A dedicatória de Gullar


 

Poetas são pássaros de asas embalsamadas, praticam uma arte ao mesmo tempo efêmera (propícia para o voo) e permanente (favorável à queda), que apenas pode se afirmar no devir, ininterruptamente em construção, e na tentativa de se atravessar e ultrapassar a realidade experenciada, sempre acompanhados pela certeza da incompletude, mas com anseios à permanência. Por isso é que apenas o inaudito poderá ser matéria de poesia: o sopro da eternidade nos fatos, o aspecto aparentemente menos importante dos acontecimentos.

Poetas se revelam através da expressão retorcida, do significante reinventado, conferindo à linguagem um estado que vai além do horizonte do verbo, atribuindo assim um sentido distinto ao ordinário. Ou seja, poetas defendem a língua repugnando a linearidade da escrita dentro da qual se desenvolve.

Em 2010, se não me equivoco, fui a São Paulo com a finalidade de estar próximo, ainda que por alguns instantes, de um desses transgressores da palavra, do poeta brasileiro vivo que mais aprecio, cuja obra me parece traduzir as maiores preocupações e anseios do nosso povo, os maiores dilemas da arte e do artista na modernidade, um camarada que atravessou momentos cruciais da poesia, e porque não, da intelectualidade brasileira, assegurando para si um lugar de importância maiúscula entre os grandes, a respeito de quem Vinícius de Morais disse ser o último grande poeta brasileiro. E ainda que a assertiva do Poetinha não passe para alguns de uma blague, hoje não são poucos os especialistas que o consideram o maior poeta vivo do Brasil. Falo – meus amigos – do senhor José de Ribamar Ferreira. Mas podem tratá-lo, fraternalmente, pelo seu nome de guerra: Ferreira Gullar.

A coisa se deu mais ou menos assim. Há tempos precisava estar em São Paulo para cumprir alguns compromissos particulares, mas adiava e adiava a viagem pelo simples fato de não gostar muito de grandes deslocamentos e por preferir a cadeira na varanda de casa e o sorriso da minha filha que poltrona de avião. Esperei algum tempo até surgir ocasião adequada, em que pudesse transformar necessidade em oportunidade. Foi quando soube que Ferreira Gullar autografaria o livro Em alguma parte alguma numa livraria da capital paulista.

Nem se faz necessário dizer que a partir da compra das passagens minha vida se transformou em uma só apreensão e expectativa, ansioso que sou. E enfim chegou o dia. Dentro do avião eu só queria estar no chão. E estando na São Paulo que tanto me assombra com seu ritmo convulsivo eu só queria estar na minha Ilhéus.

Obrigações cumpridas, em prazo recorde, para na data anunciada poder estar lá, na fila, entre amigos e fãs de Gullar, à espera de uma dedicatória na folha de rosto do novo compêndio de poemas, alguns deles lidos e relidos ali mesmo, como o belíssimo “Fica o não dito por dito”, em que o poeta retoma um tema que lhe é muito caro, a reflexão sobre a escrita, sobre o fazer poesia, mais especificamente, e que resume o que o próprio autor vem afirmando nas entrevistas, que fazer poesia é tatear o indizível sabendo o que se quer dizer, pois como diz um verso desse poema: é que só o que não se sabe é poesia. Acrescentando que o poeta inventa/ o que dizer/ e que só/ ao dizê-lo/ vai saber/ o que/ precisava dizer. É poesia nascendo do espanto.

Salvo prova em contrário, essa faceta metalinguística da poesia de Gullar carece de estudo aprofundado, o que demonstraria facilmente a grande capacidade que o autor possui de teorizar sobre a poesia fazendo poesia, afinal quando o poeta assevera que A poesia é, na verdade, uma/ fala ao revés da fala, nada mais está fazendo que concordar, por exemplo, com um teórico como o Deleuze quando este diz em A literatura e a vida que a língua está tomada por um delírio, que a faz precisamente sair dos seus próprios sulcos, ou quando neste mesmo texto subsume as palavras de André Dhôtel quando este afirma que a única maneira de defender a língua é atacá-la. Ora, é desse “delírio” e desse “ataque” que os teóricos falam que o poeta sobrevive, refratando a realidade, ou se preferirem, dizendo as coisas como elas não são, e até como a sociedade não as enxerga. Esse consenso entre os teóricos e o poeta está claro nos versos acima, extraídos do poema “Falar”.

Outro poema que chama a atenção, talvez pela temática singular, imprevista até, e quem sabe inédita, é “Reflexão sobre o osso da minha perna”. De vestidura existencialista, traz uma dicotomia e até um estranhamento em relação à condição humana e leva-nos a especular que o poeta pode muito bem tê-lo escrito por conta de um assombro, um lampejo qualquer, causado por uma dor, uma surpresa que lhe tomou em hora inexata do dia (pois o poema não tem hora para acontecer) e o fez elucubrar sobre esse elemento que sustenta o nosso corpo servindo de apoio para os músculos, permitindo assim o movimento. Este osso, dura mais do que tudo o que ouço/ e penso/ mais do que tudo o que invento, reflete. Para rematar perguntando se este osso/ (a parte de mim/ mais dura/ e a que mais dura)/ é a que menos sou eu?.

Como aponta Alfredo Bosi em um dos textos introdutórios, neste livro em que o velho e o novo alternam ou se misturam ganha força a intuição renovada do mistério sem margens das coisas, referindo-se diretamente à segunda parte do livro, em que o novo na poesia de Gullar está presente através de uma temática que até então não se havia notado em sua obra, cuja percepção está balizada por conhecimentos gerados pela astronomia. São poemas como “Universo”, “O tempo cósmico”, “O espaço”, “ A relatividade eterna”, dentre outros que demonstram não apenas mais uma das faces formadoras da cosmovisão do autor, mas também como um poeta, já na casa dos 80 anos, continua a renovar-se e a renovar a poesia, ofertando-a um pouco mais de oxigênio, novos instrumentos para a imaginação.

Tudo isso torna fácil concordar com Sérgio Buarque de Holanda quando afirma que em Gullar a voz pública não se separa em momento algum de seu toque íntimo, de seu timbre pessoal, de esperanças e desesperanças, por isso é que se pode afirmar que esse espaço de onze anos que cumpriu-se entre Em Alguma Parte Alguma e o livro anterior, é tempo demais para quem admira a potencia verbal, a consciência literária e o compromisso com a vida que emanam deste poeta tão importante para o Brasil.

Melhor que eu volte ao relato sobre o lançamento do livro, sob pena desta crônica se transformar em algo diverso daquilo que pretendia originalmente. Que o leitor generoso me desculpe.

Para aquela noite de autógrafos levei comigo um livro que tenho como um troféu, uma das raridades da minha modesta biblioteca, um exemplar da primeira edição do clássico Poema Sujo que, escrito na Argentina, durante o exílio, evoca a São Luís da infância do poeta e das mais ternas sensações, obra que, segundo a crítica, alçou definitivamente o nome de Gullar ao rol dos grandes nomes da literatura brasileira.

O evento foi agradável e concorrido. Logo na entrada da livraria, que fica na sede da editora, um banner com a imagem do autor e a capa do livro. Por volta das 20 horas chega o poeta, já octogenário, magro e menor que imaginava. Cumprimentou algumas pessoas, trocou rápidas palavras com outras e logo tomou assento.

Embora o público fosse grande, pelo menos para o lançamento de um livro, a espera foi curta. Chegada minha vez, não disse palavra alguma. Entrego-lhe o livro mais recente. Gullar pergunta meu nome e sapeca a dedicatória: Para Gustavo, com carinho. Imediatamente após, passo-lhe às mãos o meu exemplar de Poema Sujo. Dessa vez o poeta para e, surpreso, olha-me nos olhos e pergunta: Gustavo, não é? Respondo-lhe sem pestanejar: Sim, poeta, Gustavo Felicíssimo. É seu sobrenome mesmo, filho? Respondi-lhe brevemente, dizendo apenas que sim, e que também arriscava alguma poesia. Gullar silenciou, pensou um instante e então, a dedicatória: Para Gustavo Felicíssimo, que me traz a marca suja da vida.

 

 

 

 

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Gustavo Felicíssimo é escritor, editor da Mondrongo Livros (www.mondrongo.com.br) e graduando em Letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. E-mail: gfpoeta@hotmail.com

 




Comentários (3 comentários)

  1. Silvério Duque, Gustavo Felicíssimo é um articulador. E possui um trabalho de divulgação das novas gerações da poesia baiana e brasileira de altíssima qualidade; reiterando estes ofícios ao publicar textos de vários poetas que nos aparecem tão grandes e reveladores quanto nos dá o seu olhar de quem admira a poesia pelo que ela pode nos oferecer de melhor e mais elementar.
    6 maio, 2013 as 14:10
  2. Maria Lindgren, Muito bom mesmo seus comentários sobre Ferreira Gullar que, graças a Deus, ainda vive na Belford Roxo, Copacabana. Adoro seus poemas e quero adquirir sempre mais.´Parabéns pelo texto Maria Lindgren m-lindgren@uol.com.br
    6 maio, 2013 as 15:45
  3. gustavo Felicíssimo, Opa! Fico feliz que gostaram.
    7 maio, 2013 as 0:06

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