A filha do livreiro



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“Apesar dos poucos habitantes, o gosto pela leitura existia em Libertazul”, anota o narrador de A filha do livreiro. Ao ler as personagens Letícia e Ana Clara lendo, o leitor do livro de Marcela Tagliaferri Ávila avança pelo sedutor, complexo e incômodo campo da metaficção. Mundo que dialoga com outros mundos internos às personagens e só apresentados ao leitor do livro através da onisciência do narrador. Aqui, o narrador é o autor. E também se desdobra assumindo novas vozes, movendo-se ao balanço das ondas do mar sonoro que já levou filhos de mães suicidas.

As personagens-leitoras são os motores dos acontecimentos. O título do livro indicia isso. Lemos a leitura do livro dentro do livro. E lemos a escrita a partir da leitura de dentro do livro: “Por mais que Letícia buscasse saídas para que Ana Clara não fosse assassinada, não encontrava nenhuma. (…) Não dependia dela, Ana Clara pedia aquela morte. (…) e escreveu”. E não pára por aí. Tudo em A filha do livreiro quer ser ficção porque então ela, não tendo compromisso com a realidade, cria a realidade das personagens, das vidas que pulsam mais fortes na livraria de Libertazul ou na biblioteca doméstica.

Guimarães Rosa, García Marques e Sherazade se aproximam e se separam, signos em rotação, histórias que se cruzam, para tramar o texto que lemos, posto que na metaficção a intertextualidade integra-se como procedimento estético. “A mulher estava radiante como não se via há tempos. Comentou sobre o que tinha dentro do escritório que a modificou, Ana Clara apenas disse que voltou a ler ficção. Felício ficou surpreso, desde o incêndio ela nunca mais lera, a não ser livros científicos”, lemos.

O incêndio da livraria: “Um dia, inevitavelmente, adormeceu sobre o livro e com o braço pesado virou a lamparina acesa”. O incêndio faz o trágico nascer sob a chuva rala (“a falta de violência”) que uniu identidades diversas diante do mesmo mar. E “o movimento do mar seguia o ritmo da leitura de Ana Clara dos livros da sogra. Quando adorava o livro, acelerava a rotina, e a ondas estouravam com força na praia. Quando a leitura exigia mais vagar, os dias se estendiam como o movimento calmo do mar”. Esta simbiose, esta sintonia metafórica cancional acompanha o leitor de A filha do livreiro.

Há muito azul em torno das personagens: “A vida é revestida de azul do mar”, anota o narrador. Se por um lado “isso é bom saber porque é bom morar no azul”, sob o manto de Iemanjá, a cor representa também a eterna noite que acomete as personagens. Como todo livro que se conta, Libertazul é oásis ou recanto escuro? Uma aldeia, quase uma ilha, Libertazul é alimentada pelo mar e guiada por Iemanjá. Em uma primeira leitura podemos até supor que aquilo que sustenta as personagens no ar são os fluxos e refluxos das ondas. No entanto, as histórias que compõem o livro de Marcela Tagliaferri acontecem mais de dentro para fora das personagens. Ou seja, não é a lua que segura o mar, mas as emoções e vivências do trágico que mareja tudo. O desejo de conhecimento vibra em Ana Clara, na mesma medida em que a amargura embaça de maresia a personalidade de Flora.

O leitor de A filha do livreiro não tem vida fácil. A ficção de Tagliaferri tem outras ficções dentro dela. Para entrar no jogo, o leitor é convidado a se ver por trás da leitura que faz: é preciso juntar peças, usar uma chave que às vezes abrem duas gavetas, ser indiscreto, invadir intimidades. Propositalmente, e aqui mora a beleza do texto, parece que faltam peças, ou que as peças são de outros quebra-cabeças.

O excesso de inversões sintáticas das frases curtas de A filha do livreiro, ao mesmo tempo em que alarga os sentidos do texto, desenha os movimentos das ondas marinhas e dos sentimentos humanos – e seus sargaços.  Assassinato, amantes que morrem para a vida com a morte dos amados; segredos familiares guardados em espaços escuros da memória que viram um livro-por-vir; textos dentro de textos, subtextos, sussurros.

Há muitos momentos de extrema beleza lírica. Por exemplo, frases como “A cama está desfeita, os lençóis emaranhados, o cheiro do quarto é salgado pelo vício da ausência” e “Às vezes a falta de ar vinha e nada melhorava, a não ser o cheiro da maresia colado às ondas” parecem conter toda uma constelação de elementos que vão sendo lentamente tocados pelo mar de letras espalhadas nas páginas. O amor chega impregnado de mar: “Ele [Artur] respirava o cheiro da maresia e o prazer vinha com sol, chuva, sem pressa. Deixava o desejo chegar e curtia o gosto do mar”.

A ficção funda a realidade ao fissurar certezas. Isso desestabiliza o leitor. E a metaficção, caso do livro de Marcela Tagliaferri, questiona a própria ficção, agravando a crise, a agonia. Em A filha do livreiro, a autora dentro do livro, desdobrada nas personagens, mar quebrando na praia, canta histórias com segurança formal, mescla com precisão avanços e recuos narrativos, sobrepõe tempos, vira mundos de pernas para o ar, é carrasco e cúmplice do leitor. O autor, leitor (quase) compulsivo, é lúcido, mas não se furta de deixar-se cair nos braços de Iemanjá. Dizendo de outro modo, sendo ficção, A filha do livreiro rascunha as questões da ordem da realidade, quando tudo é construção e ruína, reconhecimento da incompetência diante da história diária, quando a única saída possível parece ser a ficção.

 

 

 

 

 

 

 

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Leonardo Davino de Oliveira é Paraioca. Pesquisador, ensaísta e escritor, especialista e mestre em Literatura Brasileira. Doutorando em Literatura Comparada com projeto sobre Canção (Poéticas vocais) e Teoria da Literatura. Assina o blog Lendo canção: http://lendocancao.blogspot.com E-mail: leonardo.davino@gmail.com




Comentários (3 comentários)

  1. Nydia Bonetti, Uma grande história, um final surpreendente, um belo livro. Uma leitura difícil realmente, até “que se entre no jogo”. Então, é ir juntando as peças e devagar, “invadir intimidades” e descobrir os segredos de Libertazul. Eu gostei demais. E me parece que vem um outro livro de Marcela por ai! Bela resenha, Davino. Abraço!
    14 março, 2012 as 15:56
  2. Raíra Maia, Bravo, Leo!
    20 março, 2012 as 23:02

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