A flor dentro da árvore



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A reinvenção de Bárbara: não vim quebrar as pernas do sol

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Se você está aqui, amigo leitor, devido ao bonito título desse novo livro da poeta e romancista Bárbara Lia, A flor dentro da árvore, saiba que a mim ele atraiu. Uma coisa dentro da outra, de múltiplos sentidos, nesse caso também define a concepção do volume. A partir da leitura da epígrafe da poeta Emily Dickinson (1830-1886), que inaugurou junto com Walt Whitman a moderna poesia norte-americana, o leitor pode desconfiar que os títulos dos poemas, sempre entre aspas, sejam versos, ramos de Emily, e se o faz, acerta em cheio.

O que nos poetas costuma ser um dos rostos do acaso, parir versos a partir de um trecho de leitura, Bárbara sistematiza, poema a poema, e com voz própria. Emily, assim, figura como uma paixão inseminadora. Não que seja a única: poetas, escritores, músicos, artistas plásticos, filósofos, seres míticos e ficcionais são citados, como se de todos a poeta e a obra necessitassem para existir.

Com voz forte e corajosa, Bárbara diz a que veio: “Não nasci para resfriar o mundo/ Neste lento cortejo de omissões/ (…) Não vim quebrar as pernas do sol/ (…) Nasci para amar sem lastro/ Para dançar no pátio/ It’s my way” (“Até que os serafins acenem com seus chapéus brancos”). E pugna pela transparência diante do outro: “Teço/ Um ego-vidraça/ Para que enxergues/ Meu Eu// Teço/ Uma nuvem lassa/ Cortina que qualquer mão/ Atravessa// Teço/ Um hímen de fumaça” (“Uma migalha de mim”).

Bárbara dá a ver como um mero sinal impacta: “Til a til emendados/ Sinuosa corda/ Negra/ Infinita// (…) Til a til retirados/ De cada não/ Que ouvi na vida”. Contudo, a voz lírica não se submete: “De não em não/ Alçar estrelas” (“Rota de Evanescência”). Longe de convocar o leitor a olhar apenas para dentro, trata de “ruas bombardeadas” e “oito países/ a comandar a Terra” (“Sinal cifrado para enovelar o divino”), evocando poeticamente invasões de países como Somália, Iugoslávia, Iraque, Afeganistão e Líbia: “Oito canhões na praça de guerra/ Apontam para o peixe/ Que traz a paz nas guelras” (“Doce como o massacre de sóis”).

Se o seu nome, sua identidade vital e poética, se constrói não só da própria experiência, mas da de muitos, especialmente artistas, o pai é quem a nomeia: “Meu pai amava/ A amada do poeta”. Então somos levados a Minas de Tiradentes, Drummond, Guimarães, Adélia, Milton, e à realidade do interior do Brasil através da letra de “Cuitelinho”, nome dado ao beija-flor em canção popular reconstruída por Paulo Vanzolini. O que nos autoriza a pensar que o nome Bárbara relaciona-se com o da brava inconfidente Bárbara Heliodora, tema de liras do seu esposo, o árcade mineiro Alvarenga Peixoto, autor de “Bárbara bela,/ Do norte estrela,/ Que o meu destino/ Sabes guiar”. Versos como “Meu pai plantou-me/ Em Minas”, sendo Bárbara Lia de Assaí-PR, sustentam essa recepção. Observe mais uma vez o leitor, que tudo nasce de um verso de Emily, título do poema (“Toquei seu berço silencioso”). Em outro, o nome ecoa transmudado: “O tosco me agride/ Tudo o que é rude/ Um passo atrás/ A cada farpa/ A cada sílaba bárbara” (“Remando no Éden”). Em suma, se o pai nomeou-a poeta, atribuiu-lhe ainda um nome-verso, Bárbara Lia.

A poesia, reconhece ela, não se dá sem riscos: “Não olhes o sol/ A olho nu// Isto se chama/ Violentar a Deus// Irado, Ele abrirá/ Escaras em tua retina// Abrirá o portal/ Do abismo// Para cegar teu olhar/ Que ousa afrontar// A Luz!” (“Escanear os céus com um ar suspeito”). E assim, Bárbara alcança realizar sua obra, “Arco-íris na retina/ Uma luz difusa/ Uma musa?/ Emily…/ Ninguém mais” (“Remando no Éden”).

Sidnei Schneider

 

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“A lentidão das palavras do arcanjo ao acordá-la”

 

O sagrado despe as ilusões

e abraça as árvores mortas

Suas folhas azul esmaecido

qual manto da Virgem de Cambrai

 

Os ossos das árvores adoeceram

e elas morreram – azuis –

Antes que tornassem brancos

os seus cabelos

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“Até que os serafins acenem com seus chapéus brancos”

 

Não nasci para resfriar o mundo

Neste lerdo cortejo de omissões

Estas palavras interditas

Suspensas

 

Não vim quebrar as pernas do sol

Silenciar cada bemol

Não vim para arrebentar o anzol

Do velho de Hemingway

 

Sou mar e trovão no coração

Nasci para amar sem lastro

Para dançar no pátio

It is my way

 

 

“Doce como o massacre de sóis”

 

Oito canhões na praça de guerra
Apontam para o peixe
Que traz a paz nas guelras

Quatro gaivotas suicidas
Lambem o babado azulado
Do triste mar-flamenco

Lembro um filme de Babenco:

Ana e o vôo
Mariposas no quarto lúgubre
Suas mãos em concha
A esmagar a eternidade insalubre

 

 

“Dame el ocaso en una copa!”

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Velhas estradas bifurcadas

Lentas aparições de fantoches

Nas alamedas do nada

 

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“O gelo da morte na vidraça”

 

Láudano para as dores reais

estas que bailam

nos olhos ejaculados

 

Para as dores invisíveis

chá de espectros

na chávena em chamas

 

Nunca me livrarei

dos vampiros anêmicos

Nunca os expulsarei

da mesa rústica

de sal e conchas

 

Ao meu redor

a dança alucinada –

reverso do tango:

 

Ódio amornado em mel

Ódio guardado vaporoso

Ódio consagrado em si bemol

 

Purpurina enfática cai

Nas feridas frias

Como manto de rainha bastarda –

Azul – de ódio adulterado

 

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“A liberdade de morrer”

 

As asas que tu me destes

Rotas de Invernos

Ancoradas na ausência

 

As asas desfraldadas

Em suicídio adiado

No parapeito viscoso

– Décima espiral do Inferno de Dante

 

 

 

“Remando no Éden”


Um olho de Emily

É Deus

O outro é Fera

Um olho é Eva

O outro é Lilith

No branco rosto

Lábio granito

Do branco vestido

Vaza uma luz que emana

E entontece

Nada a fazer

Depois de remar no céu

Nada mais a fazer

Quando se bebeu

Versos estrelas:

– Auroras gestadas

Carta de vôo de pássaros

Palavras de arcanjos

O ocaso em uma copa

O silêncio do oceano laminado –

O tosco me agride

Tudo o que é rude

Um passo atrás

A cada farpa

A cada sílaba Bárbara

Sibila frase agulha fina

– Avesso de Sibila –

Sífilis purulenta

Na pele da poesia

– Letargia –

Um passo atrás

Um véu

Dois véus

Uma estrada

Um muro

Um jardim

Uma porta

Pétrea e escura

Uma cama

Uma escrivaninha

Um quarto branco

Arco íris na retina

Uma luz difusa

Uma musa?

Emily…

Ninguém mais.

 

 

 

 

 

 

 

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Bárbara Lia, Poeta e Romancista paranaense. Destaque em vários concursos, entre eles: Prêmio Sesc de Literatura (2004 e 2005), Conc. de Poesias Helena Kolody ( 2006 e 2007),  Conc. Nacional de Contos Newton Sampaio (2009),  PrêmioUfes Literatura (2009).  Faz parte do livro de ensaios O que é poesia? (Ed. Confraria do Vento) organizada por Edson Cruz. Participou da Antologia H2Horas (Cronópios/Dulcinéia Catadora) e da Antologia O Melhor da Festa 3  (Festipoa/ed. Casa Verde – 2011). Publicou os livros de poesia: O sorriso de Leonardo (2.004), O sal das rosas (Lumme 2.007),  A última chuva (ME  – MG – 2.007), Tem um pássaro cantando dentro de mim (2011). Criou o projeto 21 gramas – livros artesanais. Publicou os Romances: Solidão Calcinada (Sec. da Cultura / Imprensa Oficial do Paraná – 2008) e Constelação de Ossos (ed. Vidráguas – 2010) Blogue: http://www.chaparaasborboletas.blogspot.com/ E-mail: barbaralia@gmail.com

 

Sidnei Schneider é poeta, tradutor e contista. Autor dos livros de poesia Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer, 1999) e tradutor de Versos Singelos/José Martí (SBS, 1997). Participa de Poesia Sempre (Biblioteca Nacional/MinC, 2001), Antologia do Sul (Assembléia Legislativa, 2001), O Melhor da Festa 1 e 2 (Nova Roma, 2009; Casa Verde, 2010) e de outras dez publicações. 1º lugar no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu, UFRGS, 2003 e 1º lugar em poesia no Concurso Talentos, UFSM, 1995, de um total de treze premiações. Publicou artigos, poemas, contos e traduções de poesia em jornais e revistas. Participa do projeto ArteSesc e é membro da Associação Gaúcha de Escritores. Blog: http://umbigodolago.blogspot.com/




Comentários (17 comentários)

  1. Nydia Bonetti, A cada sílaba – Bárbara. Maravilhosa, sempre. A visão das árvores que morreram azuis, é comovente – e bela. Abraços!
    11 março, 2012 as 19:38
  2. Bárbara Lia, Oi, Nydia! De poeta para poeta: Obrigada! Bjs
    11 março, 2012 as 22:33
  3. CHICO LOPES, Bárbara, Emily Dickinson era única e você também é uma figura única na poesia do Brasil. Sempre curto muito tuas imagens, concisas e fortes, e as tuas palavras seguras (embora possam tratar de coisas tão tênues e evasivas). Parabéns.
    12 março, 2012 as 13:44
  4. Bárbara Lia, Caríssimo Chico, grande alegria encontrar aqui suas palavras. Gracias,eu as guardarei com carinho e cuidado. Grande abraço.
    12 março, 2012 as 16:55
  5. raymundo rolim, Aquim tá tudo lindo, aqui é a parte perfeita do mundo que os poetas salvam. O mundo é salvo pelos poetas e pelos cães que uivam para a lua e o nada. Assim o mundo se salva, entre o nascer e o por do sol. Beijos
    13 março, 2012 as 19:47
  6. Bárbara Lia, Gracias pelas belas palavras, poet(a)migo Raymundo Rolim. Que assim seja e os poetas sigam a salvar oos dias e as noites. Bjs
    13 março, 2012 as 20:03
  7. aidil, alex.silvaaguia@hotmail.comoce é maravilhosae tenho certeza que podemos esperar mais livros tão lindos como este,parabéns pelo seu dia.bjs
    14 março, 2012 as 17:16
  8. aidil, Voce é maravilhosa e tenho certeza que podemos esperar mais livros tão lindos como este,parabéns pelo seu dia.bjs
    14 março, 2012 as 17:18
  9. Bárbara Lia, Obrigada por me desejar o que eu mais desejo, ir em frente com a Poesia. Gde abraço.
    15 março, 2012 as 17:29
  10. terso rimo, bárbara lia/ pelo jeito deixou de ler/ e deu no que deu
    18 março, 2012 as 18:17
  11. chambel santos, assim, teu: “Ao meu redor a dança alucinada -” ou assim, doutros: “… e o cigarro encostar-se-á ao seu, o lume passará de um para outro, de uma pessoa para outra pessoa, e então, no meio da eternidade deserta, serão assim os nossos dias ….” um beijo, barbara
    11 abril, 2012 as 10:07
  12. Bárbara Lia, Chambel querido, abrace Portugal por mim. Obrigada por ser – presença – e que siga a dança alucinada, sem fel, apenas o mel e as trocas belas que fazem o universo girar. Bjs
    12 abril, 2012 as 12:59
  13. Kátia Torres Negrisoli, Bárbara e seus textos poéticos lindos, maravilhosos, encantadores como flores dentro de árvores. Escondidas, quietinhas e mais valorosas. Um aceno das folhas e caímos ao seu tronco, em leitura prazerosa! Parabéns, pela sensibilidade com as palavras, pelo tato … e viagem que nos proporciona. Abraço de carinho! “Dame el ocaso en una copa!” . Velhas estradas bifurcadas Lentas aparições de fantoches Nas alamedas do nada
    23 abril, 2012 as 15:59
  14. Ana Lucia Vasconcelos, sobre os belos e fortes poemas da Bárbara Lia!!Bárbara fiquei encantada com esta nova safra de poesia que vem do fundo da alma!!!!beijos e parabéns!!!
    23 abril, 2012 as 23:50
  15. Bárbara Lia, Kátia e Ana Lúcia, obrigada pela leitura, por partilhar este momento – flor e árvore. Tem o mistério de Emily, a reclusão que obriga a adentrar alma a dentro, tirar de lá o desencanto e alguma beleza. Fiquei muito feliz com a edição deste livro, com a cara e a coragem, a bela apresentação do poeta Sidnei Schneider. Mais um passo e o caminho é longo… Kátia, esta poesia “Dame el ocaso en una copa” integrou a exposição realizada pela poeta Sandra Santos em Porto Alegre. Poesia em QR Code, no Castelinho em Poa e tbém na última Feira do Livro. Minha ligação com o Rio Grande do Sul, livros, eventos, momentos poéticos, em algum momento passa por Porto Alegre. Bjs
    24 abril, 2012 as 0:44
  16. Araceli, Bia, Poemas muito bonitos…dá para sentir o sagrado…em epifania! Abraço
    29 abril, 2012 as 15:15
  17. Bárbara Lia, Gracias, Araceli. A poesia é sagrada e também profana, é tudo que revela com arte o que há de humano e divino em nós. Bjs
    29 abril, 2012 as 16:47

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