às 20h, na Rádio Esperança FM (Rua Otaviano Marcondes, 797).

“Espero abrir uma nova picada cultural – a do memorialismo – em minha cidade natal”, diz o autor. “Lá está sendo construída uma Casa da Cultura e minha contribuição é esta: contar minha história, que se confunde com a história cultural de Novo Horizonte nas décadas de 1960, 1970 e 1980”

 

Confira um trecho do livro:

 

Minha mãe era bem um exemplo de como as mulheres só tinham a perder no velho patriarcalismo – era de uma família grande, com vários irmãos cujos nomes vivia lembrando para nós – Vitório, Placídio, Amélia – e evocava, triste, um passado melhor, onde era vista como uma das jóias da casa, ia a festas, cantava, tudo muito bem, até que casou-se com meu pai.  O casamento, para ela, foi uma transformação indesejável, uma perda, uma completa renúncia a si mesma; aprendeu a falar espanhol muito bem e dizia até que o falava melhor que as cunhadas, das quais só tinha queixa, pois fora morar com a família de meu pai e os conflitos a magoavam muito; obrigavam-na a trabalhar como mula, a lavar roupa, a engolir humilhações. Era o que nos dizia, amargurada, disseminando tristeza e ressentimento infalíveis em suas conversas. Eu concluía que esses casamentos deviam parecer mais raptos e grilhões, as felicidades conjugais para as mulheres resumindo-se a quê? – filhos e mais filhos, obrigações e obrigações. Em nosso egoísmo comodista de filhos, porém, achávamos que elas eram santificadas pelo trabalho e a servidão, não queríamos ver o sofrimento perturbador e a injustiça tremenda de que padeciam. Perdeu-se de si mesma e raramente dizia algum provérbio em italiano – sabia espanhol fluentemente para discutir com meu pai, o que acontecia com bastante freqüência.

Falava de lugares próximos à Catanduva como Fernando Prestes e Quilômetro Sete, de seus irmãos em São José do Rio Preto, de sua madrasta (perdera a mãe muito cedo). Naquele tempo, parecia que, ao casar-se, uma mulher nem mais aspirava a contatos mais constantes com a família, como se passasse a pertencer ao marido feito um objeto patrimonial fixo, sem direito a voo algum, não podendo mais que sussurrar preces e lamentos. Quando lhe morreu a madrasta, pagou um “carro de praça” – os táxis eram conhecidos assim – para que fôssemos, apenas eu e ela, a São José do Rio Preto, a uma casa certamente periférica cheia de gaiolas de pássaros (“passos pretos”, a maior parte), cheia de gente, onde eu me lembro de ter visto uma morta num caixão, profusamente coberta por rosários. Foi esse o único simulacro de avó que vi, e já defunta. Na volta, ela silenciosa e pensativa, paramos em Ibirá, estância termal famosa naqueles tempos. Tomamos um refrigerante. A mesa de imitação de mármore me parecia uma coisa rara, eu a afagava, achando-a fresca e deliciosa ao tato. Vou revê-la sempre do outro lado da mesa, tristíssima, pensando em coisas que eu não podia entender, então. E talvez não entenda direito até hoje.

 

 

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[O livro tem tiragem limitada e pode ser adquirido com o próprio autor, pelo e-mail franciscocarlosl@yahoo.com.br ]




Comentários (3 comentários)

  1. Carlos Trigueiro, Parabéns, Chico Lopes, pois este pequeno trecho do seu “A herança e a procura” já impressiona pelas emoções desarquivadas da memória. E se todo memorialista busca um corajoso reencontro consigo mesmo, o título vem a calhar.
    8 junho, 2012 as 2:50
  2. chico lopes, Trigueiro: Obrigado pelo comentário favorável. Gostei muito de você como memorialista, com uso vigoroso da palavra e de expressões regionais, lembrando o teu Amazonas natal, em “Memórias da liberdade”. Sinto-me satisfeito sendo elogiado por um memorialista do teu nível.
    12 junho, 2012 as 17:08
  3. Daniel Lopes, Gostei muito do trecho, Chico. Meus parabéns!
    20 junho, 2012 as 23:55

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