A descida aos infernos da modernidade


……..A descida de Sant’Anna aos infernos da modernidade

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Em 1975, o poeta, ensaísta e professor mineiro Affonso Romano de Sant’Anna publicou uma obra de feitura singular. “O mais importante livro de poesia”1 do ano, “documento de uma época”2, “lição de poesia”3 foram algumas das expressões com que parte da crítica especializada da época recebeu o texto. O volume em questão, intitulado Poesia sobre poesia, faz um inventário crítico no conjunto de valores estéticos e existenciais reunidos sob a denominação genérica de modernidade, cujo influxo renovador alterou o conceito da literatura e da poesia no mundo ocidental na primeira metade do século vinte.

Poesia sobre poesia sintetiza um corrosivo caldo de questionamentos cuja finalidade é dissolver o nódulo normativo que as teorizações sobre a arte, uma das características mais pronunciadas da modernidade, haviam logrado introduzir na veia poética do autor. A teoria e a práxis de várias gerações de escritores, artistas e poetas, formados sob o peso avassalador dessa herança são, temática e poeticamente, trazidas à discussão pela lírica de Sant’Anna. O poeta, insurgindo-se contra os códigos das vanguardas, em especial o concretismo brasileiro, encontra na própria contestação teórica e na metalinguagem o antídoto para a sua perplexidade.

Para fazer frente ao desafio de refletir sobre poesia a partir da própria poesia, propósito anunciado desde o título, Sant’Anna recorre ao artifício de inserir centenas de notas de rodapé (Anexo 1) em seu trabalho. A inclusão de notas de rodapé em vários poemas, ao estilo de T. S. Eliot em The waste land, aparentemente, visa a servir o leitor de alguma coisa a mais que um simples guia de leitura na intricada rede de referências intertextuais do livro. As críticas nos jornais da época, naturalmente, puseram reparo na suplementação das notas remissivas; porém, pouco foi dito do efeito que produziam no discurso do poeta, exceto, talvez, pela crítica de Consuelo Albergaria no Estado de Minas de 7 de janeiro de 1976, que reconhece nesses rodapés uma espécie de “corpus paralelo”, na medida em que oferecia ao leitor o “gozo extra” de cotejar seus conhecimentos, algo estetizante, é verdade, mas que essencialmente produziria “uma leitura não-linear” dos poemas. O que chama a atenção neste comentário é precisamente sua percepção da ocorrência de um movimento “contrapontístico” em torno do eixo que coordena o discurso do texto poético e o discurso do texto crítico das notas exegéticas.

Pensar que função tais notas de Poesia sobre poesia desempenham no torneio de respostas que a literatura brasileira do século vinte deu aos mencionados desafios da modernidade se constitui, por definição, em um dos objetivos deste trabalho. Entender profundamente as conseqüências do emprego que Sant’Anna faz desta técnica são um dado crucial, em nosso ponto de vista, para a compreensão do livro de 1975. O leitor diante desses poemas híbridos de versos e notas se coloca o dilema de escolher entre prestar atenção ou ignorar o texto periférico. A curiosidade do leitor é posta à prova passo a passo por meio de ostensivas chamadas numéricas inseridas no interior dos versos e, ao cabo, impõe-se a questão de se saber até que ponto essas escolhas interferem no alcance de sua recepção da obra.

Entender os motivos por que Affonso Romano de Sant’Anna decidiu acrescentar comentários ora secos, ora poéticos, às vezes sarcásticos, a várias composições de Poesia sobre poesia faz parte do quebra-cabeça através do qual se tenta deslindar o legado da modernidade que o também poeta e professor Cláudio Murilo Leal, em crítica publicada no Jornal do Brasil de 20 de dezembro de 1975, por ocasião do lançamento do livro, explicaria nestes termos:

O poeta de hoje, sem voz própria, transformou-se no eco de milhares de versos e informações, numa verdadeira caixa de ressonância de um passado e de um presente literário e cultural que mais esterilizam do que apontam o caminho da poesia, se é que este caminho existe objetivamente. O impasse da poesia de hoje é fruto da consciência que tudo já foi feito, e não resta uma só palavra a ser acrescentada, tomando-se como única saída o inventário, que nada tem de invenção, mas muito de rol de experiências acabadas, catálogo de endereços já conhecidos, mapas de veios esgotados 4.

Poesia sobre poesia seria um livro compêndio sobre a problemática da lírica moderna e seus poemas dariam o testemunho de toda uma época em que poetas, artistas, escritores e teóricos de literatura tentando entender seu papel na nova organização capitalista foram colocados frente a frente com o desafio de encontrar justificativas para a supervivência de seu modo de vida nas engrenagens sociais da burguesia e dos meios de produção de massa. Por isso, durante décadas teorizaram. As notas exegéticas de Poesia sobre poesia parecem justificar a idéia de uma lírica-de-inventário destinada a ser quase uma paródia da morbidez ou ecolalia resultante do esgotamento do já feito e repisado: se o fazer poético não prescinde de manifestos e cartas de escrituração por que deixar de anexá-las ao próprio corpo dos poemas? A forma encontrada para o livro de 1975, desse modo, permite enunciar uma hipótese: ao escrever poemas com rodapés, Sant’Anna talvez esteja diluindo uma coisa na outra e alterando a função das notas em seu trabalho. Daí, questões como esta: o sujeito lírico também se expressa nas notas e o crítico fala nos poemas? Até que ponto o verso está permeado da influência remissiva e vice-versa?

Poesia sobre poesia, desse modo, reflete a busca de identidade de um poeta e a crise da linguagem que lançou os criadores modernos desde o início do século vinte numa atividade transgressora de renovação artística. Mais tarde esta atividade seria potencializada pelos movimentos de vanguarda, como o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo, entre outros, e no Brasil se pautaria pelo rompimento com os cânones normativos do passado a partir da Semana de Arte Moderna de 1922. Posteriormente, as vanguardas brasileiras, especialmente os concretistas, nas décadas de 1950 e 60, respondendo às demandas da nova sociedade tecnológica, pretenderam dar o golpe de misericórdia tanto no antigo quanto no novo cânone anunciando unilateralmente a abolição do verso. É sob o peso dogmático das teorias literárias, da massificação da sociedade moderna, da fragmentação da linguagem e da perda de prestígio do poeta que Poesia sobre poesia surge para falar de sua perplexidade diante do esvaziamento da palavra lírica.

O livro de ensaios O desemprego do poeta, de 1962, é a primeira tentativa de Affonso Romano de Sant’Anna compreender esse quadro. “A crise da poesia contemporânea”, teorizava, “está essencialmente fundada na função da poesia”5. A expressão lírica deixara de ser funcional na medida em que estava sendo suplantada por meios mais eficazes de comunicação. O papel milenar do poeta como vidente, sábio, legislador, historiador e, ultimamente, herói romântico foi assumido pelos artistas de rádio, pelo cinema, pelos mitos do futebol e profissionais do jornalismo. O poeta “estava no olho da rua”.

Um dos eixos temáticos de Poesia sobre poesia, treze anos depois das reflexões de O desemprego do poeta, viria a ser precisamente a angústia que essa disfunção social da lírica teria acarretado ao poeta mineiro. Sintomaticamente, um de seus poemas chama-se “Poesia indicial: o (des)emprego do poeta”. Acuado pela aflição da ausência de trânsito social da poesia, perscrutando a nova sensibilidade da civilização moderna, e enredado pela teia de complicados modelos teóricos que buscavam compensar racionalmente a perda do prestígio da poesia, Affonso Romano de Sant’Anna sentiu-se constrangido a compor um balanço de suas relações com a modernidade em geral e, no círculo doméstico, com as vanguardas dos anos de 1950 e 60. Apesar do tom pessimista do ensaio sobre o desemprego do poeta e das cornetas apocalípticas que soam ao longo do texto, o autor encerra sua análise com um acorde de cristalina esperança. A poesia, neste processo demissionário, teria se tornado “muito mais poesia, limpou-se de aderências, da impureza – função – para  ser.”7 Por um lado a poesia fracassara como funcionalidade coletiva, mas, por outro, alcançara uma vitória sobre si mesma e era um campo novo de pesquisa da linguagem e da essência do homem.

A teoria se traduz na prática no primeiro livro de poemas de Sant’Anna, Canto e palavra, de 1965, obra que sugere a possibilidade de existir na literatura brasileira lugar para o humanismo, no seu sentido metafísico, que se recusa a cindir-se entre a pulsão vital que sujeita o poeta à experiência no mundo e a tradução desta vivência na forma da mensagem poética. A palavra devia encontrar um meio de filtrar a vida, “o canto”, na forma objetiva do poema, a despeito de sua especificidade de artefato lingüístico, como queriam as vanguardas, que existe independente de qualquer expressão biográfica. Embora sob o impacto das teorias do concretismo, que via no poema um “objeto”, Canto e palavra se aproxima com fina ironia dos novos modos de ser da lírica. Tal aproximação se dá mediada pela concretude do corpo em si mesmo realizado como o “objeto” mais arcaico do conhecimento: “Vamos, corpo, inteire-se, / relate-me o que és”8. A lógica é simples: sem corpo não há vida, sem vida não existe poesia.

Em Canto e palavra, primeiro existe a consciência do próprio corpo, depois a experiência do corpo do outro: “Eu sei quando te amo: / é quando com teu corpo eu me confundo”9. A pesquisa da concretude nos poemas de 1965 se estende depois para a corporalização de outros objetos como o edifício, a casa, a sala, a mesa, o telefone, o relógio…e para a objetivação do próprio código lingüístico: “A palavra / é o corpo / onde ostento / oque secreto”10. O movimento do poeta de se avizinhar, como no pêndulo, do corpo visto como um objeto, contém a sinergia suficiente para o lançar onde o corpo também é a síntese primária do canto e da palavra.: “O corpo / é meu mito / predileto, / a palavra que mais uso / e objeto / mais completo”11. O afastamento do poeta do modo de ser da teoria concreta e o aprofundamento da pesquisa sobre a dicotomia canto-e-palavra atingiriam anos depois em Poesia sobre poesia outro estágio de discussão em que o problema se concentra no desnível epistemológico entre a teoria e a práxis poética.

Além desses dois livros, O desemprego do poeta e Canto e palavra, o autor de Poesia sobre poesia publicou em 1972, como resultado de sua tese de doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o livro Drummond, o gauche no tempo, referência obrigatória à obra do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade12. A idéia da subsistência de um projeto de longo curso, pautado pela dramatização do temporal do poeta de “A máquina do mundo”, é uma premissa com a qual o próprio Sant’Anna trabalharia ao longo de sua trajetória de poeta. O conjunto da obra de Drummond, segundo o ensaio de Sant’Ana, encontra-se organizada por meio de um logos projetado num continuum  a figura do poeta gauche, “protótipo do mundo moderno”13, que desce “aos infernos do tempo” para construir entre ruínas, obra após obra, a sua própria identidade no mundo moderno. Também Sant’Anna, em Poesia sobre poesia, fragmentado, desce aos infernos da modernidade na tentativa de renascer das cinzas de sua identidade partida. Esta relação entre mestre e discípulo não parece inteiramente fortuita. O escritor e crítico de literatura Wilson Martins chegou a afirmar que Sant’Anna poderia ser “o grande poeta brasileiro que obscuramente esperávamos para a sucessão de Carlos Drummond de Andrade”14. Sucessão diversa dosentido monárquico de rei morto, rei posto15, conforme a interpretação que o próprioSant’Anna daria, mais tarde, às palavras do crítico, mas sucessão no sentido de continuidade de uma linhagem na qual o autor de Claro enigma pontifica como um “autor com rara vocação clássica”16, disfarçado das máscaras de José, Carlos e Carlito, entre outras. Considere-se, nesse passo, que a possibilidade de se vir a encontrar mais de uma persona em Poesia sobre poesia tampouco deve ser descartada, a nosso ver, porquanto, Affonso Romano de Sant’Anna se desdobra seguramente em pelo menos duas hipóstases heteronímicas: o professor-crítico e o poeta ou, em outros termos, o acadêmico, com sua herança teórica, e o poeta com sua vivência lírica.

As críticas à Poesia sobre poesia no momento em que foram publicadas apenas tocaram, mesmo que às vezes com grande intuição, a superfície do projectum literário que o livro, como um “divisor de águas”, parecia refletir. Remy Gorga, na revista Veja de janeiro de 1976, comentando o livro, chega a mencionar a bem-sucedida realização de seu “objetivo- projeto”17 de inventariar e investir contra as vanguardas “para recair, sarcasticamente, feliz nos sonetos”. Marcílio Farias, em crítica no Jornal de Brasília, identifica em Poesia sobre poesia “o mergulho no já pensado e no que falta pensar”18, isto é, “antevisões” do processo histórico da literatura. Em sua crítica no Estado de Minas, Consuelo Albergaria, por seu turno, reconhece no trabalho do poeta mineiro “uma nova proposta”19 em que “autor e texto se apresentam como um laboratório de auto-conhecimento [sic] e pesquisa”. Deixam os comentaristas do volume, pela natural falta de maior perspectiva histórica, de precisar o alcance do projeto de revisão da arte da primeira metade do século passado a que o poeta estava dando continuidade. Júlio Castañon Guimarães, por exemplo, em sua resenha na Tribuna da Imprensa de dezembro de 1975, menciona de passagem que a reflexão de Sant’Anna “incide também sobre o trajeto (…) do próprio poeta”20 e Cláudio Murilo Leal, no Jornal do Brasil do mesmo mês e ano observa que “só o futuro dirá o resultado” 21 da luta de Sant’Anna “entre a inocência e a consciência”.

Talvez tenha chegado a hora de se tentar preencher esta lacuna. O conjunto de poesias e notas do livro de 1975 ainda está carecendo, a nosso ver, de um estudo pormenorizado. A reabilitação de Poesia sobre poesia como um documento de época e uma obra de experimentação lírica, que, ademais, foi um grande acerto de contas do poeta consigo mesmo, com as vanguardas, e com a modernidade em geral, talvez ajude a compreender melhor o que foram os anos de criatividade, manifestos e exclusivismos que caracterizaram a poesia brasileira de meados do século passado. No texto “Poeta do nosso tempo”, comentando Poesia sobre poesia, o crítico de literatura Wilson Martins observa: “Affonso Romano de Sant’Anna já viveu e escreveu suficientemente para desiludir-se das sucessivas vanguardas literárias e da sua implícita demagogia autoritária22”. Entender esta obra difícil, escrita talvez no crepúsculo do Modernismo, ajuda a também entender os extremismos desse tempo e explica, em parte, o grande gesto de despedida do poeta: “Adeus irmãos, adeus! Estou tomando o caminho da floresta”23.

Poesia sobre poesia sinaliza para um caminho de completa autonomia na lírica affonsina: o projeto da intransferível busca pessoal, vale dizer solitária, de uma poesia sem exclusivismos estéticos. Obra de fatura labiríntica, à primeira vista, distancia-se da solução semiótica que as vanguardas brasileiras encontraram para o problema da poesia no mundo contemporâneo. Cifra-se por uma diferente resposta de experimentação lírica em que o verso é valorizado, ao passo que, paradoxalmente, a prosa crítica se oferece à apreciação do leitor nos seus rodapés. A estrutura heteróclita das composições exegéticas e a rara articulação de seus discursos insinuam que se pode estar diante de um exercício lingüístico que o poeta reconheceu como a “sua ‘semana de arte moderna’ particular”24. Os vínculos sentimentais e teóricos com as vanguardas brasileiras, especialmente o concretismo, foram rompidos “oficialmente” com a publicação de Poesia sobre poesia e, até os dias de hoje, Sant’Anna mantém com aqueles poetas uma controvérsia histórica.

Affonso Romano de Sant’Anna, aliás, acompanhou de perto, ativamente, as várias fases dos movimentos renovadores da estética na poesia brasileira desde meados dos anos de 1950. Integrante de movimentos estudantis, ajudou a viabilizar em 1963 a Semana Nacional de Poesia de Vanguarda de Belo Horizonte na UFMG. Neste mesmo ano fundou o Centro deCultura Popular da União Nacional dos Estudantes, a Une, na capital mineira. Transfere-se em seguida para Los Angeles, nos Estados Unidos, onde fica de 1965 a 67, leciona literatura brasileira na Universidade da Califórnia (UCLA) e, depois, em 1968, aceita o convite para participar durante nove meses do Writing Program, o Programa Internacional de Escritores em Iowa. Os primeiros poemas de Poesia sobre poesia começaram a ser esboçados nos Estados Unidos.

Os anos de 1960 foram um tempo de maturação e reflexão para o poeta e professor Sant’Anna. Na década seguinte, anos de intensa atividade acadêmica, de volta ao Brasil, passou a dar aulas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e no ano de 1973 foi convidado a dirigir o Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ). Neste mesmo ano trouxe ao Rio o filósofo francês Michel Foucault, assumiu o cargo de editor do Jornal de Poesia do Jornal do Brasil e, no mesmo ano, organizou os encontros Exposia I e II, no Rio de Janeiro e Curitiba, evento que reuniu, somente no Rio de Janeiro, mais de 600 poetas e artistas de variadas tendências, entre eles João Cabral de Melo Neto. Quando Poesia sobre poesia saía do prelo, em 1975, Affonso Romano de Sant’Anna, com a idade de 38 anos, já era um intelectual respeitado na cena cultural brasileira. Muito jovem, desde meados da década de 1950, convivera com os movimentos que haviam transformado a poesia nacional numa ponta avançada do experimentalismo com a linguagem. Dialogara com o concretismo, o neoconcretismo, o grupo Práxis, havia colaborado com as revistas de vanguarda Tendência, Violão de Rua I, II e III, e tinha sido incluído entre 1960 e 1968 em várias antologias de poetas brasileiros.

Essa intensa atividade cultural aconteceu durante o período mais duro do regime militar brasileiro, os “anos de chumbo” do governo Médici, período marcado pela exacerbação da censura aos meios de comunicação e pela repressão política institucionalizada do DOI-CODI – Departamento de Operações e Informações e Comando de Operações de Defesa Interna. O Estado brasileiro governava por instrumentos de exceção como o AI-5 e seus argumentos eram a intolerância, a tortura e o exílio de inimigos políticos, de intelectuais e artistas. No pau oco do “milagre econômico” se ocultava o endividamento externo. Vivia-se o clima da propaganda política totalitária – “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Foi nesse clima de autoritarismo e exceção, guerra fria e polarizações que surgiu uma obra que, por sua conta, também questionava os exclusivismos estéticos  Poesia sobre poesia.

A fase de “engajamento social” da poesia de Affonso Romano de Sant’Anna nos anos posteriores de distensão do regime, como se sabe, ganhou bastante visibilidade. Poemas como “Que país é este?”, do livro homônimo de 1980, foram publicados nas páginas políticas de jornais de circulação nacional e o volume de poesias Política e paixão (1984) colocava o dedo na ferida de temas que ainda eram tabus na cena brasileira, como a questão dos desaparecidos políticos e o episódio do atentado à bomba no estacionamento do Riocentro durante um show de música popular. Como cronista, Sant’Anna substituiu, em 1984, a Carlos Drummond de Andrade em sua coluna no JB e atualmente publica suas crônicas semanalmente nos jornais O Globo, Estado de Minas e Correio Braziliense. Exerceu, como executivo, durante seis anos, o cargo de presidente da Biblioteca Nacional (1990-96), onde instituiu o prestigiado Programa de Promoção da Leitura – Proler, o Sistema Nacional de Bibliotecas e criou a revista multinacional Poesia sempre.

Os 40 anos de produção de prosa e poesia, comemorados por Sant’Anna em 2005, e os 30 anos de publicação de Poesia sobre poesia, completados também em 2005, marcam uma trajetória de quase meia centena de livros de poemas25, ensaios e crônicas, além de antologias de versos e de prosa publicados em parceria com outros autores. Uma de suas obras críticas mais recentes, Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão, publicada em 2003, reedita o lado polêmico do mineiro com uma série de textos fulminantes sobre a função das artes plásticas nas últimas décadas. O autor propõe no livro uma “revisão de valores” nas artes visuais, “sem medo de enfrentar alguns ícones que estão no altar da modernidade e da pós-modernidade”26.

Por isso consideramos relevante aferir até que ponto Poesia sobre poesia importa para demarcar a tendência do autor, como poeta e intelectual, em direção a uma política de revisão das respostas de seu tempo a uma nova sensibilidade moderna. Daí a premência de realizar, entre outros motivos, um corte histórico neste tomo crucial no projeto poético e crítico de Sant’Anna. Temos consciência de que nosso estudo não exaure o problema:“Revelar um aspecto da obra de um autor amiúde significa ignorar ou deixar na sombra vários outros” 27. Em compensação, tem-se, por outro modo, a concentração e o aprofundamento necessários para que se realize uma correta etiologia das origens do pensamento não- expositivo do poeta mineiro a partir dessa obra crucial em sua trajetória de escritor, obra, aliás, que nunca renegou de estar num constante processo de reconstrução. É o que demonstra o fragmento de um dos poemas de seu próximo livro, Sobre os rios da Babilônia, ainda no prelo, intitulado “Pasárgada”:

Escrito sob as impressões de uma viagem ao Irã, no Oriente Médio, em 2004, o trecho do poema citado, revisitando concreta e simbolicamente a Pasárgada do outro poema de Manuel Bandeira, sintetiza o lirismo desassombrado de um percurso que nasceu nas ruínas de uma obra dilacerada como Poesia sobre poesia e foi sendo reconstruído pelo poeta sobre os escombros do passado. A conjugação dos verbos no pretérito imperfeito – buscasse, fracassasse, edificasse – anda pesadamente sobre os versos, como sugerindo o esmagamento da poesia, e penetra com sua dubiedade o itinerário percorrido pelo poeta até a leveza do “não-lugar” da poesia.

Para dar conta da visão de mundo que prevalece em Poesia sobre poesia demarcamos em três partes nosso trabalho. O primeiro segmento se destina a revisar sumariamente as principais características do processo sócio-cultural conhecido vagamente pela termo modernidade; o segundo segmento propõe, para posterior aproveitamento instrumental na análise da linguagem poética de Poesia sobre poesia, uma reflexão sobre a noção genettiana de paratexto; e por último, o terceiro segmento retira motivação e apoio do material trabalhado nos capítulos anteriores para empreender a análise do livro.

No primeiro capítulo sobre a problemática da modernidade na literatura e poesia universal e brasileira recorremos a vários trabalhos. Em síntese, consultamos o ensaio da professora Ana Balakian, O simbolismo, com a finalidade de entender as mudanças na literatura do século dezenove, incluindo aí os poetas franceses como Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé, e depois servimo-nos de uma série de autores nacionais e estrangeiros que se dedicaram ao estudo das transformações que alteraram a noção de literatura no século vinte. Entre eles citamos o texto de Walter Benjamín, “A modernidade e os modernos”, e o ensaio coletivo organizado por Malcolm Bradbury e James McFarlane intitulado Modernismo: guia geral 1890-1930. Entre os estudos clássicos sobre a modernidade escolhemos a obra de Hugo Friedrich, Estrutura da lírica moderna e O castelo de Axel de Edmund Wilson. Os estudos dos teóricos Antoine Compagnon, especialmente Os cinco paradoxos da modernidade, e Terry Eagleton, Teoria da literatura, também foram de grande valia para o levantamento da problemática da literatura e da arte moderna.

Encontramos elementos históricos importantes para o aprofundamento do tema em Vanguarda européia e modernismo brasileiro, de Gilberto Mendonça Teles, também em História da literatura ocidental de Otto Maria Carpeaux, e igualmente em História da inteligência brasileira de Wilson Martins. Para aprofundar certos vieses da arte moderna, como a metalinguagem e a consciência crítica, procuramos apoio em autores como Affonso Ávila, O modernismo; João Alexandre Barbosa, A metáfora crítica; Denise Guimarães, A poesia crítico-inventiva; Samira Chalhub, A meta-linguagem; e Roman Jakobson, Lingüística e comunicação. Consultamos ainda História das literaturas de vanguardas, de Guillermo de Torre, e os trabalhos dos irmãos Campos, Augusto e Haroldo, e Décio Pignatari, para consolidar informações acerca da atividade das vanguardas. Trabalhos teóricos como Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade, do escritor americano Marshall Berman, e Altas literaturas, de Leyla Perrone-Moisés, foram igualmente úteis para a compreensão do problema da modernidade no século passado.

No segundo capítulo, para encontrar fundamentação teórica a uma análise das notas que se encontram na mencionada obra de Affonso Romano de Sant’Anna, recorremos basicamente a Paratexts: thresholds of interpretation, tradução para o inglês de Seuils, obra do teórico francês Gérard Genette, tendo em vista que até o presente não existe tradução para o idioma português. O texto de Genette trata de descrever certas categorias acessórias do discurso que acompanha o texto publicado em livro: nomes ou pseudônimos dos autores, títulos, dedicatórias, epígrafes, notas, prefácios, sumários, apêndices, posfácios e outras convenções editoriais que veiculam uma gama variada de informações localizadas nas capas, orelhas, páginas introdutórias e na periferia do próprio texto. Para este conjunto de elementos com o papel de mediação entre o leitor e o texto, Genette cunhou um neologismo – paratexte: paratext: paratexto. Os paratextos podem ser autorais, aqueles de responsabilidade do autor, ou editoriais.

A primeira vez que me deparei com o conceito de paratexto, ainda no curso de especialização Leitura de múltiplas linguagens da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, aconteceu durante a leitura das conferências Seis passeios pelos bosques da ficção de Umberto Eco. O teórico italiano, analisando o Gordon Pym de Edgar Allan Poe, refere-se à palavra e a explica nos seguintes termos em nota de rodapé: “Segundo Gérard Genette, Seuils (Paris : Seuil, 1978), o ‘paratexto’ consiste em toda a série de mensagens que acompanham e ajudam a explicar determinado texto – mensagens como anúncios, sobrecapa, título, subtítulos, introdução, resenhas, e assim por diante”29. A natureza dúbia do tema, a variedade de discursos furtivos que propicia, quando confrontado com a prática dos autores, despertou vivamente meu interesse pela matéria. Naquela ocasião desenvolvi um trabalho monográfico

com vários estudos de caso. Parte deles foi aproveitada nesta dissertação. Para ir adiante, stricto sensu, faltava-me apenas uma obra de peso e esta me foi apresentada pelo professor Édison José da Costa, orientador do mestrado junto ao curso de Letras da Universidade Federal do Paraná: era Poesia sobre poesia de Affonso Romano de Sant’Anna e suas notas de fim de página. Notas são paratextos. O caso se tornou mais atrativo, apesar do hermetismo aparente do texto, na medida em que a incidência de notas no gênero lírico é algo raro e, por isso, é preciso dizer ainda que nem todos os poemas de Poesia sobre poesia são poemas com paratextos, mas sua presença é tão forte no conjunto do livro que opera um contágio nos poemas desprovidos de notas, como se o leitor ficasse sobressaltado com sua ausência.

A partir de uma análise cuidadosa, ficou óbvio que um diálogo, que parecia importante, permeava os poemas e as notas exegéticas de Poesia sobre poesia. Somente depois de várias pesquisas foi possível perceber que seria exeqüível conduzir uma leitura, no terceiro capítulo deste trabalho, que levasse em conta a interdependência sistêmica dos versos com suas notas. Ao que tudo indicava, a presença de paratextos na periferia de tantas composições pertencia a uma estratégia mais complexa que meramente a de “ajudar a explicar” o texto. Havia um caráter de episteme na ocorrência das notas. Elas estavam inseridas em um contexto de enfrentamento e quebra dos “códigos” vanguardistas, por assim dizer, e realçavam a escolha de uma poesia discursiva na contramão dos manifestos concretistas. Porém, observávamos que não se trataria tão somente de uma ruptura estética, embora esta fosse um componente implícito, tratava-se também da escolha de um campo ético que se impunha através do conflito existencial do teórico e do poeta que conviviam na personalidade do autor. Estas personas líricas, onde se diluem traços biográficos, ao tempo em que se penitenciam, promovem um ajuste de contas com a modernidade e com o autoritarismo exclusivista de seus manifestos. Parece compreensível que as notas, com seu valor de ensaio, tenham jogado um papel tão importante na realização do livro. Mas não só isso. Fomos levados a crer que a conjunção de texto e paratexto, em Poesia sobre poesia, talvez produzisse um objeto híbrido na mente do leitor – que se perderia caso na leitura ele excluísse um dos pólos. De tal sorte, na experiência da recepção, o paratexto poderia se textualizar.

Até agora existem duas versões para Poesia sobre poesia: a primeira de 1975, da Imago, e a segunda publicada em 2004 pela editora LP&M juntamente com as Poesias reunidas de Affonso Romano de Sant’Anna. Tendo em conta algumas falhas, como troca de números remissivos e a supressão tipográfica de notas no poema “A educação do poeta e de outros hebreus na corte de Nabucodonosor”, optamos por trabalhar com a edição mais recente, revista e revisada. Além disso, o poeta decidiu incorporar a maior parte de um conjunto de poemas publicados inicialmente em antologias, jornais e revistas, e depois reunidos com o título de Poesia (inter)calada na primeira edição, de forma definitiva à estrutura de Poesia sobre poesia, que desse modo também passou a ter uma edição ampliada nas Poesias reunidas .

A primeira edição do livro de Sant’Anna, que se encontra fora de catálogo, reunia três volumes: a parte 1, intitulada propriamente Poesia sobre poesia; a parte 2, Poesia (inter)calada; e a parte 3, Canto e palavra, esta uma reedição do livro que inaugurara a atividade de Sant’Anna como autor de poesias publicado em livro. Na edição de 2004, como referido, “Poesia (inter)calada”, foi incorporada com cinco cortes ao corpo de Poesia sobre poesia que, assim, passou a ter não uma mas duas seções – “Poesia (inter)calada”, com nove poemas, e “O homem e a letra”, com os mesmos treze poemas da primeira edição. Total: vinte e dois poemas.

As composições que foram eliminadas de “Poesia (inter)calada” são as mais antigas, aquelas produzidas entre 1959 e 1965, a saber: “Poema para Medgar Evers”, “Poema acumulativo”, “A pesca”, “Pedra-poema à pedreira do Paraibuna” e “O muro, a flor, as bestas e a canção”. Permaneceram os poemas escritos entre 1966 e 1968: “Empire State Building”, “Poema Del mio Che”, “Colocação de bombas e pronomes”, “Notícias montadas na TV”, “Depoimento”, “Poema estatístico”, “Aritmética”, “Four letters words” e “For the time being”. São poemas que revelam uma orientação bem mais política e social, com foco na geopolítica da guerra fria, onde as idéias de luta, ruína e repressão já estão presentes. Existem, entre estes poemas, algumas experiências que lembram o concretismo. Esse conjunto de poemas parece servir de ponte entre o primeiro livro de Sant’Anna, Canto e palavra, mais intimista, e Poesia sobre poesia, quando o acerto de contas com as vanguardas e consigo mesmo explode com virulência.

Os textos básicos sobre os quais foram concentrados os principais esforços de análise de Poesia sobre poesia estão segmentados na seção “O homem e a letra”, segunda e mais importante parte da obra, e são os poemas com notas exegéticas. A perspectiva de uma abordagem que levasse em conta os elementos paratextuais parece colocar sob nova luz a recepção do texto e de suas relações com a poesia e com as teorizações que marcaram a arte na modernidade. Os outros poemas do livro também representam importante papel no conjunto e não são deixados de lado, mas o corpus efetivamente selecionado para este trabalho consiste nos cinco poemas com notas de rodapé na seqüência em que aparecem na edição da Poesia reunida do autor e são os seguintes: “O homem e a letra”; “A morte cíclica da poesia, o mito do eterno retorno e outros problemas multinacionais”; “Poema didático em três níveis”; “O poeta se confessa enfastiado de sua profissão”; e “O leitor e a letra”. O poema “A educação do poeta e de outros hebreus na corte de Nabucodonosor”, embora se apresente sem as notas convencionais, é para todos os efeitos considerado dentro da série paratextual, por razões que se justificam na medida em que existe uma “notação”, em texto poético, que se configura no interior da composição e vai sendo ditada por uma das vozes do poema. Consiste, pois, numa peça-chave, onde o poeta realiza uma aparente fusão entre a poesia e o que seria uma exegese. Os poemas sem as notas exegéticas são os seguintes: “Sou um dos 999.999 poetas do país”; “A letra e o tempo”; “O poeta realiza a teoria e a prática do soneto”; “Depois de ter experimentado todas as formas poéticas”; “Teorréias”; “Poema conceitual: teoria e prática”; e “Poesia indicial: o (des)emprego do poeta”.

Os poemas de Poesia sobre poesia são um divisor de águas na poética de Affonso Romano de Sant’Anna. Determinam a tomada de consciência do poeta em relação ao seu projeto lírico pessoal. Definem um status de autonomia na cena literária brasileira. Materializam sua trajetória na busca pelo equilíbrio entre o “canto e a palavra”, já esboçada no livro anterior, e depois atualizada pelo confronto do teórico e do poeta através da prosa e dos versos de Poesia sobre poesia. Juntamente com A grande fala do índio guarani, o terceiro livro de poemas do autor, formam o ponto de mutação de uma pesquisa em torno da herança poética moderna a partir, neste último caso, da perspectiva da cultura do dominado. Em Poesia sobre poesia, o poeta se coloca a cada verso, e, por conseqüência, ao leitor, o shakespeareano impasse, encontrado muito antes, no ensaio O desemprego do poeta30, do ser ou não ser da poesia moderna.

 

 

 

 

[PARATEXTO E POESIA: A DESCIDA DE SANT ANNA AOS INFERNOS DA MODERNIDADE. Rodney Caetano. Ed.UFPR, 2011] [Baixe a tese completa, aqui]

 

 

 

 

 

 

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Rodney Caetano é jornalista, poeta e professor. Paranaense, escreveu o livro Poesia e paratexto: a descida de Sant’Anna aos infernos da modernidade (UFPR). Como autor, tem participado de alguns títulos, entre eles: As melhores entrevistas do Rascunho, vol 1 (Arquipélago), e Rodovias: caminhos entre culturas (Eólis). Na área acadêmica publicou ensaios nos livros Poesia e vida: anos 70 (UFJF) e Cerrados (UnB). No segmento literário, integra as antologias Poesia do Brasil (2011), Prêmio Literário Valdeck Almeida de Jesus de Poesia (2010), Primeiras histórias 5º Concurso Mário Quintana: 1º lugar categoria poesia ( 2009); Concurso de Poesia Contemporânea (Comunicar, 2009); Antes do ponto final (2008); Pão e poesia – categoria haikai (2009); Os Poetas – Concurso Helena Kolody (1992) e 3o Concurso de Poesias Celu (1987). Na área musical, composições suas foram incluídas no CD Mistérios da Vida (Grupo Ziguezira) e no espetáculo Cida Moreyra Interpreta Compositores Paranaenses. Email: rodneycaetano@ig.com.br




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