A Copa é a Copa


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Em 1970, a palavra de ordem da oposição à ditadura era que se torcesse contra a Seleção Brasileira. Foi cumprida? Não, claro. A ordem foi por terra ao primeiro ataque bem-sucedido da Seleção. A cada gol dos Canarinhos, era um festa nas ruas e, no dia do tricampeonato, o país inteiro se entregou à folia. Isso se explica pelo fato de o Braaasilll!, o país da bola, não poder ser confundido com o país oficial. Sumariamente, no seu espaço, a vitória é função do talento, e ela implica o respeito à lei, enquanto, no país oficial, há muito espaço para toda sorte de desmando, de desrespeito à lei.

Toda tentativa de sabotar o Braaasilll! para combater o país oficial, além se ser contrária à nossa imagem , é contrária aos valores que podem transformar o Brasil num país desenvolvido. No jogo, as regras são as mesmas para todos e o jeitinho não existe; a competência é um requisito básico, mas exige que se leve em conta o outro; o indivíduo é tão importante quanto o grupo, a individualidade aí se realiza sem que o individualismo possa prevalecer.

Por todas essas razões, o jogo tem uma grande função educativa: ensina a respeitar a regra e dá a noção de limite, sem a qual a cidadania não existe. Trata-se de um recurso poderoso na formação das crianças, pois no seu contexto a lei vigora e quem faz pouco dela é sempre punido. O jogo indiretamente ensina a dizer não e a aceitar a negativa.

As manifestações contrárias à Copa são contrárias às crianças e é bom lembrar que as despesas com a mesma são maiores do que o previsto originalmente (quatro bilhões e meio), mas esse custo equivale a um mês de gastos com a educação no Brasil. Bastaria este dado para ser mais do que favorável à Copa.

Além de ser fundamental para a formação da personalidade, o jogo também existe para suspender a beligerância – as manifestações contra atentam contra o próprio espírito da civilização. Em Olímpia, onde nasceram os jogos olímpicos, todas as hostilidades – inclusive guerras em curso – eram suspensas, instaurava-se a trégua. Qualquer ato que a violasse era considerado criminoso e era devidamente punido.

Podemos ser contrários ao que aí está, mas enfrentar o status quo opondo-se à Copa, além de ser inútil, é um ato masoquista. O mundo inteiro se prepara para assistir aos jogos no país da bola. Como diz Platini, é tão importante para os torcedores virem para a Copa no Brasil quanto para os muçulmanos irem a Meca. Romper a trégua com manifestaçoes políticas é uma forma de barbárie.

A hora é de deixar a nossa grande cultura popular acontecer como pode, valendo-se da improvisação para a qual somos treinados desde a infância, fazendo vigorar o nosso brincar e difundindo a alegria de que somos capazes e de que o resto do mundo precisa.

De 1995 para cá, o futebol mudou muito. As regras foram alteradas e o jogo se acelerou. O estilo se globalizou, depende menos do jogador do que do técnico e do time. Mas, apesar da globalização, o estilo brasileiro continua a se manifestar. As jogadas de Neymar e as pedaladas de Robinho são a prova disso. Não brincam como Garrincha, porém, como este, se valem do jogo para se divertir e levar o público ao delírio da alegria.

Por tudo isso, evocando a tradição ocidental da trégua sagrada, devemos proteger o Campeonato do Mundo e torcer por um jogo limpo como o de Pelé. Exercitava-se em mostrar que mais vale um bom drible do que um chute na canela. Quando jogou pelo Santos contra uma equipe francesa no Parc des Princes, foi atacado por um beque que o chutou indiscriminadamente. Partiu para a luta, aplicando no outro uma série desmoralizante de dribles, fez valer a Moral do Jogo, que exige o jogo para ganhar. Lembrou que, além de vivermos num país onde penamos por causa da injustiça social e da insegurança, somos súditos de uma monarquia da qual ele é o rei.

 

 

 

 

 

 

Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de O país da bola, entre outros.

 

 




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