A Babel de Chicago


A Babel de Chicago: Look, but don’t touch; touch, but don’t taste; taste, but don’t swallow

Chicago, 07 de setembro de 2014

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O oficial da imigração folheia, vagarosamente, meu passaporte. Diante do visto, os olhos oscilam, pendularmente, entre mim e minha foto.

− What is the purpose of your stay in the United States?

Entrego-lhe o formulário DS-2019.

Section 2.

Program Sponsor: Northwestern University.

Participating Program Official Description: Professor; Research Scholar; Short-Term Scholar; Specialist; Student Associate; Student Bachelors; Student Doctorate; Student Intern; Student Masters; Student Non-Degree.

3. Form Covers Period:

From (mm-dd-yyyy): 09-01-2014.

To (mm-dd-yyyy): 08-31-2015.

− So, Ricardo, you are going to stay one year in the USA. What is your Ph.D. about?

Quando lhe digo que estudo literatura russa, a Guerra Fria parece ainda uma vez rediviva. Diante do visto, os olhos voltam a oscilar, pendular e vagarosamente, entre mim e minha foto.

Súbito, a curiosidade faz a burocracia dar uma cambalhota:

− Tell me, Ricardo, what is the greatest Russian author?

Digo-lhe que estudo o bom e velho Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski.

A mão direita levanta o carimbo; a curiosidade a faz estacar sem mais:

− One more thing, Ricardo: is it really true that the atmosphere of Dostoevsky’s novels takes us to the imminence of a war?

Minha primeira experiência em território norte-americano como que me transforma em uma personagem de Dostoiévski. (E/ou de Franz Kafka.)

Minha mão esquerda resvala o queixo – pela primeira vez, olho o oficial nos olhos. Súbito, Fiódor Kafka me insinua um arremate.

Digo-lhe que, se Dostoiévski vivesse nos dias de hoje, Vladimir Putin certamente seria uma de suas personagens.

Um leve sorriso de soslaio faz a mão direita aterrissar o carimbo em meu passaporte.

 

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Department of Homeland Security ●  U.S. Customs and Border Protection

ADMITTED

 

− Welcome to the United States of America.

O taxista e seu inglês macarrônico vêm do Cazaquistão. Mesclamos o inglês ao russo. Ele me diz para não visitar a zona sul de Chicago.

− It is too dangerous! Drug dealing, robbery, it is too dangerous!

Quando lhe peço uma indicação de um bom lugar para curtir a noite de Chicago em plena terça-feira, o cazaque me mira através do retrovisor e, sem titubear, indica o Admiral Theatre. Diante da minha dúvida de sobrancelhas arqueadas, o malicioso sorriso de soslaio só faz sentenciar:

− Trust me, you will see, go there, it is close to your house. Go there, just do it.

O trem sobrelevado é um dos meios de transporte público mais pitorescos de Chicago. Em downtown, os trilhos alçados por pilastras de aço se esgueiram entre os arranha-céus. (Fico imaginando se o tenebroso Minhocão, em São Paulo, não teria sido inspirado pela experiência norte-americana.) Moro perto da estação Kimball. Linha marrom. Em meu bairro, hispânicos – sobretudo, mexicanos, mas também porto-riquenhos, venezuelanos, colombianos, peruanos, equatorianos, guatemaltecos e muitos outros hermanos –, chineses, coreanos, indianos, turcos, afegãos e este brasileiro dividimos as calçadas e os vagões com os americanos. Os afegãos vestem chapéus parecidos com o quipá judaico. Barbas longas sem bigode. Nas fachadas das lojas, o “Se habla español” disputa espaço, palmo a palmo, com os letreiros em inglês. Espanglês. Em um vagão do trem alçado, este escritor flâneur vai entrevendo as fronteiras etéreas (e farpadas) da proximidade. African Americans all over – eles entoam um inglês sincopado, ‘cause I’m gonna tell you one thing, and I’m gonna tell you one thing only –, alguns poucos (pouquíssimos) W.A.S.P.s (White, Anglo-Saxon and Protestants) contrafeitos, uma chinesa masca balinhas de goma, o yuppie ali perdido mal vê a hora da estação em que vai descer, um rapaz de bata azulada se senta à minha frente. Seria um enfermeiro? A mochila bojuda do U.S. Army e as tatuagens que tento ler em vão – ele se mexe muito para brincar com o filho bebê – não me ajudam a descobrir. Ao meu lado, Malik, um senhor iraquiano, tenta me explicar, sobretudo com mímicas, que acaba de comprar 5 (cinco) – a mão se abre em palma – remédios para a asma que o acompanha desde sempre. A mão treme, a bombinha de inalação cai no chão e rola até o soldado enfermeiro. Derek (chamemo-lo assim) restitui a Malik o que lhe é de direito, mas o iraquiano mal lhe pousa os olhos. Ele então tenta me explicar por que a mão lhe treme – a mão direita é acometida por Parkinson, ao que parece, a esquerda desponta como um peso morto, um fardo que o antebraço precisa carregar. Malik desabotoa o punho da camisa e esgarça a manga, até que vejo uma cicatriz que lembra os trilhos do nosso trem, cicatriz que me leva a um buraco mal coberto pela pele já flácida de Malik.

− But what is this?

A mão direita trêmula mimetiza um revólver – na verdade, uma metralhadora. Malik só faz dizer “Iraq, Iraq, Iraq!” Um tiro lhe fizera perder o movimento da mão esquerda – “it was a miracle that I didn’t lose my arm!” –, um tiro que poderia ter sido disparado pelo soldado, enfermeiro e papai à nossa frente. (Assim a esguelha do olhar de Malik me insinua.) Derek embala um bebê que mais parece um floco de neve. O nenê vai tateando o mundo como que a formar e a forjar o real pela textura. O novo é sempre o novo, a memória frágil mal pode reter o instante que o olhar difuso acaba de deixar para trás. (Da mesma forma, o escritor nômade, em verdade um adulto infante, não fixa o real pelas palavras para tentar conter o caos de tudo o que é efêmero?)

Pouco menos de uma semana antes de ir para os EUA, caminhei pelo cerrado de Goiânia. Até então, o cerrado eram os desenhos algo amarelados dos meus livros didáticos. Em Berlim, quando assisti, pela primeira vez, à encenação de Esperando Godot, do bom e velho Samuel Beckett, a árvore anã, retorcida, esturricada e solitária que constituía o cenário da peça já prenunciava o cerrado goiano. Ao longe, o cerrado parece esparso. Escasso, contingente. É só lá dentro que percebemos que o cerrado estrutura o paradoxo: as árvores erráticas permitem que a visão se expanda, “mas aqui, quando criança, eu também brincava de esconde-esconde com os meus irmãos” – assim meu amigo Fábio, brasiliense de nascimento, se lembra da infância ao me guiar entre as árvores enegrecidas. O que me fascina tanto no traçado arredio dessas árvores? “Aqui eu brincava de estilingue com os meus irmãos, Ricardo, e os formigueiros eram nossos alvos. Quem acertasse o tamanduá já ganhava a disputa de primeira”. Ao olhar para uma das árvores individualmente, mal consigo discernir sua copa – o céu se revela por entre os galhos franzinos. Mas, quando me agacho, o conjunto das árvores se adensa, já não consigo entrever o céu, as veredas vão se embaralhando, as árvores vão se aproximando – elas mimetizam em terra a confusão entrecruzada dos galhos.

Carregamos o cerrado nas palmas de nossas mãos. Perto dos polegares, os traços são paralelos – e descontínuos. Começam lineares, mas logo hesitam, se curvam – ensaiam sobreviver assim como as árvores do cerrado. Que é a profusão de encruzilhadas no centro de nossas mãos senão o labirinto do cerrado?

Ontem, fomos à roda gigante: Cíntia (brasileira/americana), Walther (peruano) e eu. Walther nos diz que, no Peru, a roda gigante “se llama rueda de Chicago. Entonces, ¿por qué ellos dicen ‘ferris wheel’ aquí en Chicago?” A subida da roda gigante faz a imensidão do lago Michigan abarcar a paleta do horizonte entre rosa e laranja do sol prestes a se pôr. Algo trêmula – “tenho muito medo de altura!” –, Cíntia prefere nos contar, de olhos semicerrados, uma cena que então lhe ocorreu do mês em que morou em Florença.

− Vocês gostam do Fellini? Eu gosto muito. Morei na casa de uma família italiana que parecia ter saído diretamente de um dos filmes do Fellini. Me lembro, agora, de um almoço de domingo, a família toda reunida. A câmera do Fellini, a sombra do meu olhar ali, vai mostrando os convivas – lentamente. A comida é servida com fartura, a nonna bate com a colher de pau nas mãos heréticas daqueles que ousam cortar os fios do macarrão – é preciso enrolá-los no bojo da colher, artesanalmente, para só então levá-los à boca. O azeite rega o pão, pão cheiroso, o pai o abençoa, logo vêm os cânticos, o vinho róseo, a bruschetta. Um causo se enreda no outro, eles falam, contam e brindam. O cunhado parrudão pega o irmão da esposa pela nuca – Giuseppe, o cunhado, já bebera muita grappa. Eu estou ali na mesa de madeira sólida, em uma das esquinas, e sinto que a comida, deliciosa, é um dos grandes pretextos de toda aquela comunhão. O nonno feliz, felicíssimo, sorri com a boca enrugada – ele tenta propor um brinde, chega até a golpear a taça com a colherinha para pedir atenção, mas o reumatismo o impede de se levantar da cadeira/trono do patriarca. Ai, que saudade da Florença que o Fellini me apresentou – que saudade do Fellini que vivi em Florença!

O lirismo da roda gigante – o lirismo do horizonte policromático – não se centra na própria imensidão. O grandioso parece um instrumento – uma catapulta, o estilingue do meu amigo Fábio em Brasília/Goiânia, o fio do macarrão florentino da Cíntia Fellini. O grandioso não quer nos hipnotizar – ele parece a chave da cidade ausente, a cidade das memórias. (A cidade intangível que se insinua pelas frestas mal vedadas da realidade comezinha.)

Minha memória mais antiga já associa uma casa ao seu portão, às grades e à cerca – a propriedade encalacrada pelo medo e pela insegurança. There is no place like home? No. There is no place like homeless. Aqui em Chicago, o sobrado em que moro é guarnecido, única e exclusivamente, por um jardim. Neste preciso momento, enquanto escrevo este texto, cigarras me teletransportam. Há duas cadências na orquestra das cigarras camufladas pela grama: um dos tons é agudo e monocórdio – algo como a linha letal, a reta da morte em um aparelho da UTI. O segundo tom é volúvel e volátil, ele oscila acima e abaixo como a escalada de uma senóide, como os loopings da montanha russa ao lado da rueda de Chicago. O mantra das cigarras, assim como a imensidão lírica da roda gigante, é entoado como que a nos fazer flutuar.

À noite, sigo o conselho do taxista cazaque.

Admiral Theatre, Lawrence Avenue.

Um aforismo do pioneiro da diversão adulta nos EUA, Larry Flint, encontra-se emoldurado na fachada do Admiral como se fosse um prefácio – e um epitáfio:

“The greatest right a nation can afford its people is the right to be left alone”.

O leão-de-chácara:

− It’s 25 dollars – and you have to drink something inside.

Entro. Ao redor do palco do teatro Admiral, uma legião de marmanjos aguardamos o próximo strip-tease. Mal eu me acomodo, a garçonete, trajando espartilhos, se achega:          − What would you like to drink?

− A whisky on the rocks would be just fine.

− We don’t serve any alcoholic drinks here.

− What?!

Olho ao redor – onde está Larry Flint? Isn’t the greatest right a nation can afford its people the right to be left alone?

Compreensiva, a garçonete aguarda um instante até que eu me aquiete. Depois, ela como que pede para que falemos common sense:

− Have a look at the guys here. Dê só uma olhada nas nossas belas garotas! Você acha que o pessoal aqui conseguiria se conter se nós servíssemos álcool? Aqui, a regra é: look, don’t touch; pay, then the dance becomes private. That’s it. What would you like to drink?

À falta de um copo de leite, peço uma Coca-Cola.

− It’s 6 dollars (cash).

Mal posso acreditar: aquele bando de marmanjos, em sua maioria casados, contenta-se em observar, e apenas observar, as performances das dançarinas. A loira em questão – busto americano e quadril quase brasileiro – percebe que um dos voyeurs tem um presente a lhe oferecer. Ela começa a engatinhar, len-ta-mente, até o rapaz. Quando fica bem diante dele, ela quase lhe resvala os peitos e, de quebra, abre o compasso das pernas e começa a se tocar – já completamente nua, a não ser por um elástico sensual que lhe envolve a coxa esquerda, elástico sob o qual o voyeur da vez contabiliza seu desejo com três notas de 20 dólares. Assim que se vê recompensada, a dançarina dá um tapa em sua bunda em riste, de tal maneira que a marca vermelha de seus dedos demarque a fronteira que os punheteiros da ocasião não poderemos cruzar.

Não, não é possível, eu não me conformo! Onde está o liberalismo norte-americano? A cidade de Chicago não está encravada em um rincão do Texas e/ou do Tennessee! E quanto ao meu direito to be left alone? Eu, paulista de Ribeirão Pires, criado em São Bernardo do Campo e educado pela boa e velha Rua Augusta, no coração de São Paulo, quero entender como aquela rapaziada consegue suportar o look, but don’t touch; touch, but don’t taste; taste, but don’t swallow.

No intervalo de um dos strip-teases, pergunto a um dos figuras ali presentes:

− Man, esta é a primeira vez que venho a um local assim aqui nos EUA. Cheguei há pouco. Mas eu não posso acreditar no que estou vendo – nada de álcool, apenas essas gorjetas! E, se você der um dinheiro a mais para a garota, ela vai e te oferece uma lap dance mais privativa, é isso?

− That’s it, buddy, that’s all you got.

− Mas como é que vocês aguentam? Meu Deus do céu! Não há puteiros por aqui?

− Nope, not at all.

− Então você está me dizendo que não há prostituição nos Estados Unidos, que a lei a coíbe totalmente, que tudo o que lhes resta é a mão direita, é isso?!

Antes de me responder, Tony (chamemo-lo assim) toma um longo trago de seu suco de laranja. O olhar se faz cabisbaixo, resignado, o peito arfa profundamente, e então ele me mostra o dedo anelar envolto por uma aliança:

− But of course there’s legal prostitution in the USA, buddy: I’m married.

“The greatest right a nation can afford its people is the right to be left alone”.

Súbito, um bracinho delicado me envolve como um cachecol inusitado – o perfume chega antes:

− Do you want some company?

Kira (chamemo-la assim) tem os olhos grandes, pretos e redondos como duas jaboticabas. Os peitos são pequeninos, sutis, mas os bicos intumescidos chegariam antes às palmas das minhas mãos. Chegariam… A cintura bem fina parece uma barricada contra a explosão bem latina do quadril – e Kira é persa, iraniana. Ela se senta sobre o meu colo e quer saber sobre mim.

− Well, I’m a writer and also study literature – Russian literature, Dostoevsky.

− Really? I’ve just read “The Brothers Karamazov”, it was fantastic!

O suco de maracujá me faz engasgar. What?! You have read “The Brothers Karamazov”?

− Yeah, sure, and I’m about to begin “Crime and Punishment”.

Que outras surpresas Chicago tem a me reservar? A realidade (ficcional) me pareceria mais crível se eu já estivesse alcoolizado.

Eis, então, que eu decido entrar na ciranda entre real e literária do voyeurismo.

− You see, Kira, como você logo vai começar a ler “Crime e Castigo”, eu gostaria de lhe dizer one or two things sobre a obra. Você logo vai conhecer o Raskólnikov, um ex-estudante de Direito que teve que abandonar a Universidade de São Petersburgo pelo motivo comezinho da falta de dinheiro. (Suave e insistentemente, Kira embrenha a infantaria das unhas entre a pelaria do meu peito.) Mas Raskólnikov não é um pobretão qualquer – a personagem dostoievskiana sobrevoa a história humana e encontra duas classes de indivíduos. De um lado, a grande manada, os seres ordinários, para quem viver é sobreviver, para quem viver é obedecer, para quem viver é (re)produzir. De outro lado, os seres extraordinários, para quem tudo é permitido. Segundo Raskólnikov, por mais conservador que seja o gado ordinário, por mais que a massa cobre respeito às leis e à tradição – e por mais que, na surdina, ela tente burlar essas mesmas leis e essa mesma tradição sem conseguir assumir os riscos de suas transgressões –, a manada espera que os legisladores extraordinários movimentem a história ao ultrapassarem todas e cada uma das leis que os ritos referendam a cada domingo por séculos e séculos, amém. (A persa Kira faz menção de fazer o Pelo Sinal da Santa Cruz com a mesma mão esquerda que, há pouco, insinuara abrir minha braguilha.) Pois muito bem: Raskólnikov, afinado com o espírito iconoclasta de seu tempo, concebe, em termos histórico-filosóficos, a morte de Deus. Resta saber se, qual um Napoleão, Raskólnikov conseguirá cruzar a fronteira do “Não matarás”. Assim, o jovem niilista propõe um desafio a si mesmo: para concretizar seus planos de evolução da humanidade, para que o homem possa se transformar no super-homem, ele, Raskólnikov, precisa oferecer em holocausto as primeiras vítimas ao deus da modernidade: o ego, princípio único de todas as coisas. Munido dessas ideias e de um machado, Raskólnikov racha a têmpora da velha usurária para quem ele empenhara seus últimos pertences em troca de alguns parcos rublos para o jantar facultativo. “Um piolho inútil, um parasita que não fará falta alguma à nova humanidade!” Mas, se você já imitou Caim, se você já fez verter sangue alheio, o que é a reincidência do homicídio, Kira? Ora, mais uma ação estratégica, não? Como a irmã da velha usurária aparece na hora e no local inadequados, Raskólnikov também precisa lhe rachar a cabeça com o machado. (Afinal de contas, a voracidade de um Napoleão não teria estacado diante de um obstáculo tão comezinho, não é mesmo?) Então, Kira, seria possível dizer que, em termos gerais, o romance vai narrar as tensões entre o crime e o ímpeto por castigo inscritos e descritos a partir das próprias tensões de Raskólnikov. (Os olhos negros de Kira, bem fundos, parecem sorver toda a curiosidade do mundo.) Ocorre, Kira, que eu já não sei se Raskólnikov, nos dias de hoje, seria efetivamente atual. Raskólnikov congregou em si as figuras do mandante e do carrasco. Mas, veja só, você já ouviu falar em Adolf Eichmann?

− You mean the SS functionary responsible for the transportation of the jews to the concentration camps?

− Exactly.

− Hannah Arendt wrote a book about him, didn’t she?

− Bingo! And now comes the question: você sabe o que Eichmann disse em seu julgamento em Jerusalém?

− Well, he said many things, but what’s your point?

− Adolf Eichmann, competente funcionário da SS, além de reiterar que cumpria um juramento de lealdade ao Führer e apenas desempenhava seu ofício – “sou apenas uma peça em um complexo mecanismo de engrenagens” –, Adolf Eichmann, oficial responsável pela logística de deportação dos judeus aos campos de concentração, afirmou em juízo que sequer era antissemita. Do you realize it now? Hitler e Eichmann jamais viram os espasmos de um quase cadáver. Eles jamais tiveram que lidar com o ímpeto escatológico da piedade que o extremo sofrimento físico é capaz de despertar. Não à toa, Kira, o carrasco, sobre o patíbulo, se esconde sob um capuz. Não se trata apenas de preservar sua identidade em meio à comunidade de cúmplices que aguardam, sequiosos, por mais uma execução. Trata-se de interpor uma fronteira, ainda que ínfima, entre a súplica do condenado e o rosto do carrasco – a porta estreita de sua consciência. Mas, hoje, quem é que se importa? A violência é terceirizada, a violência é impessoal – a violência relega corpos imundos e mendigos pelas calçadas com a mesma lógica com que paga (ou não) os nossos salários. Ora, hoje, quem é que se importa? Kira me sussurra:

− I do. Would you like a lap dance?

Então ela me explica, 75 dólares depois, que a private lap dance tem a seguinte logística: nós vamos para aqueles sofás reservados ali ao fundo. (Ela vai me puxando pelo colarinho.) Apenas esta cortina púrpura nos separa de todos os demais.

− Nós vamos fechar a cortina toda?

− Quase… Look, but don’t touch; touch, but don’t taste; taste, but don’t swallow. Haverá uma fresta – uma fresta ínfima, mas, ainda assim, uma fresta. E se você for um agente do FBI aqui infiltrado? A casa pode ser fechada, imediatamente, se, por um mero acaso, nós fizermos sexo aqui e agora.

Sem conseguir fechar a boca, eu também sussurro: aqui e agora…

(É claro que o agente do FBI e eu fecharíamos a casa, sem mais, apenas após a lap dance. First things first, gentlemen, first things first.)

− So, Ricardo – that’s your name, right? –, você tem direito a 3 músicas.Let me take good care of you now!

Para que eu seja justo com o princípio de castração a que tive de me submeter, os leitores e as leitoras, ávidos pela descrição paulatina da performance de Kira, terão que se contentar com o sadismo de um mero sumário.

− No boobs, no pussy, mas você pode me beijar all over, com moderação, e eu até gosto de tomar uns tapinhas once in a while.

Kira me abraça com as pernas como duas tenazes, ela sente meu crescimento, semicerra os olhos, puxa meus cabelos – não fosse minha bermuda, o encaixe teria sido perfeito (e providencial). Teria…

Ao fim da terceira música, nua, as coxas rijas sobre o meu colo convergem para a Kira dos grandes lábios, a Kira do clitóris que se toca e se intumesce, a Kira que me faz arfar e enrijecer, a Kira das mãos que me impedem, suave e sadicamente. Antes de me fazer entender, até o fim, por que a lei proíbe a venda de álcool nos liberal clubs – com 5 doses de uísque, a pele eriçada de Kira nos levaria, invariavelmente, ao tapete persa –, a iraniana mordisca o lóbulo de minha orelha direita (ou teria sido a esquerda?) para sentenciar:

− Time is over, baby, game over. Would like another lap dance?

Ora, ainda que a brutalidade, o cinismo e o sadismo – o sadomasoquismo, a bem dizer – sejam as pedras de toque da história, à vítima que agoniza resta o direito da lamúria e da contraposição.

− Very well, pretty lady, muito bem, Kira! E vocês americanos se consideram liberais, right? Onde está o liberalismo neste clube sádico? Eu tô passando mal aqui, isso só insuflou o meu desejo – e você não vai me satisfazer. What am I supposed to do? Punheta depois de velho?! Pois eu fico imaginando esses babões ali sentados ao redor do palco – Deus meu, quantos deles não estão aqui como uma contrapartida absoluta em relação a dias de trabalho estressantes e alienados?! Quantos deles não retardam, o quanto podem, segundo a segundo, a volta ao lar? (O que significa rever a esposa depois de tudo isso aqui, meu Deus?!) Você se lembra de Eric Harris, Kira?! (Ela aquiesce com a cabecinha risonha.) Pois então: o massacre de Columbine também é gerado por frustrações desse tipo. Imagine um nerd de quem você sempre daria risada, Kira. Ele nunca conseguiria chegar perto de você!

− Unless he paid me 75 dollars…

(Engulo o despeito com o que não resta do suco de maracujá.)

− Pois muito bem: Eric Harris sabe que está pagando, mas ele quer mais, ele quer desaguar, quer ejacular, quer o liberalismo que a América tanto promete e, aqui, no enclave libertino da terra de todas as oportunidades e liberdades, aqui, in this very club, Eric Harris só encontra mais um nicho de castração. Aí eu te pergunto, Kira: para onde vai toda essa energia? No universo, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma – e se perverte: Eric Harris, o (auto)proclamado loser, carrega os pentes de suas armas – as armas do pai, as armas de gerações e gerações de Eric Harris, Kira – e descarrega as rajadas de seu ressentimento contra os colegas de escola, em Columbine. Você não acha isso verossímil, Kira? E mais: você não acha isso factível?

Quase vestida – o bico do peito esquerdo ainda insiste em ficar nu –, Kira defende o liberalismo (do) aleijado:

− You see, Ricardo, you may have a point on that, mas a sua narrativa me parece observar as coisas apenas pelo prisma masculino. E quanto a nós, mulheres? Você sabe de que país eu venho? Você, aqui e agora, certamente não gostaria que eu estivesse atrás de uma burka, right? Talvez os homens, em sua sanha de propriedade, ainda queiram que as mulheres escondam o próprio corpo quando e enquanto não estiverem com eles em seus quartos. Mas, não, eu não quero ser estuprada, eu não quero ser violentada – I just wanna make my money. Ao fim de cada noite no Admiral, saio daqui com mais da metade do salário que ganho na agência de publicidade em que trabalho – by the way, eu estudei marketing here in Chicago. Meu namorado entende tudo isso. Afinal, nós não fizemos nada, right? Que lhe importa se você me beijou e infringiu algumas normas do FBI atrás dessa cortina? (Ao infringi-las apenas aqui, apenas agora, você e todos os demais referendam as normas para a continuidade indefinida dos dias.) Quando as contas estiverem pagas, quando formos viajar, a harmonia do meu namoro se confundirá com o esquecimento. (Sleep with one eye open.) E, bom, eu nunca rachei a cabeça de ninguém com um machado – e, bom, acredite em mim quando eu digo que most of these guys voltarão para a casa e só conseguirão fazer amor com as esposas (mulheres tão infelizes quanto eles) por causa do meu auxílio. Ah, o que seria do matrimônio sem as dançarinas?

Na América, o que seria do matrimônio sem a quase prostituição, sem a violência da sexualidade sublimada pelos choques dos marmanjos nos campos de futebol americano, sem os tacos e os jogos de baseball e os filmes em série dos serial killers?

Como não haverá outra lap dance – ao menos por ora, ao menos até o próximo quinto dia útil –, Kira me ensina a despedida a que as mulheres iranianas devem obedecer:

− Let’s shake hands in front of everybody, mas atrás das cortinas we can kiss each other once again.

− Hum… Então a América tem alguma coisa do Irã, right, Kira?

Kira mordisca a ponta do dedo antes de me responder:

− Não se esqueça de que, para compor o seu harém, o muçulmano precisa ter condições de bancar suas mulheres. Que dizer de um homem que não pode me oferecer os 75 dólares de uma nova lap dance?

“The greatest right a nation can afford its people is the right to be left alone”.

Após inocular o veneno, Kira é gentil ao arrefecer a ferida:

− Next time I’ll be happy to make you happier, my dear Ricardo. E se você narrar nossa estória, não deixe de me trazê-la. Ao lê-la, quero me reconhecer através dos seus olhos – através da sua ira que lá, enfim!, vai ejacular… Welcome to America, baby, welcome to Chicago.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Flávio Ricardo Vassoler é escritor, professor universitário e autor de Tiro de Misericórdia(Editora nVersos, 2014) e O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos, 2013) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios, 2012). Durante o mestrado em Teoria Literária (2008-2010) pela FFLCH-USP, o escritor Fiódor Dostoiévski fez com que Flávio Ricardo se embrenhasse pela Rússia, durante um ano (2008-2009), para aprofundar, junto à Universidade Russa da Amizade dos Povos, em Moscou, o aprendizado da língua que as Memórias do Subsolo legaram a Stálin. Agora, durante o doutorado em Teoria Literária (2012-2015) pela FFLCH-USP, Dostoiévski e a dialética fazem o autor nômade migrar novamente, desta vez para a fronteira oposta da Guerra Fria: entre setembro de 2014 e agosto de 2015, Flávio Ricardo realiza um estágio doutoral junto à Northwestern University, em Evanston, Chicago, nos Estados Unidos. Segundas-feiras, quinzenalmente, o autor apresenta, a partir das 22h, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z: www.tvgz.com.br, o Poral Heráclito e o YouTube. Periodicamente, atualiza o Portal Heráclito,www.portalheraclito.com.br, e o Subsolo das Memóriaswww.subsolodasmemorias.blogspot.com , páginas em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo. E-mail: within_emdevir@yahoo.com.br

 




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